quarta-feira, 5 de março de 2014

Encontros Cinematográficos 2013 – Fundão (I)


CONVERSA COM BRUNO ANDRADE

 por JOSÉ OLIVEIRA

A encenação no cinema e o seu poder primitivo têm-se vindo progressivamente a perder, desde o cinema clássico americano, anos 50, “Rio Bravo”, que a chamada mise-èn-scéne, esse devastador poder cénico que de Griffith ao Expressionismo alemão tornou o Cinema num modo único de lidar com o mundo, os homens, a natureza, a luz e a morte, etc. E foi por esses tempos que uns últimos resistentes da cinefilia e da vida como gesto total, grosso modo finais dos anos 50, despontando definitivamente Oliveira, Straub, Rivette, Eustache, Glauber, o próprio Vecchiali, ou seja, modos viscerais, convulsivos e ao mesmo tempo lúcidos de lidar com essas especificidades cinematográficas, pondo vertiginosamente em questão o como lidar com o que aparece defronte à máquina de filmar? Reconhecendo a enorme sensibilidade das matérias e das técnicas, da carne e dos olhares, bem como a perigosa abstracção e dispersão a que esta arte sempre esteve propensa, como resistir? Vendo esta tua curta-metragem, parece-me que vem dessa família moderna Oliveiriana, dessa patologia que olhou estupefacta os abismos e os túmulos de uma promessa violada. Uma aflição de enfâse ressuscitadora. Não me parece que como Adrien Martin, acredites que “Mise en scène is Dead”.

Antes de responder-te devo confessar que espanta-me alguém que alardeia uma média de 350 filmes recentes vistos por ano aparentemente não encontrar tempo para os trabalhos do Jean-Claude Brisseau, do Lester James Peries, do James Gray, do Asoka Handagama, do Jacques Rivette (e sabemos que deste o sr. Martin diz-se um grande admirador!), do Hong Sang-soo, do Paulo César Saraceni e do Paulo Rocha, sem contar o Gérard Blain e um filme como Hana-bi do Kitano (nestes dois leva-se em consideração a arte da elipse contundente e evocativa também como arte da mise en scène, como em Carpenter, Straub, Bresson). Pode ser também que o sr. Martin não tenha visto muito bem os filmes desses senhores, o que por fim corresponde ao mesmo que não vê-los, e nesse caso não há muito o que se fazer.

Falas de um ”poder primitivo“. Talvez devêssemos ir além e pensar mesmo numa ”vocação primitiva“, primeira, da câmera cinematográfica, que é o que de fato chamamos – podemos chamar – de mise en scène. Isto é: essa capacidade de se ver de muito perto e de muito longe as coisas, aquilo que primeiramente Griffith sistematizou e depois Ray definiu como uma microscopia, uma melodia do movimento do olhar (como o Preminger quando filma as relações humanas e as flutuações de poder nestas como se fossem arabescos ou valsas, como o Fleischer quando filma mortes sob a forma de longos rituais sinfônicos, procissões ou liturgias, mas sempre olhando-a cara-a-cara, ao mesmo tempo presente e distante). A visceralidade, a convulsão, a lucidez nada mais são que certas propensões às quais tais olhares se prestam: Fuller mais precipitado que Mizoguchi, Vecchiali e Fassbinder mais precipitados que Sirk e Minnelli, e assim por diante.

O que posso dizer é que tentei permanecer fiel à idéia de que não há nada mais difícil que olhar um rosto e não se espantar diante da sua enorme força vital e expressiva, que só resta à câmera se projetar rumo a essa força (o que se dá também pela impassibilidade ou pelo recuo; cabe à mise en scène, isto é, ao sentimento em consecução, discernir o trabalho a ser feito e fazê-lo), estando à altura das coisas e fazendo jus ao fato de que é o quê se tem na frente da objetiva o que acabará por nos surpreender e nos tocar, seja na interpelação de dois olhares, no intervalo de um gesto ou num silêncio inesperado e cúmplice. E, também, lembrando que não há nada mais difícil que registrar com precisão aquilo que é vital e aquilo que já não é, o que deixou de ser enquanto ainda o era, coisas assim. Se a prática da mise en scène é uma prática, um ofício, um trabalho, e não uma veleidade adolescente ou um capricho de diletante, então ela serviria para dar forma a essas coisas numa primeira etapa e submetê-las a um registro numa segunda. É como encaro a questão.

