Na recente e revolucionária apresentação - uma
velocidade, clareza e retaliação sem lugar para equívocos - que Abel Ferrara
fez do seu último trabalho, o profético e guerrilheiro “Pasolini”, este fez
saber que tinha acabado de assistir ao Messias de Rossellini, e que considerava
tal realizador tão maluco como aquele sobre o qual fizera um filme. Mais ainda,
segundo Ferrara, Pasolini achava o mesmo. Pode-se, para efeitos de constatação,
evocar o período com Ingrid Bergman e os diversos milagres para alguns,
patetices ou banalidades para outros. Entrar por aqui seria dividir o mundo
entre os chamados conscienciosos e bem pensantes – logo os que fazem da boa
imagem o credo capital – e os inocentes ou tontinhos que perante o terror da
realidade bruta se abrem à fulminação de todas as possibilidades. Aqueles que
já viram tudo e leram tudo e compreenderam tudo e os que estão permanentemente
com sede e nada sabem. Aconteceu que numa guinada de última hora a Cinemateca Portuguesa
trocou a “Viagem a Itália” por “Francesco, giullare di Dio”. Esse mesmo
protagonizado por um grupo de benfeitores que idolatram a pureza de Francesco e
o seguem até aos confins das suas descobertas e constantes ajustes, grupo que
tanto está próximo do divino sublime como das macacadas circenses. Entre a
terra e o céu, pela força do livre e belo fogo que urge atiçar, envoltos nos
flocos de neve da inexplicável alvura, vão comunicar com os passarinhos, bailar
mais leves que o próprio ar puríssimo dos ermitões, ser joguetes de gigantes
infantes trogloditas e perdoar sempre; mas igualmente roubam pernas de porco
para consolar estômagos profanos, beijam leprosos sem os limpar como os
limparia Deus, excitam-se perante a aproximação feminina. Mas o tempo e a pregoada
modernidade ainda não expurgaram tudo, mais de sessenta anos depois, muitos
ainda bateram com a porta da Félix Ribeiro por tamanha beatice ou por tamanha,
reforço, patetice; outros deixaram-se levar na tal maluquice que Rossellini e
Pasolini por boa ventura comungaram, não presos a princípios oficiosos da
religião ou da etiqueta mas sim, sem freios, na perene loucura e contradição
que consiste entregar-se à infinidade de possibilidades e combinações da
existência para tocar o essencial. Entre o credo e o desejo, vale a acção,
protegida pelo amor, medida de todas as coisas, finalidade de toda a
insurreição silente de Roberto Rossellini. A forma é pura, o conteúdo
resvalante.
“I always contradict myself” chegou pela noite e
é grito que só pode ser percebido na assustadora dimensão do escuro, pelas tais
horas propícias a questões soturnas. “João Bénard da Costa: Outros amarão as
coisas que eu amei” é mais uma invenção de Manuel Mozos, sem género e sem amparo,
que tanto se aproxima do fantasmático “Ruínas” como dele se desvia por completo
em dimensão ao retorno e à matéria. Um todo sem princípio nem fim, de corpo
presente. A operação é delicada mas é levada até às últimas consequências, sem
remorsos ou suplícios existenciais, e consiste em chamar JBC do outro mundo que
ele tantas vezes vislumbrou ou quis entrever para este nosso. Elidir as regras
e as fórmulas mortais, deixar circular a morte como único tema possível,
assomar o amor como o seu par e a sua superação, para tudo convergir e se fazer
uno no único centro inexorável – o tempo. Esse centro que nos cerca, nos devora
e nos devolve, como nos diz um ou mais filmes de fidelidade e desassombro que
por lá passam e aglutinam irremediavelmente toda a contradição; esse tempo a
que nós não perdoámos, escreveu JBC. Mais do que gestação, vida, morte e
ressurreição, trata-se de sair dessa imemorial e curta ciência para se entregar
à eternidade. E Manuel Mozos, generoso e radical como sempre, mete-se
literalmente dentro, até ao fundo, até ao fim da fita que a moviola desenrola
organicamente. Em frente às imagens moventes e aos sons transcendentes de meia
dúzia de filmes que chegam para tudo, pelas tintas e frescos só à primeira
visão fixos de todos os pontos cardeais, nas luzes e nas sombras das palavras e
das suas ligações subterrâneas e límpidas, do fulgor de Verdi ao fulgor de Minnelli,
em paisagens de moradas e de afectos, Mozos olha o que JBC olhou, colhe,
disponibiliza-se, tenta perceber, amar muito do que ele amou. Jamais pose de
egocentrismo mas sim de humildade e continuação, ilumina-se pela luz que JBC
escolheu para o moldar, ao seu interior e ao seu exterior como nos ditos de
Jorge Luis Borges que escutámos, luz essa que nos pode iluminar a nós do outro
lado do ecrã para lá da vicissitude e das aparências. Memória, dádiva, vida,
será o movimento essencial e o apelo à importância de cada um, de cada ser, de
cada herança. Relativização da hierarquia balofa a favor da natureza convulsa,
abertura ao que nos ultrapassa ao invés do ridículo da imposição. O sagrado do
conhecimento, essa poesia que nos chega de algures ou nenhures de outro tempo, finalmente,
a beleza que importa e que aqui inunda. Numa montagem que em infinitas
correspondências secretas e consanguinidades ineludíveis liga a tempestade do
deserto de Nicholas Ray às ondas da Arrábida, que funde para sempre a
Cinemateca Portuguesa aos fantasmas e às carnes de quem nela soube habitar e
dar a ver, nunca por nunca estamos à beira da cinefilia barata – essa ordenação
da vida por filmes ou essa falta de ambição – mas antes se escava desde os
escombros mais sensuais do que funéreos, ou sensuais porque aceite a condição
funérea, das latas de película ou dos altares dos mortos até à imensa
panorâmica final em que o etéreo e o vazio são preenchidos por Sophia de Melo
Breyner, por essa certeza de que os amanhãs permanecerão cantantes. Forma que
aceita todas as expressões, conteúdo seguro de si por toda a prova.
Entre Rossellini, Pasolini e Abel, João Bénard da
Costa e o Manel, muito nos salvámos, reconhecendo o bem e a beleza e toda a
outra ponta, não descurando nada disso e atirando-nos ao turbilhão. Demasiado humanos,
é o que importa, dizem-nos eles. Façam-se vontades dessas, se assim se entender.
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