quarta-feira, 14 de maio de 2008

contos da Vida



Acabo de assistir a Conte d'été de 1996 e as convicções saem reforçadas. Existe um cinema segundo Rohmer, como existe um cinema segundo Rivette. Dois grandes metteures, singulares per si.
Rohmer é, como o seu comparsa, um cineasta da realidade, que prefiro chamar da vida, mas ao tom mais contemplativo e ascético de Rivette (sim Mizoguchi), em Rohmer a vida aparece como coisa não somente reconhecível mas sim total.
Total no sentido em que o reconhecimento/sentimento do mundo, em Conte d'été, por exemplo, nos é transmitido com o aumento da palavra rumo a uma apreensão absoluta do ontológico. Algo que não tem nada a ver com naturalismo nem realismo convencionado (vale para Rivette, no seu caso). Porque se os filmes de Eric parecem os mais fáceis do mundo, são, não tenho dúvidas, os mais intrincados – a vida não cabe num bloco de uma penada, mas cabem contos do humano, que é o que a câmara singelamente capta.
Jonathan Demme is my favorite director by far. His films to me have these rough edges, that he so perfectly creates. Things are just slightly off in certain moments, but they are perfectly modulated and he has meant to put them there. This one doesn't just hit me emotionally, in terms of latching onto the guy who just misses a break...because he's essentially a loser, but a sweetheart. But It's the first twenty minutes. All that's going on is two guys talking in a fucking car - and that's it! This to me is heaven. Then the film branches off with one of them and we watch his life unfold. It's so fucking amazing the way the movie sets you up to accept whatever happens. It's like you've just been sucker-punched. And it is so well written and so well performed. A lot of my first film, Hard Eight, is patterned after Melvin and Howard's kind of structure - I just didn't do it as well."

Paul Thomas Anderson sobre Melvin and Howard (Jonathan Demme) (1980)

Vida

É isso, não é “Cinema”, é Vida, Vida e muita Vida. É uma realidade ontológica e reconhecível que me agarra e me dá um balão de ar que me permite continuar a amar a coisa. Um Mundo que é este e uma bruitage sonora que permite à vida - ao peso e ao sangue - todos os recantos e todas as luzes, para lá de qualquer limitação castradora. Há homens e há mulheres (sem aspas). Há lugares e há barulhos (sem aspas). E há muito Cinema, há o tal Vertigo e o tal Marnie. Músicas, teatros, espelhos…
A Muda

por João Bénard da Costa

"Montrer mouille"

SERGE DANEY

"O destino impele-me para o desconhecido e eu bem o mereço"

HOLDERLIN

(fala de Hyperion a Diotima em Hyperion, citada no final do filme, voz de Lufa Miguel Cintra sob (ou sobre) o écran negro).


1 - Por acaso, escrevo sobre O Último Mergulho no dia em que a imprensa portuguesa publicou as primeiras críticas aos dois primeiros filmes ("O Ar" e "O Fogo") da série "Os Quatro Elementos" em que João César Monteiro se atirou à Água. Foi uma encomenda da Televisão Portuguesa, depois de uma proposta de Paulo Branco. Os críticos que hoje leio espantam-se (alguns, virtuosamente, indignam-se) que os autores dos episódios já estreados (João Botelho e Joaquim Pinto) se tenham esquecido que estavam a fazer telecinema e não cinema. Ainda não vi os ditos filmes. Mas, se tiverem razão, benza-os Deus. Deus, que abençoou certeiramente O Último Mergulho, que é só cinema, todo o cinema e nada mais do que o cinema. César Monteiro não esqueceu a televisão ou (como é que dizem?) o visual. Pelo contrário, muito alembrado deles, virou-lhes as costas. Onde queriam chegadinho, ficou longe. Onde queriam longe, ficou chegadinho. Inventou as distâncias. O cinema é a arte dessa invenção. E é possível ouvir as citações finais do Hyperion - uma em francês, outra em português - como manifestos estéticos, brados guerreiros sobre o cinema e pelo cinema. "Não deixar que a guerra se arraste, por amor à paz". "Esta terra coberta de luto, desnudada, que eu tanto queria vestir de bosques sagrados e adornar com todas as flores da vida grega" é também a terra pilhada do cinema, em 1992. É também, mas não é só.Como O Último Mergulho é também, mas não é só, um canto fúnebre. O Último Mergulho é um filme sobre o Cinema e sobre Portugal. Como todos os filmes anteriores de João César Monteiro. Este só talvez seja o mais raivoso. Mas tropeço na ternura e tenho menos certezas.

