segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

 
 
Tantas certidões de óbito que desde sempre se enganaram que não dá para acreditar. Violentos tiros, acidentes brutais, desfigurações cruéis, cinzas primeiras. Silenciosos rasgares, bizarrias e estraçalhares trágicos, avisos terríveis, acusações directas, vinganças. A causa da solidão foi a que mais virou a cara ao papel e à tinta derradeira de tantos homens ou de tanto ser, solidão nunca escrita, sempre calada. O arrepio de não saber onde ir ou o que fazer e para quê, a questão primeira e última da finalidade, o amor jorrante tristemente não dito, nada matou tanto como essa vadia. A morte é uma flor que só abre uma vez, começou por escrever o poeta Paul Celan num dos seus mais dolentes e lúcidos versos, para acabar soprando que Abre sempre que quer, e fora da estação. Houve quem já trouxesse este tipo de vento da barriga da Mãe, houve quem o possuísse nas rajadas da vida.
 
Nos velórios é que nos costumámos lembrar do que andámos a provar…Astros, cometas, gazes, poeiras. Espaços tempos infinitos convergindo aos terraqueamente cronometrados milésimos. A terra batida ou o macadame diário, o bom dia dos simples e a vénia forçada. O pão que se dispensa à saída da venda, o copo que não se bebeu sem justificação, a pança a abarrotar de pura gula. Equações simples, instinto afiado. Senhor, animal. Criança, charlatão. Essa morfologia das coisas, a ascese transfiguradora, secreta correspondência entre tudo de tudo.
 
Film noir é realidade. Noir, negro, escuro, desamparado, despido, términus. Tanto quanto o melhor verismo, naturalismo, realismo. Toda a contenda das luzes e das sombras, dos volumes e da fantasmagoria, todo o inferno de ângulos de câmara, descentramentos vários, filtrações dúbias, reflectores e deflectores torcidos, só serviu para expor essa evidência. Reconhecimento do corpo e coração e bafo, anatomia do lugar e da hora. Estamos neste mundo e ele foge-nos. Caleidoscópio evolutivo e irreparável que séculos e séculos de evolução não conseguem amainar.
 
Era apenas um homem. Richard Widmark, Harry Fabian, no “Night and the City” de Jules Dassin. Foi há uns tempos que num tasco tão igual a tantos sujos outros apanhei um bêbado genial que por acaso acumulava as funções de servente e disc jockey e dono, e que depois das típicas e genuínas considerações e divagações só permitidas a alguns felizes nesse estado atirou: só há uma coisa que me deixa fora de mim, a coisa do coitadinho; coitadinho, coitadinho o caralho, cada um faz por si…e se possível por todos. Genial remate e moral para o ser humano maravilhoso que lhe estava marcado nos olhos, na voz, na vertical inteireza, na raridade que não dá por si. Passado pouco tempo lá voltei e o seu estado sóbrio já o atrapalhava nas bebidas oferecidas como na não lamechice da sua colecção de discos já todos riscados de sempre a mesma cantiga.
 
Apenas quero ser alguém, é o que brada furiosamente para o calhas o artista sem arte Harry Fabian, a eterna terna convulsa criança como também lhe chama a amada de Gene Tierney; terna e violentamente atormentada por marcas imemoriais da raça. Dos seus delírios de grandeza e dos sonhos irresponsáveis até à madrasta sorte e à sua preguiça do deixa andar; desenrascanço inocente e apelo dos brinquedos e da noite cortado por uma chico-espertice que lhe assola as veias, HF faz parte da casta dos perdidos que jamais atiram a toalha ao chão, que vão à luta mesmo que sem chances nem anjos, que quanto mais levam mais procuram, flirtando com a morte como quem joga seduções com a mais formosa e fatal das mulheres.
 
O que me leva, à maneira do impagável Baptista-Bastos, a outra estória completamente verídica – quem o conta está aqui, quem o quer saber vai lá – a despropósito, e que se der uma luz suplementar a tudo isto será daquela qualidade atraente que a do Bar Cid adquire às sete da matina juntinho ao Tejo. Ainda no milénio passado o Pai dos meus dois melhores amigos de Bracara Augusta era construtor civil, outro mestre da aritmética da não-ilusão e das soluções artesanais que a crescente tecnocratização obrigatoriamente abateu, desses que em todos os Natais, Páscoas e férias grandes e muitas vezes pequenas oferece uma jantarada à sua classe operária, neste caso a trolhice de corpo inteiro e pura como só ela. Na churrasqueira habitual e despejados os garrafões de tinto habituais, talvez já depois do concurso de anedotas em que o Pintor insistia em Bocage com ou sem graça e era humilhado e de toda a confraternização seríssima e porca, surge um descontrolo aparentemente sem causa de alguém que eu não me recordo o nome mas que penso seria da dura áreas das betoneiras. Sou o maior Filho da Puta, dizia ele em loop, o maior Filho da Puta, o maior à face da terra. Não és nada, és um amigo como não se encontra, gritavam-lhe e confortavam-no, para ele insistir raivosamente e emocionado que sim, que o era, que mais do que isso, era o Filho da Puta número um. Eu sei-o, sou o Filho da Puta número um. Podiam-lhe falar em Primeiros-ministros ou dirigentes futebolísticos que ele não cedia, àquela hora tardia e na circunstância era o Filho da Puta número um. E Deus e os homens que o conheciam sabiam que no dia seguinte de pica-boi ele não iria ter competidor à altura, seria o maior dos profissionais e tipo porreiríssimo para o que desse e viesse na obra ou na intimidade. A coisa do Filho da Puta – proibido confundir com a filha da putice ordinária - ficava ensombrecida em recantos ou elipses que ainda menos homens saberiam. Antros benditos onde o cinema não tem qualquer hipótese de convocatória e que por isso mesmo só com ele pode rimar. Estou a falar desse inesquecível trolha ou estou a falar de Harry Fabian numa das mais portentosas criações de um actor sem herdeiros? Continuemos na obra de 1950.
 