Insistindo mais um pouco, e coloquemo-nos agora na contemporaneidade, se tal for possível, temos uns últimos resistentes de uma memória, da importância dos Lumière, e assim penso em Oliveira e sei que alguns dos realizadores que já falamos ainda vivem e trabalham, mas também Pedro Costa, o solitário Godard, alguns orientais como Jia Zhangke ou o Wang Bing, outros que tiveram que ir à guerra e desafiar a loucura, o Carax, o Garrel, e não muitos mais. Do outro lado da barricada, esses ritmos flows esvaziados de vitalidade, essas distensões temporais que banalizam e enfraquecem o incomensurável de um rosto ou de uma montanha, das suas relações, um macaquear ostensivo de dispositivos e de catálogos “modernos” para festivais, o “novo” que rapidamente cheira podre. Para Ford ou Vidor um homem era um homem, uma árvore uma árvore, e cada plano estava carregado com esse peso abissal cósmico, poderios e segredos em epicentro e resguardados, onde dois segundos se volviam a eternidade. Hoje uma imagem de 5 minutos de um Apichatpong ou o fragmento de um segundo de um Desplechin parece-me o nada, a regressão triste das formas e da humanidade. Como estar ao lado dos que nos ensinaram tudo, sem os trair, e como andar com as coisas para a frente? Estamos na infância ou isto já acabou?

”A great man is one who in manhood still keeps the heart of a child.“ (Meng-Tzu/Cimino pela boca de Mickey Rourke)

Permanecer nos passos de Griffith implica estar na idade adulta da arte, mas ainda resguardando o essencial dos valores da infância (o sentimento de novidade, o calor, a imprevisibilidade). É o que vemos tanto na família pós-nuclear do Le révélateur do Garrel e na Binoche agarrando o Lavant pelo pau em Pont-Neuf como no Losey americano e os filmes da Ida Lupino: em todos os casos é como se a infância fosse preservada integralmente pela força dessa maturidade à qual o cinema ascendeu pelas mãos de Griffith. Ao mesmo tempo uma consciência que a cada filme parece como que recém-adquirida, como acontece com as crianças, age sobre o que cada um desses cineastas possui de singular. São essas singularidades as que ainda atravessam e fazem viver o que há de cinema no meio, ou às margens, da massa indiferenciada de filmes, longe desse “continuum” de histerias convulsivas ou de compostos temporais e sensoriais puramente anestésicos. Fragmento de um segundo ou imagem de 5 minutos, no fim das contas trata-se da mesma coisa, isto é: da mesma vaidade, do mesmo desprezo pelo elementar em detrimento da falsa sofisticação, da mesma imprecisão no ato de se olhar as coisas e medir seus pesos, de se ver e se sentir o mundo.

Talvez a única forma de se estar com os Lumière e o Griffith hoje, e talvez já há um bom tempo, seja admitindo-se de uma vez por todas órfão deles, como Costa e Carax fizeram. Ter a coragem de lidar com toda a desolação e desta forma lançar-se ao que há para ser feito: é essa a contribuição dos cineastas que importam, ou que deveriam importar.

“Noite” é a tua segunda obra, lembro-me de ver o primeiro filme que fizeste há uns anos, “Ato Falho”, e ali, numa evidente fascinação cinéfila e num pagar de dívidas, já se notavam coisas que agora aprofundas, a fixidez aliada à perscrutação, o sentir de pulso da câmara às temperaturas e às pulsões do que está em jogo e vibra, uma espécie de modulação e envolvência larga que também me remete para o Brisseau ou algum De Palma. Como chegaste aí?