2 - Vamos lá então começar pela raiva e pela ternura. Mesmo lembrando-nos bem das provocações das Recordações da Casa Amarela, jamais César Monteiro foi tão longe nos excessos verbais. Nunca em filme português algum se ouviu linguagem tão desbragada e tão "off" (o monólogo da velha paralítica durante o silencioso jantar dos dois candidatos a suicidas). Como se recorda no filme, antes das Salomés despirem os sete véus, já dizia o velho Herodes que ou te calas ou te fodes. César Monteiro mediu as distâncias e decidiu não se calar. Até porque este filme é também - eu diria sobretudo - um filme sobre o silêncio: uma protagonista muda, cinema mudo. Abre-se e fecha-se o som. Fez-me lembrar um texto muito antigo do Langlois, a propósito do L'Atalante de Vigo, em que ele dizia que há filmes em que, fechado o som, a imagem se achata, e outros em que, aberto este, a imagem adquire volume. Os dois planos-sequência das duas danças de Salomé (um, com Strauss, outro sem ele) parecem estar no filme para demonstrar que há um terceiro caminho. Se a imagem não se achata na dança muda (ou na dança da muda), é porque na retina e na memória persiste a dança musical. O que prova que o cinema é questão de tempo: sobretudo questão de tempo. E é esse tempo que vai deixando que a raiva pouse e que a ternura comece a vir à tona de água. A primeira dança vê-se com admiração cúmplice, saboreando as transgressões, sucessivas e compulsivas. É uma sequência de antologia. Mas é de ontologia que se trata. E, por isso, é quase impossível ver a segunda dança sem os olhos rasos de água. É já da ordem do mistério, do mistério do cinema. A grande pureza só possível no grande vazio e no grande silêncio. Este filme começa afinal com tangos e fados rascas e acaba com as "Variações Goldberg" quando "as desgraças excederam o limite" e quando (depois do evergladiano plano dos flamingos) Hyperion evoca Diotima "Ó minha amada!".Mas o exemplo supremo da passagem de um registo a outro, ou seja da raiva à ternura (podia dizer da abjecção ao sublime, mas não é exactamente a mesma coisa e as palavras e as imagens são de alta voltagem) é a sequência que encerra a primeira noite, depois do Santo Antoninho, do chafariz, da "Cantiga da Rua", das putas velhas e dos bêbedos. Os protagonistas entram numa pensão, chamada 25 de Abril. Três mulheres e dois homens. A pensão é rasca, a situação é rasca, a dona da pensão é rasca, a canção que Eloi trauteia é rasca. Os planos, esses, quer o da escada (Frenzy) quer o do corredor (Vertigo) são hitchcockianos. Há uma cadeira no fundo do corredor. Entramos primeiro no quarto que Eloi partilha com duas pegas. Continuamos "a baixo nível", com uma delas sentada na pia em demoradas lavagens que só por graça se podem dizer íntimas. Corte súbito e passamos a um grande plano de Samuel e de Esperança olhando a câmara, sentados, enquadrados a meio-busto. E começam a fazer-se festas um ao outro, muito tempo, todo o tempo. Nunca deixam de olhar para a câmara como se estivessem diante de um espelho, espelho que é ela (câmara) e somos nós (espectadores). Como se nos fizessem festas, também a nós. A situação é cumulativamente "natural" (sendo ela muda, ou surda-muda, só essa comunicação lhes é possível) e "artificial". Ou cultural, já que todo o plano (longuíssimo) é uma homenagem ao cinema mudo, revisitado e glorificado. Mas não se passou de um mundo a outro sem mais aquelas. A alma e os corpos não se separam assim. Obscena (isto é, fora de cena) prossegue a banda sonora, recordando-lhes e recordando-nos o que se passa no quarto ao lado. Até que a câmara recua, situando os dois, sentados na borda da cama. Ambos se deixam cair para trás, cair para ela. Corte e a noite acabou. No dia seguinte, um dos suicidas continua de ilusões perdidas. O outro, sabe já por que e para que quer viver. No cinema mudo, inventou-se o amor. No corredor de Vertigo perde-se um personagem e ganha-se outro.

