sábado, 21 de novembro de 2020

GUERRA de José Oliveira e Marta Ramos


Publicado no suplemento ípsilon do jornal Público a 23 de Outubro de 2020: https://www.publico.pt/2020/10/23/culturaipsilon/cronica/guerra-1935984


Dizem que para fazer um filme — ou uma obra de arte — pode valer tudo. John Cassavetes, um dos príncipes do cinema independente, afirmou que assim que a câmara começa a rolar um realizador deve deixar de fora as suas misérias, os problemas pessoais, a falta de dinheiro, etc., e proteger o filme de tudo o que é acessório, em direcção a uma pureza. John Ford, depois dos grandes épicos e dos Óscares, surpreendeu alguns dos seus próximos ao afirmar que gostaria era de fazer “filmes na cozinha”, filmes pequenos, filmes familiares. Durante este longo e tortuoso período de confinamento pandémico muito se falou nas mudanças que o cinema sofrerá, tanto ao nível da exibição como na produção. Mas basta vermos o apoio que grandes festivais de cinema europeus atribuíram (e atribuem) a filmes que em alguns casos têm quatro ou cinco co-produtores internacionais para percebemos a tremenda injustiça desta repartição. Ao contrário do slogan, parece que tudo ficará igual ou pior: um filme que já tem milhões de orçamento de vários países precisará de uma soma menor que a um jovem cineasta “descalço” daria para vários filmes? E que dizer das não-respostas que esses mesmos festivais dão a jovens cineastas com filmes sem cheta feitos “porque senão morriam”? “Quem é o seu produtor, distribuidor, ou agente de vendas? Algum deles tem pedigree internacional? Assim não podemos passar o seu filme mesmo que seja uma obra-prima”. Na semana passada um programador-estrela a quem nos recomendaram mandar Guerra (pois há muito esgotamos o orçamento para inscrições no site) respondeu-nos que só via longas-metragens quando lhe pagavam para as escolher para festivais ou então para o jornal seu ganha-pão, caso contrário era perda de tempo, a não ser que fosse uma “curta”. Rainer Maria Rilke respondeu assim ao seu jovem admirador nas Cartas a um jovem poeta: “(…) pergunte se morreria caso fosse impedido de escrever”; “Acima de tudo, na hora mais silenciosa da noite, pergunte a si próprio: tenho de escrever?” No meu caso comecei com a Marta Ramos e uns amigos um filme com o recém falecido actor José Lopes — todos os jornais falaram dele na hora da morte — quando ele estava desempregado, eu estava desempregado, a Marta tinha um emprego diverso, e a única preocupação era arranjar menos de dois euros para o José Lopes regressar a Rio de Mouro para estar perto da filha; também por esses tempos a nossa média-metragem de título Longe tinha acabado de estrear em Locarno.

Achava que tinha sido por volta das primeiras apresentações do Longe, aí entre Maio e Agosto de 2016, que começámos a falar com o Zé (Lopes) acerca de um novo filme. Mas, há pouco tempo, a Ana Petrucci mostrou-me uma carta do Zé, escrita pelo próprio pulso numa folha de papel e deixada à porta dela, que mostra que a ideia já vem de trás. Não sei ao certo quantas semanas ou meses, pois na carta o Zé convida-a para o papel de psicóloga e faz referência ao facto de ela não ter estado presente na estreia do filme Pastor da Noite — realizado por Mário Fernandes e com o próprio Zé num papel tão autobiográfico como no Guerra — que decorreu na Cinemateca, no dia 5 de Maio. Isto surpreende-me, pois das duas uma: ou nós já falávamos do filme nos primeiros meses desse ano ou então o Zé já tinha a estrutura na cabeça e as personagens centrais e antecipou-se à nossa pergunta, que esperávamos ser eterna: o que vamos fazer a seguir?


Lembro-me bem das primeiras e definitivas impressões dele: fazer algo diferente do Longe, porventura menos centrado nele e que funcionasse como uma homenagem às muitas pessoas do seu bairro que, ao longo dos anos, lhe contaram histórias sobre a sua experiência na Guerra Colonial Portuguesa. Lembro-me de passearmos de noite pela Av. Duque de Loulé, do Marquês até ao liceu Camões, de cima para baixo e de baixo para cima, e de ele logo delinear cenas muito claras, situações pormenorizadas, sequências cadenciadas, respirações e silêncios significativos, elipses de cortar à faca, da personagem do amigo Castro à reunião dos ex-combatentes. Nessa noite falou ainda de outro projecto que nunca veremos e que seria baseado em shortstories que andava a escrever sobre episódios passados em comboios, uns mais cómicos, outros mais trágicos. “É isto que tenho, só isto”, disse-me com toda a simplicidade, como se não fosse nada. Escolhemos primeiramente Guerra pela questão forte da homenagem às muitas pessoas que ele admirava e amava, e decidimos começar a passar coisas para o papel.