Um diretor, não lembro quem o disse mas concordo em gênero, número e grau, é primeiramente alguém disponível, e essa disponibilidade era algo de que eu definitivamente não dispunha à época do Ato Falho, cujo valor de experiência está contido no próprio título.

Para este segundo curta, tratava-se especialmente de conhecer e entender os atores nas suas intensidades, suas modulações, seus silêncios. Impor uma construção prévia de composição das personagens aos atores estava, portanto, absolutamente fora de cogitação.

No que diz respeito à realização, o experimento consistia em reencontrar nas gravações os impulsos liberados pelos atores durante os ensaios para assim dirigi-los de acordo com o que previa o roteiro, reescrito para se conformar ao que nasceu das contribuições dos atores nesses ensaios.

As influências de Brisseau e De Palma, as quais reconheço, foram mais determinantes na fase inicial da decupagem (que acompanhou os primeiros tratamentos do roteiro) e posteriormente durante a planificação (que passou por transformações decisivas a partir do que foi-se descobrindo dos atores). Fechamos as cenas em espaços bastante reduzidos, os quais deveriam se relacionar direta e conclusivamente à experiência íntima das personagens – o céu estrelado que decora a parede de fundos da boate, espaço ocupado pela personagem feminina; o quarto do personagem masculino reduzido a uns poucos objetos que sugerem as coordenadas da sua existência sob a forma de alusões.

Sobretudo, o que guiou essa concepção foi menos uma questão de escassez que uma grande vontade de precisão – a qual, por fim, pode se confundir à escassez...

O protagonista e o desenrolar da narrativa parecem estar construídos e viverem sobre grandes elipses de uma gravidade a um tempo libertária e perigosa? Todo um passado atrás. Como germinou tudo isto, da escrita até ao trabalho com os actores? Quanto de distanciamento e quanto de biografia?

Queria fazer esse filme como um faroeste do Boetticher, mas onde fosse a moça que interpretasse o papel do Randolph Scott. Essa mesma vontade levou-me a conceber uma forma mais seca, bioscópica, essencial para o filme. Há como que uma redução drástica da matéria, de maneira que ela se choca violentamente com a forma: espaços reduzidos, achatamento da profundidade de campo, movimentos mínimos da câmera, frontalidade declarada do espaço, teatralização deliberada das cenas, importância dos olhares, exploração máxima do tempo de cada emoção etc.

Foi também essa vontade que me levou a uma construção mais lacunar, “perigosa” como dizes. O filme me parece bastante abstrato, mais até do que eu havia concebido originalmente. A idéia consistia em fazer com que essa secura da forma contivesse a parte mais irracional e misteriosa das personagens, para que eventualmente as elipses liberassem progressivamente essas irracionalidades e os seus mistérios. Em função disso, a personagem feminina – a qual vejo como a verdadeira protagonista do filme –, que começa mais aerada, como se fosse uma visão, ganha corpo e eventualmente uma grande presença física, em grande parte pela experiência com a qual é confrontada e a qual vem a confrontar. Já o personagem masculino parece enveredar pelo caminho inverso. De uma forma ou de outra, houve uma contribuição inestimável dos atores para que essas coisas acontecessem.

Quanto de distanciamento e quanto de biografia? Diria que mais do primeiro que da segunda. Há uma parte do filme que é secreta mesmo para mim, e que portanto seria inútil tentar analisar. No entanto, creio que há também uma nudez na expressão de certas sensações, as quais confesso compartilhar com as duas personagens – e provavelmente mais com a garota que com o rapaz.

E, de qualquer forma, o impulso tornou-se irresistível.

Manténs um blog de guerrilha e de paixão há muitos anos, estiveste na Revista Contracampo e na Paisá como critico, fundaste uma revista electrónica, fizeste a escola de cinema, aventuraste-te pela realização. Foste a muitos lados diferentes, viste muita coisa, experimentas-te muito. Que conclusões tiras?

Nada temer, incluindo a solidão.


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