3 - Dos "Quatro Elementos" da série de que O Último Mergulho faz parte, César Monteiro escolheu a Água. Em todos os seus filmes anteriores (não me estou a lembrar agora de nenhum que me desminta), era já o elemento lustral associado à Mãe (Recordações) ou à Morte (À Flor do Mar). Todos eram filmes líquidos. Aqui - embora gente mais distraída vos vá dizer que a água é mero pretexto, associada à história do último mergulho - tudo e todos banham nela. Eloi escolhe-a, fiel ao pacto e à segunda noite, para o salto mortal, de pés e a pique, como convém ao personagem. Mas, nesse momento, o seu jovem companheiro separa-se dele e vai comprar o manjerico com que desperta a amada do sono. E junto ao mesmo rio (afinal duas vezes), depois de múltiplas rimas com ramos e com flores, acontece esse inadjectivável travelling no campo de girassóis. Agora, sim, a câmara quase roça os rostos e as flores. E é o sol (rima maçónica e mozartiana das insígnias dos azulejos da cervejaria aonde a muda fala a sua carta em francês) que se multiplica em todas as suas alegorias, para a grande explosão lírica de um amor finalmente diurno. "Os meus pensamentos mais sublimes são como chamas que apartam o gelo'.

No princípio, o homem mais velho dissera ao homem mais novo, impedindo-lhe o último mergulho, que o céu pode esperar. Por ele, esperou duas noites, uma de fado e outra de ópera. Mas para aquele que a desoras fora ao pontão para morrer, o céu terá que esperar muito mais. O cinema mudo e o cinema sonoro - ou seja o cinema, ou seja a vida, ou seja o amor - determinaram a muda mudança. E, como num filme de Rossellini, o milagre aconteceu. Por força de duas viagens até ao fim da noite e de tudo quanto nessas viagens se viu e se viveu. Uma velha que tinha um cão (e debaixo da cama o tinha), uma "verdadeira princesa", um mercado, um barbeiro que canta "O Barbeiro de Sevilha", elevadores que sobem, elevadores que descem, um pé numa almofada, marinheiros russos a cantar "Lê Chant dês Partisans". O inventário podia ser muito maior. É da acumulação de tudo isso e dos raccords entre tudo isso (por exemplo, o raccord que leva da criança entregue pela mãe ao velho rei Herodes do massacre dos inocentes) que nasce o novo olhar e o olhar novo.

Consolo, só em nós o poderemos buscar. E encontrar.

4 - No princípio deste texto, invoquei Deus. Não foi em vão. O Último Mergulho é um filme sagrado, um filme místico. Quem souber, saberá. Mas Deus - de Deus - é também o alter-ego que João, o realizador, inventou para si nas Recordações da Casa Amarela. João de Deus. Veio para ficar. As noites de O Último Mergulho (prodigiosamente fotografadas por Dominique Chapuis) têm a luz e a sombra das noites das Recordações e visitam os mesmos bairros, os mesmos becos, os mesmos jardins. Nunca Lisboa foi tão nocturna, tão lívida, tão secreta, tão recôndita. E, no fim da primeira noite, pouco antes da subida à pensão 25 de Abril, Deus - João de Deus - visita o filme, esperando, à porta de uma latrina miserável e com um rolo de papel higiénico na mão, que de lá saia a sua protagonista. Depois, ele vai satisfazer necessidades fisiológicas e ela necessidades teologais.

Mais tarde, no fim da dança dos sete véus (a primeira), Salomé pede a Herodes a cabeça de João de Deus Baptista. A cabeça do realizador.

No imenso risco deste filme de tudo ou nada, o realizador jogou a cabeça no salto mortal da repetição das danças. A segunda dança é, de certo modo, a resposta ao pedido de Salomé. Se dançares para mim dar-te-ei o que pedires, peças o que peças, tinha prometido o Tetrarca. E cumpriu a promessa, quando "a máquina do universo já tremia".

Aliás, não jogou a cabeça apenas nessa sequência. Jogou-a em todo o filme, nesses sucessivos mergulhos que correspondem aos fulgurantes raccords. Cada um desses raccords (tanto como do da maternidade, gosto do que nos leva das ruas do Cais do Sodré ao interior do bar, onde está o bebé ao colo da italiana) é mais uma descida para o fundo. E do fundo do poço (o poço do profeta) passa-se para a mais misteriosa sequência, essa do quarto da Esperança, com os ramos de árvore à cabeceira e o pé pousado na almofada mais breve e ocultamente silenciosa. Depois, é o longo travelling a seguir a protagonista, sozinha, à noite, num jardim de Lisboa. É o fim da noite, é o fim da mudez, é o fim da mudança. A maré começa a subir e a última água é baptismal. Mais ce qui m'étonne, c'est 1'Espérance. A citação é de Péguy. O sujeito da oração é Deus.

Assim se consome este "projecto verdadeiramente extraordinário". Com uma quadrilha de pêgas e ladrões, César Monteiro quis estabelecer o Paraíso. Entre girassóis e flamingos, conseguiu-o.

terça-feira, 13 de maio de 2008

Foda-se, estou cheio de cinema, ou Cinema. O que me lixa é que ainda não descobri qual dos dois me fode. Quando isso acontece volto sempre a César. O Salvador.

