terça-feira, 14 de julho de 2015


Quando no final de "Kaze no naka no kodomo" que Hiroshi Shimizu trouxe à vida em 1937 a criança que seguimos mais de perto corre atrás do circo que chegou ao seu reino, nesse momento tão feliz e delicado, ela já tem no seu interior avisado e no seu corpo marcado o espectáculo das regras, das confianças, esse sistema de valores e de compensações sempre tão evoluído e feito pelos melhores de nós. Evidentemente que toda a sinopse e "análise séria" terá de marcar esta demanda com as melhores cauções de um Flaubert, educação sentimental mastigada, passagens e agruras de infância, o ponto de vista do petiz no mundo gigantesco e a criatividade do artista para com tema tão batido. Mas a cantiga pia e afina para lá do óbvio, do "pensante" e do racional: se a gravidade que desagua na tragédia ao modo abafado, concentrado e rarefeito de Mizoguchi ou de Naruse parece posta de lado, assim como as fatalidades e aceitações entre os espaços vazios da morte e da vida em Ozu, o que não se vê - como no plano estelar em que os miúdos olham as estrelas que a câmara não capta e são iluminados por elas como nunca as vimos iluminar e brilhar em cinema - a prisão do Pai inocente que adorava o filho travesso por este não conhecer o significado das aparências e das máscaras, os mecanismos de humilhação, depreendimentos e silogismos, ferem com a finura e o intolerável de um bisturi que abre um fígado ou um estômago. Fígado ou estômago, ou coração e tripas, que são as corridas silenciosas dos anjos ou bichos ainda alvos, ainda antes da modulação oficiosa dos melhores de nós; as suas aparições fantasmais e fantásticas antes da decência (decadência); armadilhas e travessuras fabulosas e por si só absolutamente opostas à respeitabilidade de escritório ou tribunal ou de escola. Por isso tanto se sobe a árvores, vai-se rio abaixo na banheira arrancada à casa de banho, prefere-se os monstros das águas aos fatos compostos dos adultos mais acabados e brilhantes que calcam o macadame. A criança que das outras se nos foi destacada para a vermos melhor através da lupa única, precisa e preciosa do cinematógrafo será certamente especial pois tão verde possui as armaduras dos sábios e jovens de milhões de anos e de vidas e de rotações. Se o contrário acontecer, e a cada dia se prova que a raça terráquea não sabe dos limites a limitar e em termos de sentimentos e dádivas quanto menos mais, a tragédia não será maior (se tal desse para medir) pois haverá sempre um psicólogo ou especialista desse campo a explicar a infernal via láctea não permitida aos não formados.

"Kaze no naka no kodomo" é tão triste pela sua evidência como belo no modo como é tecido, passo a passo, respirar a respirar, batida a batida, cada partícula ínfima o cosmos eterno e liberto. Um dos hemisférios pode dobrar para cima do outro, as tais estrelas desistirem, a água mudar de rumo e soltar as deformações, a cientifica gravidade gastar-se, que Shimizu, que os desta têmpera, jamais irão soltar o aparato e o fausto de uma arte que a isso se proporciona em augúrios demagógicos e arrivistas; Shimizu e os seus vão querer ver melhor e assim não escancarar o invisível, abrir a profundidade toda do espaço e cerrar o íntimo, utilizar o campo e o contracampo para nos devolver, descobrir e redescobrir as expressões, os olhares e a atmosfera de cada pedaço de alma que completa a gigantesca e genuína alma que nunca se apagará - a do rosto (luz e movimento, tempo e espaço) fiel e inexplicável. Assim Jacques Rivette estava cheio de razão ao confessar que não era preciso saber idioma algum para se perceber o Japão presente e ancestral que iluminava virginalmente a sua tela. Em ténue oblação e de forma desgarradamente animal, é um filme irmão de "Rebel Without a Cause" do Nick Ray aflito de Hollywood, irmão dos "Mes petites amoureuses" do suicidário Jean Eustache que na Paris ao rubro não esqueceu o rubro da sua pequena aldeia. Todos eles, em movimento único e comum, clamando o inesperado, a única condição certa.

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