Quando o negro que aprisiona todo o filme permite vestígios de luz e utópica transparência para o conto e a dita magia penetrar e obscurecer a tela, já esse pequeno gigantesco delinquente de fama feita corre, suspira, geme, pede desculpa e vai mais além no golpe, engasga-se e apraz-se como que eroticamente. Ser pululante ou super-herói invasor de telhados, chaminés, ícones, à beira do céu e de estrelas que o olham com pasmo por estar onde costuma estar a animalada ou perto de Deuses. O seu movimento é o movimento do filme que por sua vez é o da vida dele. Contendo todas as energias do chamado bem e do chamado mal, do bom homem e do seu oposto. Movimento total que nunca se decide, em fluxos enviesados, estabilizações enganosas, escorregadelas constantes, sem nunca entrever um centro de equilíbrio, coisa sadia. HF não anda, desliza, voa, baila, ri e ri-se, chora, aflige-se, solta-se. Viu e ouviu o mais grave mas também aposto que sabe da beleza suprema que não muitos mais sabem. Gene Tierney, sim, mas também os brains and guts que se orgulha de ter e que ainda aposto que rasga o que muitos de nós não rasgámos para nos borrarmos todos. Esse início é extraordinário e representativo como água queimada e fogo gelado porque nos apresenta na cara a complexidade de alguém, a impossibilidade de etiquetas e mitos estúpidos. É um movimento de um simples e uma correria sacra, cósmica, eterna, além.
 
E a penúltima cena, essa sublime e comoventemente desossada antes de ir parar à fossa ou a um paradeiro de escassos. Quando vai ter com uma velhota que de certeza andou com o monstro ao colo, lhe terá dado leite e não se lembra de dele não se lembrar. Ele aterra ali naquele País tão bonito de humildade e não lhe pede um doce mas pede que o ajude a parar de correr. Arrepende-se possivelmente porque já sente a morte como antes nunca a tinha sentido e começa a desfiar passado, as coisas que eu fiz, ela amava-me, tive perto do topo e da fama, aquele rosto, etc, etc. E ela reaparece ou aparece daquela maneira como só ao cinema foi concedido, sempre coisa de aparições, coisa de varinha mágica e realidade escancarada e viril e perigosa, de inexplicável e de contracampo fulgurante, para abraços últimos, olhares últimos, beijos últimos. E faz-lhe saber mais do que amor, de admiração, trabalhaste mais do que todos…sempre nas coisas erradas. Que faz raccord inconcebível com algo que lhe infligiram lá para trás, aquilo de quem nasce hustler vai morrer hustler. Hustler que quer dizer mais do que o aparente. Monstro que se meteu com monstros de outra ordem se calhar eunucos. E não falo dos monstros da luta livre ou greco-romana que o iludiu mais uma vez ao negócio da sua vida. Ou todas as ordens cambiadas – pois há monstros maus, monstros bons, monstros generosos, monstros vingativos, eróticos, sublimes, feios, bonitos… E novamente o corrupio catatónico, a afogação, entropia. E todas as desconfianças, demências, acusações. Reverso do amor que jamais os cimos, os controladores dos fios e das agulhetas, lhe permitiram soltar sem a cópula que o corrompe.
 
O esgoto, o cigarro na vez das flores, o apagamento. E a solidão vazia, o vazio da solidão. Certidão de óbito cancerosa. Era só um homem. A outra gaveta, a do género…Dassin e o contraluz, nevoeiros crepúsculos ou fumo de cigarro de vida e de morte, predestinação…Dassin agarrou em tudo para penetrar no mais fundo da ferida como no mais fundo do sexo se entra já arrasado de cuidados…e tudo se simplificou naquela verdade dolorosa em que se sabe tudo e já não sabemos mais nada. Só um homem.


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