Aqui fica algo que prometi:


Estimada señora,su carta me comunica una mala noticia y me apena profundamente. En efecto yo había conocido a João César Monteiro en condiciones bastante extrañas. Un hombre casi unidimensional físicamente y una película que confesaba todas las dimensiones disimuladas y camufladas del alma humana. Humano, demasiado humano. He aquí, definitivamente, el mensaje que yo recibí a través de la película. Yo, por contra, vengo de una región en la que el culto a lo no dicho está profundamente enraizado incluso en los espíritus más iluminados y en la que una obra de una sinceridad así no podía menos que ser considerada como escandalosa y provocadora. Pero, en lo más profundo de mí mismo, asistía impotente a la escena en la que ese álbum, digamos impuro, se quemaba y no podía evitar pensar que ese hombre quemaba también la esencia de su propio ser. Que, en un mundo en el que la apariencia triunfa sobre el ser, un personaje así no podría soportar siquiera su propio peso (de ahí probablemente esa excesiva delgadez), no podría seguramente soportar toda esa parafernalia que nos obligan a acarrear en nombre de la moral los bienpensantes y el orden establecido. Más tarde, cuando supe que había intentado varias veces suicidarse mediante el fuego, no puede evitar considerar su acto como un auto de fe, un acto de fe. Del auto de fe del libro a su propio auto de fe, he ahí su irónica sonrisa sobre el mundo en el que vivimos y que está lleno de gente que pretende ser lo que no es y que no tiene otra cosa mejor que hacer que juzgar a los demás. La "comedia divina" es una película emocionante tanto por su valor como por su sinceridad. Tengo una gran estima y un enorme respeto por la fragilidad de alma y el espíritu artístico de su autor.


Abbas Kiarostami, Festival de Cannes de ese mismo año.Teherán, 11 de agosto de 2003

...my blade without runner II


Por um lado – o lado «ficção científica» que vem de Bradbury – é um filme singularmente premonitório, dado que cada vez mais o mundo da cidade de Montag e dos iletrados audiovisuais é o mundo nosso. Não, ainda não se queimam livros e provavelmente, ao contrário do tempo de Hitler, não se voltarão a queimar, porque o mal já não reside neles. Mas são tão minoritários como em Fahrenheit (e cada vez o serão mais) os que amam os livros como os resistentes deste filme o amam. E são igualmente minoritários os que são capazes de amar o cinema com o inocente e deslumbrado olhar com que Truffaut o olhou. A «grande engrenagem da minha vida», «os meus amores gémeos» (filmes-livros, livros-filmes») de que a vida são hoje engrenagem? Onde estão os que são capazes de os citar como Truffaut os citou? Citou livros (e nos autos-de-fé do filme figuram todos os que o realizador amou) mas também citou Hitchcok (a cantilena da escola, a casa do Psycho trancada), Nicholas Ray (o candeeiro do Johnny Guitar), Dreyer (a Joana d`Arc), Murnau (a passagem da ponte). «Retomei os telefones de Griffith, os factos de Carole Lombard e de Debbie Reynolds, o carro de bombeiros de Mr. Deeds Goês To Town (…) Ter o direito de citar os títulos e os autores que quiser. Haverá tantas citações no Fahrenheit 451como nos onze filmes de Godard juntos.»

