domingo, 21 de junho de 2015



"Spring in a Small Town" (“Xiao cheng zhi chun”) erigido em 1948 pelo grande cineasta Chinês Mu Fei talvez fale mesmo de um renascimento depois das tormentas, tempestades, plantios, e, a mesma coisa, aprendizagem. Ou então, o quadro final que parece tudo redimir e rasgar em relação aos sentimentos e enquadramento anterior, crave ainda mais os segredos e o lado incompreensível de estar nesta vida. É um mistério num filme tenso, afligido e ao mesmo tempo sereno como o que não tem volta a dar. E merece cada imersão, transformação e via-crúcis nele. Por todos os motivos inesgotáveis da carne e do espírito. Narrado pela esposa à deriva, logo nos é apresentado o marido agónico, depois a jovial irmã dele, o criado fiel, e o bondoso amigo do marido que vai abalar os adormecimentos, impor a insónia, sem controlo. As contendas vitais vão estremecer e pulsar novamente, mas, talvez o mais insondável e sublime (e logo duro) desta jornada, não vão haver anátemas diabólicas ou duelos fatais, todos se vão querer e amar para lá ou cá da normalização, de onde as transgressões passionais ou sanguíneas deixam de fazer sentido. Envolto em ruínas que são as da guerra mas são também as da rotina mais perigosa (o caminho faz-se passo a passo seguro como os muros que crescem lentamente), será para lá delas que quem quiser ver acederá a uma salvação pessoal e depois universal. Narrado pela mulher, é a mais críptica das vozes, pois se é off e se domina acima de todos, se paira nos ares, o que a câmara vê, cá bem nos baixos, o que vemos nós, no presente, faz a diferença, e esse choque vacilante entre a palavra e olhos e rostos e acções une o a posteriori e o agora num indefinível que é o centro do filme e da encenação. Encenação que vai sempre desvelando e velando pacientemente o que encontra em frente e em torno, aproximando-se conforme a temperatura, ora começando nos pés e indo ao todo para a energia se concentrar e permanecer, ora raramente olhando os céus ou uma lua que, sabe-se, tem o poder de tornar rarefeito qualquer vulcanismo. Nessa encenação - a manifestação do natural - o som é fundamental e irremediavelmente revolucionário. Nunca pela técnica acabada ou não, em si mesma, mas porque a primeira vez que o vento sopra selvaticamente nas árvores e no resto tem o mesmo fôlego catártico dos silêncios e do mudo que antes presidiu e destacou os gestos, não ditos, o dentro. Depois desse vento sucedem-se os movimentos para fora e tudo parece revolver-se a outro nível, pelo espírito e compreensão que inflige no físico. De braço dado com a elipse, verdadeiramente ou cripticamente em acção, não por cortes largos no espaço e tempo, antes intervindo em quartos, em leitos mesmo, por infinitesimais porções, carregando em paroxismo até o coração de cada um ser audível, sensorialmente e materialmente. Um cosmos pode ter acontecido no entretanto onde o cinema corta, ou apenas uma brisa ter passado. O plano final... não há como não voltar lá, assim com nunca se esquecerá a esposa e o amigo contra o fundo etéreo que acolhe, comenta, se mantém impassível e resume a beleza lírica do instante – ali passaram milhares de anos, o afogueamento da decisão, todas as posições, contradições e gama de sentidos e sensações; como a passeata pelas águas e brilhos plenos de si pelas flutuações de quem o atravessa; como a dança, canto e brincadeira infantil entre a irmã e o amigo que abole qualquer idade. O plano final liga ao Jean Renoir das razões para cada qual e ao Ozu dos destinos. Sem esquecer Paulo Rocha, basta ver qualquer das suas obras ou escritos ou ele mesmo a falar ou caminhar, essa vertigem dos abismos primordiais da criação e da vivência em correspondência com a arte e a crueza do real na fixidez do plano prestes a explodir. Para valer por si como cada qual vale por si acolhendo a paixão. Puro, alvo e assombrado por um fora que para dentro trouxe e trás toda a negrura; por um dentro que não escapa às imemoriais ambivalências. E a transfiguração a conquistar. Indecifrável, como todas as grandes histórias de amor.

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