sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

 
 
“…filmar a vida dos homens sem Deus, sem moral e sem sentença.” – Jorge Silva Melo a propósito de Raoul Walsh.

Saskatchewan é uma das províncias do Canadá, entre Alberta, Manitoba, os Territórios do Noroeste centrados por Yellowknife e, imponente e a verde incatalogável, as insustentáveis montanhas de Montana e do Dakota já com a América em fundo. Mitologias e oblações realizadas pela matéria ardente ao toque primordial. O ver para crer de Tomé ali sussurrante. Belos e transcendentes pontos cardeais que teceram e envolveram um dos mais límpidos e faiscantes filmes de Raoul Walsh. Pelo Rio Saskatchewan, o que corre velozmente, a tribo nativo americana Cree, os Sioux vindos da fronteira, possantes da derrota aplicada a Custer e os célebres soldados Canadenses trajados a vivo vermelho vão toda a ordem e sentido pôr em causa, para tudo iniciar, passar e terminar em apoteose humanista acima da lei de tribunal. Se jamais esteve em causa aquele mundo, aquele cosmos, aquele Deus e o Destino - mais do que a formação de um estado livre e independente fala-se da presença do Homem no Palco que o antecede e da sua força e sangue e suplicio para lhe dedicar todos os hinos. Missão hercúlea, missão cumprida, com a mão e olhar simples que só desse modo tais coisas se deixam apreender e revelar. Olha e simplifica, escuta e sente, comunhões producentes.

No primeiro plano que resiste ao termo sequência, à apelidada panorâmica ou a chavões de técnica e de escola, ainda com os créditos por cima e com a banda sonora de orquestração, vamos de uma rocha e de uma árvore tratadas por tu no mais incomensurável, até à largueza e respiração do céu em paz, as escarpas da terra, a alvura da neve, o corpo manso, cintilante e tão sedutor dos grandes lagos, os picos de mais troncos que parecem perfurar a paz dos vales tão adormecidos como profetas do Génesis ou testemunhas do Big Bang, a fusão de tudo isso e do que está para além da superfície, para descermos ao nível nosso e encontrarmos dois seres tão pequenos que vão ser tão grandes. A orquestra teve de se mutar obrigatoriamente na presença inteira dos intervenientes da grande sinfonia, e aparece sem aviso a força ciclópica do vento e dos tremores em volta. Tanta flora, exígua fauna mesmo quando incontável. A não separação. Neste movimento que redescobre uma ordem cosmológica plena, uma felicidade suprema sem nome, um presente total e satisfeito, uma evidência tão óbvia e em execução que faz pedir perdão por tontos pecados; essa explanação calma e vibrante do universo, o criador, a criação e a autonomia, nesse movimento extraordinário e singelo está condensado todo o espaço e todo o tempo acontecido, esse que permite o cinema. Toda a moral e toda a prática. Circularmente como todos os princípios e fins e eternos-retornos. A água nítida como um espelho, a neblina a levantar-se como num conto de fadas, o reflexo das montanhas, palavras não retiradas de qualquer verso panteísta mas antes do instinto que tais coisas afia a um soldado que as contempla lá mais para a frente. Ou, como diz um quase póstumo que se levantará pelos milagres das nossas transcendências, a melhor das medicinas.

Assim posto, e como sabemos com gente deste calibre não podia ser de outra maneira, a guerra é declarada e executada em vista da reposição e do direito. O exército militarista junta-se aos índios amigos, índios bons desfazem índios maus, exército bom ignora exército mau, desarmam-se uns e armam-se outros, desobedecem-se a ordens superiores e obedece-se aos mal tratados; machados vencem pólvora, a anarquia humilha a disciplina. Chega-se a caminhar para a vitória que significará possível enforcamento ou para a derrota que os altos decidirão de sorte. Que é a mesma coisa dos socos de Alan Ladd por amor e ciúme animalesco, dos brancos irmãos de peles amarelas, da mulher loira, suculenta e guerreira que tanto caos e esperança semeia. Facções sem nexo, paixões virulentas ilógicas, redenções planantes. Falar-se-ia em esquerdismo, comunismo, guerrilhas engajadas, mas a questão é bem mais antiga e não tão fácil, cheia de terríveis cruezas e de genuínas revoluções. Em tempo de guerra não se limpam armas. Em oitenta e sete minutos, com a concisão que tudo abarca e com o segredo da elipse e do não dito que cede os poderes aos segredos, nessas verduras, azuis e cinzas celestiais da natura e pelos negros e encarnados carregados dos interiores carnívoros e das propaladas almas, Raoul Walsh, não só um dos grandes pintores Americanos com câmara mas também do que nos inflige de tumultos pela paisagem das vísceras, cria ou apanha toda a gama da existência que como num arco-íris que por lá aparece perpetuamente emana, e o constante fado do desajustamento e do encontro dos contrários. Como oração, como desgosto, verdade.

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