João Bénard da Costa

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Decepção violenta, Shine a Light é um filmezinho-concerto sem fogo nem gás. Digo-o eu, um grande admirador do cinema de Scorsese, que considera The Departed, o filme anterior, fabuloso. Nesse filme, a cena entre Di Caprio e Vera Farmiga, em que Scorsese desmultiplica a narrativa ainda há-de ser considerada um dos grandes momentos do cinema do Ítalo-Americano.
Rolling Stones (e tudo o que eles acarretam), um palco grandioso, imagens de arquivo e a dificuldade de juntar tudo isto.
Ora bem, o cinema – as imagens e os sons – de Scorsese, mesmo nos momentos de acalmia, sempre se regeu por pulsões e abismos vertiginosos e por vezes terminais, e sim, muitas vezes os Stones ajudaram a criar os embates.
Desta vez a “coisa” era literal e o objecto tinha tudo para explodir, ou então o contrário, ficar como uma problemática, objecto teórico, de algo difícil de aglutinar.
Mas o programa é demasiado linear, simplista e sobretudo pueril e inofensivo. Mesmo aquelas propaladas imagens a preto e branco, a dúvida do cineasta, qual 8/2, soa demasiado a embuste e a pré-fabricado. Está lá tudo, o grão, a câmara a tremer – para justificar todo o estilo documentário – o tremendo speed da improvisação, etc...mas sentimos que é introdução puxada, que poderia ter sido filmada aparte, ausente da gravidade da chegada da hora.
Depois chega o concerto e a linearidade é total, é que nem as formas – angulações, luz, soluções visuais, etc… – são muito interessantes, salva-se Keith Richards nas suas acrobacias, ou, por vezes, Jagger e as entradas, mas é tudo muito pouco. Mesmo a montagem, que talvez seja um dos grandes domínios de Martin, é rigorosamente funcional e quase académica, falta Telma, falta tudo...e, por vezes, parece televisão…
Os interludios de imagens antigas da banda são igualmente adivinháveis, sem surpresa nem acrescento, tudo é programa – é todo o esperado, sem rasgos. O melhor do filme, e era bastante mau se assim não fosse, é mesmo a qualidade sonora. Pois o plano final é aberrante, longo e desnecessário, e poderia, ohh como poderia, ter ficado como uma joissance ao seu talento no que à construção do plano sequência diz respeito. Chegamos a pensar em Raging Bull, mas logo a subida da câmara ao infinito estraga tudo.
Dito isto Martin é um dos meus três cineastas favoritos.

orgulhosamente AMADOR


A arte de amar

A crítica é a arte de amar. Ela é o fruto de uma paixão que não se deixa devorar por si mesma, mas aspira ao controle de uma vigilante lucidez. Ela consiste em uma pesquisa incansável da harmonia no interior da dupla paixão-lucidez. Um dos dois termos sendo mais forte que o outro, a crítica perde uma grande parte de seu valor. É necessário que ela possua esses dois motores. É evidente que não está em sua proposta entreter o leitor nessas tagarelices tão difundidas em tantas gazetas. De críticos eles só levam o nome, e degradando o termo, aviltam a função e abaixam aqueles que a praticam. Considerar o cinema (porque é dessa arte que falamos) como um assunto de conversa e somente como tal, me parece inqualificável. Visualizá-lo unicamente como objeto de interesse pessoal (ganha-pão, ocasião de construir um nome e aparecer, possibilidade de vender um roteiro ou se vender), ou utilizá-lo para conduzir um combate ideológico, político, religioso que lhe é estranho, resumindo, inflar o ego ou uma causa, a mais nobre que seja, em detrimento do cinema, trai uma desonestidade intelectual consumada. A arte exige da crítica que ela lhe sirva e não que ela se sirva da arte.

É porque a arte tem uma necessidade vital da crítica. Sem ela, a arte não pode existir. E isso de duas formas. Primeiro, uma obra de arte morre, se não se desencadear, por seu intermédio, um contato entre duas sensibilidades, , a do artista que concebeu a obra e a do amador que a aprecia. O próprio fato de sentir profundamente uma obra, e depois de propagar seu entusiasmo, constitui uma ação crítica, mesmo que ela seja apenas oral. Um só amador basta para restituir o verdadeiro valor às obras ignoradas, como aos artistas esquecidos. A existência material de uma obra de arte, com efeito, não vale nada em si. O que era para nós, ocidentais, até 1952, Mizoguchi, o maior, talvez, de todos os cineastas? Nada, ou apenas uma aglomeração de película tão perdida nos estúdios japoneses quanto foi Angkor Vat em sua floresta. O acaso teve a bondade de preservá-las, como ele fez com Pompéia, com a Vênus de Milo, Vermeer ou Vivaldi. Seu capricho poderia muito bem ter sido destruí-las. Nem mesmo a lembrança, nem mesmo a idéia delas. Só importa, com efeito, a ressonância que as obras, e por conseqüência a arte, provocam na consciência dos homens. É nela e por ela que as obras vivem.