Logo nas primeiras vezes que nos sentámos a uma das mesas de um dos três centros comerciais que existiam na zona do Saldanha, o Zé já tinha o trabalho de casa quase todo feito em relação ao “tema”, sem “brincar em serviço”, e citava estudos científicos e mostrava trechos transcritos para os seus blocos de notas de livros sobre psicologia e stress pós-traumático de guerra que ele tinha ido buscar a diversas bibliotecas e a amigos especialistas, sem esquecer as “prisões” de Camilo Castelo Branco; referia conversas que tivera com uma psicóloga chegada e já pensava mesmo na maneira de falar com ela para utilizarmos o seu escritório para as cenas em que ele, que seria o protagonista, iria desabafar. Foi ele que nesses primeiros dois ou três encontros deixou claro todo o esqueleto narrativo, os lugares da acção e a dramaturgia que deveríamos perseguir: ele teria uma mulher, a Fernanda, um filho melhor do que ele que estava prestes a encontrar o amor da sua vida e que era professor de português, e o tal companheiro de armas; o filme abriria com um flashback no qual o poema O menino de sua mãe de Fernando Pessoa, dito por um miúdo numa aula do filho, levaria a história para o presente onde encontraríamos o protagonista com a sua obsessão; o café do bairro e os raspanetes do Castro, o lago do Campo Grande e o pedido de casamento à Nanda, o tal encontro de veteranos que tinha de ser mesmo com veteranos, e não com actores a fingir, e que seria obrigatoriamente filmado na hoje desaparecida Casa dos Amigos do Minho, na Rua do Benformoso 244, as sessões com a psicóloga que tinha de ser a Ana Petrucci para ele se conseguir mesmo expor de alguma forma, e a “invenção” mais estranha de todas que ainda hoje me deixa estupefacto e me escapa: uma estranha Pietà que mistura a esposa e a “exorcista” e na qual ele é o Cristo Morto.


Um tema a um tempo glorificador ou elegíaco misturado com mutações e fantasmagorias do arco-da-velha. Os encontros continuaram a suceder-se, nunca num lugar romântico ou exemplar mas sim no centro dos centros do consumismo, do capitalismo galopante e da feira das vaidades; não numa biblioteca silenciosa mas sim num Shopping Center: aí éramos completamente anónimos e tal como o John Ford e os seus argumentistas à procura do próximo filme (lembrando uma história que o João Palhares contou num texto para o Dar a Ver em 2017 e que foi muito importante para nós), Ford de que tanto o Zé falou ao longo do processo, era questão de nos posicionarmos no lugar certo e observar o mundo todo a desfilar — de doutores a pedreiros, das belas donas-de-casa às futuras mentes brilhantes que ali estudavam diariamente, e que já nos eram próximos de alguma forma, reformados que viam a bola ou liam calhamaços romanescos gigantescos (numa determinada fatia de tempo o cineasta e escritor António de Macedo foi nosso vizinho), varredores, advogados, chico- espertos, travestis, etc. —, mas sobretudo esse exercício Fordiano de olhar para a “pessoa comum” e tentar adivinhar qual seria o seu modo de vida, a sua profissão, a sua vocação ou paixão, se estaria triste ou feliz e que sonhos teria, ou que actor ou personagem do cinema ou da literatura faria lembrar, etc., e passar essa inspiração corriqueira e sublime do quotidiano para as folhas em branco que estávamos a tentar preencher. Claro que depois também eu e a Marta metemos coisas nossas, que o Zé normalmente aprovava, para depois moldar tudo com a sua presença, com a sua dicção, com o olhar…


Foi num desses lugares (talvez na Duque de Loulé?) que o Zé afirmou, sem sombras de dúvidas e sem cláusulas que permitissem aos realizadores alterar o final, que o Manecas, a sua personagem, teria obrigatoriamente que morrer no epílogo, como nos westerns. Morrer, assim mesmo, como morrem as personagens de Ford e de Hawks, de corpo inteiro e acatando ou escrevendo mesmo o seu destino. “No man died more gallantly”, é assim que John Wayne descreve a morte de Henry Fonda no final do Forte Apache, e era esse tipo de elegância e de doçura que se queria, sem se saber como. O Manecas e o amor à Mãe — não seria a mulher do Manuel a tratá-lo assim mas a sua Mãe já falecida, em cartas, nas visitas à sua morada final como quem não trata a morte como ponto final, ou em chamamentos do outro mundo — seriam o cerne principal e central do filme, o motor do drama, para lá da questão da Guerra.


Mãe escrita com letra maiúscula, assim como Filho, tal como na Bíblia, Mãe como Alma mater, todas as mães, como todos os filhos, eram estas as crenças, os pedidos e as afirmações definitivas do Zé. Nunca o vimos com tantas certezas. Nem com tantos segredos, mistérios, ou simplesmente clareza. Uma pessoa que ama os seus neste mundo, mas que quer regressar ao berço que o espera no outro mundo. E um cerimonial derradeiro como nos valentes filmes clássicos, tão encenados como verdadeiros, um duelo no qual o antagonista é ele mesmo. Foram estas coisas que tentámos fazer, artesanalmente e ao longo dos anos, com a ajuda de todos, dos veteranos de guerra que construíram a sua própria cena à sua maneira e desprezando a “cópia conforme”, até ao efeito especial final oferecido pelo grande artista Zina, da montagem orgânica e omnívora que a Marta cavou e escavou até aos limites, até ao som e à fúria dos baixos e dos silêncios do Felipe Zenícola. Um filme meu, do Zé, da Marta, e de muitos outros que eu nem sequer conheci. Está aí, pronto para ser mostrado, feito com o amor, dedicação, tempo e trabalho que todos ofereceram, o dinheiro dos amigos, da filha, das mães. Feito sobretudo com a vida, a memória e o presente do Zé, de cada dia. O percurso da ficção e do quotidiano a colarem-se, indestrinçáveis, com contradições e defeitos impressos para sempre. Haverá espaço para gestos destes que, na luz ou na escuridão, continuam a existir em muitas partes do mundo, neste mercado onde só prémios, subsídios ou milhões contam?


Amanhã, 24 de Outubro, Guerra estreia no DocLisboa. Estão todos convidados.

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