sexta-feira, 2 de janeiro de 2015



De “O Velho do Restelo” se poderia dizer - um jovem inconsciente ou alguém muito adulto preocupado com a carreira - que se trata de um vídeo experimental. Em qualquer dos casos, será preciso prestar muito namoro ao lado inútil e mundano com que se tem tratado a questão de ligar imagens e sons, a tal da luz embrenhada com a sombra, etc. Se um aluno de uma escola de Cinema, ou um realizador na crista da onda, propusesse ao professor ou ao produtor o que Manoel de Oliveira ousa aqui, tal patrão olharia para o subordinado com fúria tal que esse ("A água bate na rocha, mas quem paga é o mexilhão") procuraria nova profissão. Imagine-se a equação: “quero juntar num banco de um jardim indiferente Luís de Camões, D. Quixote, Teixeira de Pascoaes e Camilo Castelo Branco, pedaços de filmes meus, pedaços de filmes alheios e de literatura clássica, mar e natureza bruxuleante, para criar uma sinfonia total em que o passado comenta o presente, as misérias as festas, o antigo faça corpo com o novo”. A tamanho delírio, juro que eu ou quem quer que fosse só poderia considerar louca tal persona, e reprovava, e era despedida. Mas Oliveira é Oliveira, o que não quer dizer privilegiado, mas sim um animal (na acepção mais selvagem e instintiva do termo) que a tudo e a todos resistiu pelo século da modernidade e do vale-tudo rumo a uma beleza convulsiva (tão nova, tão esquecida) que só admite jorrar pela quebra de todo e qualquer prossuposto normativo. Os novos mundos e o rasgar de Camões, a alma e cavalgares de Quixote, o fogo e a desconhecida animação víscera de Camilo, com a lucidez assombrosa de Pascoaes, sempre mediador. Tal desassombro, tamanha calma, inextinguível chama, desejos vividos – não inventar nada de novo e entrar pelos caminhos mais desconhecidos sem pestanejar. “O Velho do Restelo” é ver Luís Miguel Cintra a ser Viriato ou o Poeta mirolho da humanidade; Alcácer-Quibir em redução com todos os ecos fora de campo de um extermínio lento e de permitida consumação que nos cerca. Parece pouca coisa, mas estamos a um tempo na vida jovem e nas guerras imemoriais. Fim e princípio, sempre as voltas dos grandes. Como se fosse um “vídeo experimental”.

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