A melhor prova vem de que as obras melhor expostas à visão de todos, e mesmo as mais badaladas, são muitas vezes tão mal conhecidas quanto suas irmãs enterradas debaixo da terra ou desgarradas no fundo de um celeiro. Aí também, se uma única sensibilidade não foi tocada no mais profundo de si mesma, se ela não extraiu a vida ardente contida na forma e não ajuda os outros a partilhar sua emoção, não adiantará ter mostrado a obra ao mais vasto público, ela desaparecerá tão rápido quanto uma miragem. A curta história do cinema é rica em exemplos de filmes vistos por milhões de espectadores e entretanto completamente desconhecidos. Foi preciso revelar Murnau e Keaton, como Lang (saegundo período), Hitchcock, Walsh, Hawks, Losey, etc. Inversamente, falsas glórias, Clair, Feyder, Pudóvkin, etc., enterram-se progressivamente no brejo dos esquecimentos estéticos merecidos. Considerada sob este ângulo, o único possível aliás, a crítica torna-se sinônimo de invenção, no sentido corrente do termo e no de descoberta. A verdadeira crítica “inventa” uma obra, com se faria com um tesouro: ela capta, mantém e prolonga sua vitalidade. Ela descobre, por um incessante requestionamento, o valor dos artistas e da arte. Ela pertence indissoluvelmente ao domínio da criação e, arte ela própria, torna-se criativa.

Porque, e eu abordo assim a segunda forma que tem a crítica de ser necessária à arte, ela se encontra no princípio mesmo da atividade artística. “Toda arte deve criticar alguma coisa”, diz Fritz Lang. É que o artista ocupa, diante do mundo, a mesma posição que o amador1 diante de sua obra.

Ele só sente, com efeito, o mundo como uma obra, seja ela o produto da natureza ou o produto do homem. Ele nem mesmo pode escapar das diferentes explicações dessa obra (o mundo) por sistemas cosmogônicos, filosóficos ou religiosos, que traduzem, nas etapas sucessivas da humanidade, momentos de uma consciência e de uma sensibilidade coletiva. Como a sensibilidade do artista, cuja razão de ser é exprimir a relação de seu eu com o mundo e que recebe até o mais profundo de seu ser as impressões exteriores, poderia evitar um questionamento do mundo e de seu eu e de suas impressões, uma vez que conceber uma forma constitui justamente um ato de acordo ou recusa? Para o artista, criar uma forma é fazer passar o todo sensível, consciente ou inconsciente, de um sujeito receptivo (ele mesmo) num objeto (a obra). Por um movimento dialético mais sentido que refletido (mesmo que nos maiores os dois caminhem ao par), é preciso considerar ora o sujeito e passar no crivo as sensações que ele deseja transmitir, ou seja se criticar, ora o objeto e examinar a qualidade de sua percepção e de seu resultado. É o método sensível do conhecimento que se resolve na e pela forma.

Ora, a forma, que não pertence ao artista, mas deriva da arte na qual ele sentiu a necessidade de se exprimir (não se imagina em pintura como em música, e um grande escritor não pode ser, sob hipótese alguma, um grande cineasta e inversamente), é o elemento dinâmico ao qual se dedica totalmente o artista para controlá-lo do interior, “formá-lo” até que elo seja o signo sensível e evidente de uma existência única, a sua própria, e depois abandoná-lo na corrente dessa arte da qual ele saiu e na qual, ser vivo e singular, ele vai desabrochar único e independente, dali para diante. Aí, ainda e sobretudo, a crítica será necessária ao artista. Pois é forte a tentação, e poucos artistas escapam em algum momento de sua carreira e às vezes para sempre, de arrancar a forma de sua arte e de se apropriar dela, sem respeito pela vida própria e específica dessa arte. Aqueles que contestam Eisenstein, Welles ou Resnais me compreenderão. É preciso ser um afluente que enriquece e modifica pela qualidade original de sua fonte a água do rio na qual ele voluntariamente se nutre para fabricar uma soberba peça d’água na qual ele faz para si um espelho que só reflete sua própria imagem, orgulhosa e solitária. O esplendor aparente de uma tal obra não chega a dissimular que se trata então de uma água morta. Para o artista, mais ainda do que para o crítico, como é perigosa e difícil essa busca incessante de uma harmonia entre a sua paixão e a lucidez!

Em qualquer estágio em que se observe, tudo na atividade do artista implica uma atitude crítica. E eu omiti voluntariamente os momentos em que essa atitude será manifesta. Submetendo as influências estéticas ou outras que ele carrega, como suas próprias obras terminadas, a um perpétuo e severo exame, aceitando ou recusando os elementos que lhe convêm ou não, optando por tais ou tais vias, e, sobretudo, tentando atingir, ao se submeter, a essência de sua arte, ele empenha-se num combate em que o que está em jogo é a sobrevivência de sua sensibilidade, garantida pela própria vida de sua arte. Ele transmite a um traço, dotado por si mesmo de uma sensibilidade própria, a diligência de perpetuar para sempre a riqueza de uma consciência íntima.

