quinta-feira, 24 de agosto de 2017

"Wild Is the Wind", George Cukor, 1957


George Cukor, o cineasta das mulheres, o sofisticado homem do teatro, filmou em “Wild Is the Wind” o que o título indica, uma história de vento, ou do vento. Partindo de um claro interesse documental, o registo dos ofícios e da manufactura daquelas regiões agrestes americanas pós western, com os cães que domam as ovelhas como no país basco, o parimento delas e a selvajaria mais bonita quanto perfeitamente incontrolável, encontra-se nessa vida animal, bestial, orgânica e natural toda a simbologia ou consanguinidade óbvias para com as poderosas pulsões desejantes, tanto sexuais e básicas como afectivas e fundamentais da parte da ficção. O amor, a violência e o vento. Cukor capta, apanha no turbilhão, a massa possível de uma visceral história de vento, vento que acaricia, ameaça, salva, acompanha.

No começo, um par, Anthony Quinn, italiano na América que sabemos que perdeu a mulher, e saberemos depois que com muitas culpas no cartório, decide ir ao seu país de origem buscar a irmã da falecida. Quer casar-se novamente com a morta mas escolhe uma viva, não sabendo da impossibilidade de tais milagres, trocas ou compras. E trata de tratar Anna Magnani, a escolhida, como os seus animais, querendo doma-la como domou o cavalo que lhe oferece, beijando-a defronte do espelho que contém e reflecte a morta, utilizando-a assim para o sexo e para a sua imagem de fama, não vendo nela uma outra.
 
Só que não percebe que um animal fervente como Magnani, um vulcão em constante irrupção, jamais poderá ser domado sob o risco de morrer interiormente e logo exteriormente. Nem alma nem carne. Essa mulher que caiu no centro do turbilhão e da cacofonia da família já constituída e acabada, só se vai entender com os animais, suficientemente verdadeiros como se deve ser para com os da sua raça. O tempo avança a mata-cavalos, literalmente, e forma-se o trio. Magnani encontra outro inocente e necessitado que é mais um filho de Quinn e que parece ser um Dancin' Kid de Nicholas Ray, e ambos se reconhecem no alívio premente e literalmente se devoram. Espécie de Dancin' Kid que nasceu prometido à filha de Quinn. Filha que gosta muito de Magnani e que não se importa de a ver como Mãe. Explode ou implode um quarteto inaceitável.
 
E todos bailando no meio do vento e cercados pelas míticas montanhas mágicas da América mais do que mitificada – Charles Lang no auge da beleza crua e perfeita a um tempo, sem bilhete-postal - mesmo o Quinn que tudo julga dominar e controlar como Deus a seu belo prazer, se vão perder, enganar, suspender em abismos irresolúveis, praticamente matar e ressuscitar a ferros, para começarem a ver e a sentirem alguma coisa mais para lá da compostura das aparências e do esperado. O que Quinn quer é o que todos os “donos do mundo” de ontem e de hoje querem, mesmo que não seja culpado e se mova cego na engrenagem que o cegou, dominar cada peão no desmedido tabuleiro que criou e não admitindo falhas no seu esquema perfeito e maior do que tudo e do que ele mesmo. Atingidas certas proporções e posses, toda a vida, todo o tempo e mesmo todo o físico e saúde de touro de um Quinn, só para esses fins argentários e falsos serão aplicados.
 
Cukor, um dos cineastas mais narrativamente possantes dessa época – os seus filmes são densos, maleáveis e complexos como um corpo humano o pode ser na estrutura infindável de músculos, gorduras, veias, ossos, etc., etc., ou como um romance cósmico e total que vai a tudo e a todas as ficções e documentos e féeries de um Thomas Mann – captou Magnani documentalmente como o vulcão italiano perdido no imperialismo e extrapolou de Quinn a força castradora que tudo pode devorar, o humanismo em primeira instância. Mas de hecatombe em hecatombe, de incompreensível e de segredo em segredo, a panela de pressão arrebenta e advém novamente o vento. Para os protagonistas limparem a vista, as razões e o coração. “Wild Is the Wind” é a passagem afagante, lenta e dolorosa do “eu quero” para o “eu espero”. Da violência da imposição sem escolha para a generosidade com todas as possibilidades de selvajaria da liberdade e assim de uma fidelidade superior. Por isso mesmo o final não é feliz à força nem batota dos estúdios fascistas mas a visão límpida e dolorosa de um depois da tempestade. E George Cukor como cineasta do físico e da alma, ou do caminho tortuoso para esse entendimento e encontro. Imensa carícia.

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