À crítica, a diligência de revelar seu esplendor. A ela a diligência de conservar a vitalidade dessa chama. Como? Operando a mesma conduta que permitiu a eclosão dessa obra. Sua sensibilidade não deve defrontar-se com o mundo como a do artista, de quem resultará a criação de uma obra, mas simplesmente, sem nada abdicar dela mesma, defrontar-se com essa obra a partir da qual ele descobrirá o mundo do artista. O ideal, evidentemente, seria remontar – fundando-se sempre, e da forma mais estrita possível, sobre a forma do objeto, na falta do qual desliza-se irresistivelmente no delírio de interpretação – ao ponto sensível, espécie de ponto de fixação para o qual convergiram todas as impressões exteriores do artista, e que impôs um estilo único aos múltiplos jorros de formas e de obras novas. Na verdade, a crítica pode esperar, na melhor das hipóteses, cercar esse nó criador. Vivo, complexo, único, um tal centro não se deixa fechar numa definição. Mas basta à crítica sugerir dele a idéia mais exata possível. Porque aquilo que ela deve investigar, com efeito, é inicialmente descobrir no objeto, não o sujeito aparente, mas o verdadeiro sujeito criador, quero com isso dizer o artista em sua totalidade, enquanto esse objeto trai a situação do artista em relação ao mundo; é em seguida remontar do sujeito ao objeto para revelar a necessidade de sua forma, não somente em relação ao artista e a sua penetração do mundo, mas sobretudo em relação a sua arte. A crítica não é nada além de uma tentativa de comunhão entre duas sensibilidades, a do autor e a do amador, na e pela obra, na e pela arte específica dessa obra.

Pois, além do artista, a crítica visa a compreender e mesmo explicar a arte. Em seu movimento de ida e volta, no qual consiste seu acesso a uma obra, ela tende sobretudo a atingir o gênio e a natureza de uma arte. É em nome dela que se explicam suas admirações e suas recusas. Por pouco que a crítica tenha a impressão de que o artista quer lhe impor a sobrevivência de sua sensibilidade por efeitos deformadores, contrários à natureza de sua arte, sua própria sensibilidade se ergue e rejeita a obra. Não é que essa obra não possa ser sujeita à exegese, muito pelo contrário. Eisenstein, Welles ou Resnais, para não falar em Antonioni, Bergman, Fellini e outros fizeram escorrer muito mais tinta do que Walsh, Lang, Mizoguchi, Preminger ou Hawks. E é normal. É só pôr mãos à obra, ou seja, passar do objeto ao sujeito, pois o objeto não foi fabricado senão em função do sujeito, ele é um vasto espelho que só devolve a imagem truncada do autor e de sua “visão” artificial do mundo. Ora, a dificuldade reside na volta, na inteligência desse acordo harmonioso e natural entre o artista, sua obra e sua arte.

Revelar em que o artista enriquece sua arte pela sua obra e como essa obra é enriquecida por sua vez pela arte me parece ser, em definitivo, a pedra no caminho da crítica. Isso se sente, mas como é difícil explicar! Chegada nesse estado, a crítica entra no domínio do incomunicável. Ela mergulha no mistério próprio da arte. Só existe uma forma, então, de se fazer ouvir, e ainda, é por uma posição negativa. Na impossibilidade de exprimir em palavras em que, numa obra, existe arte, quando há verdadeiramente arte nesta obra, é forçoso então demonstrar que, em tal outra, não há arte, ou ao contrário, se ela se engana, descobrir a arte ali onde ela não existe. Nesse sentido, os filmes de Eisenstein, Welles e Resnais têm uma importância capital. Eles são pão sagrado para a crítica, e não é à toa que a partir deles principalmente, a favor ou contra, ela tenta definir o que é o cinema. Da mesma forma os cinéfilos, quando eles rejeitam esses cineastas, são mais unidos por esta recusa do que por suas admirações. Ter os mesmos desgostos implica gostos comuns, sensibilidades vizinhas e uma mesma maneira, apesar das variações pessoais, de se aproximar da arte.

Só o artista prova a arte criando. O amador e o crítico só podem se apoderar da idéia, sentir intuitivamente sua natureza. Eis uma limitação que contradiria o que eu dizia anteriormente sobre a crítica criadora. Não exatamente, entretanto, pois eu penso que o artista é primeiro e antes de tudo um crítico... que foi bem-sucedido, e que a crítica ligada intimamente à arte só se realiza plenamente nele. Um sobrevôo histórico da evolução das artes mostra aliás que foram os próprios artistas que secretam a crítica enquanto função independente. No começo de uma arte, ou do renascimento de uma arte, crítica e arte se confundem. O verdadeiro criador é consciente de sua arte e se submete a ela. Pode-se mesmo dizer que um Giotto, um Homero, como um Griffith, encontram instintivamente e de uma vez só a extensão e todas as possibilidades de sua arte. A crítica começa a se separar do artista quando se trata de aprofundar algumas vias simplesmente esboçadas pelos pioneiros, ou quando técnicas novas vêm modificar a concepção da arte e abrir novas perspectivas. O artista experimenta então a necessidade de travar seu diálogo íntimo em praça pública. De interior, sua crítica torna-se exterior.

Os primeiros verdadeiros críticos, como os primeiros verdadeiros teóricos, são os próprios artistas. Foram o Quattrocento para a pintura, la Pléiade para a literatura francesa, Monteverdi para a música. Foram ainda, no momento do romantismo, Hugo, Delacroix e Berlioz, ou hoje Joyce, Schœnberg, Le Corbusier. Cada vez que o artista percebe uma concepção diferente de sua arte, cada vez que é preciso forjar no público uma sensibilidade nova à qual se dirigirá sua obra, nós o vemos deixando as esferas olímpicas da criação e se engajar no combate, proclamar suas admirações e gritar suas aversões. Enfim, quando já se estabeleceu o hábito de uma nova forma de sentir, o artista volta para a sua concha e deixa ao amador o cuidado da crítica. A crítica, se ela é praticada com nobreza, atinge sua vocação primeira, tornando-se ela mesma uma arte. A sensibilidade do crítico em suas relações com o mundo faz com que ele se empenhe inteiramente, diante da obra, diante do mundo. Uma crítica trai tanto, ou mais, seu autor quanto o artista, a obra e a arte à qual ela se refere. Daí que a crítica é costumeiramente tão incompreendida quanto a arte.

Jean Douchet

(originalmente publicada na revista Cahiers du Cinéma 126, dezembro de 1961; republicada na compilação L’Art d’aimer, Éditions de l’Étoile, 1987)

1 Eu prefiro o termo “amador” (aquele que ama) ao de crítico. Porque um crítico proclamado, infelizmente, não é necessariamente um amador, ao passo que o amador, mesmo se ele não sabe se exprimir, revela por sua escolha uma atitude crítica. A não ser se sua paixão, tornando-se por demais exclusiva, trucida toda lucidez. Mas ele deixa então de ser um verdadeiro amador para ser apenas um maníaco, ou seja, um doente.

*tradução, Ruy Gardnier

domingo, 11 de maio de 2008

Indescritível


Existem filmes sobre os quais me é impossível escrever. Nem que me pagassem. Depois de assistir a Il, Vangelo secondo Matteo, que Pasolini ergueu em 1964, o que contar?
Que Enrique Irazoqui avassala tudo na sua interpretação de Cristo? Alongar-me em descrições paisagísticas sobre a monumental utilização do espaço e do preto e branco?
Referir o fabuloso sentido antropológico ou a música de Bach? Dizer que o Italiano corta sempre no justo momento, elide qualquer sentido de espectáculo e assim redige um memorando ético.
Já falei demais, as minhas desculpas.

sábado, 10 de maio de 2008

Vento nas árvores…

No sentido em que David W. Griffith referiu que o cinema deveria servir para filmar o vento nas árvores. E nunca como neste filme de Mizoguchi, Oyû-sama, 1951, a expressão foi levada tão à letra. Literalmente, pois nunca a natureza – árvores, água, céu, lua, etc… – foi assim agarrada, nem metaforicamente, pois o que o Japonês faz é captar todas as nuances, tragédias, enfim…os destinos de percursos humanos. Toda a gordura que se pudesse colar é vigorosamente eliminada – estamos na essência das tragédias.

É um prodígio a maneira como a natureza nos é dada, monumentalmente iluminada e sentida, volumosa.
Como prodigiosa é a forma – que paradoxo – como o terror das casualidades e das aceitações dos labirintos nos é transmitida, com uma agudez lancinante.
Filme mais terrífico sobre um triângulo incombinável não existe, e o final é o mais doloroso e o mais pacificado que me lembro.

Depois é toda a arte do plano sem cortes, no auge absoluto. A maneira de reenquadrar na mesma sequência – aquela em que Shizu confessa ao marido que casou com ele por conveniência é toda a arte deste intransmissível segredo da envolvência e da modulação. Obra-prima maior que Obra-prima, e constatação primordial que considerar Kenzi Mizoguchi como apenas um realizador é ridículo.

Oyû-sama

sinceramente...

não sei quem é mais palhaço: o escriba ou o visado

do Lat. potentia
s. f.,
qualidade de potente;
poder;
vigor;
força;
poderio;
autoridade;
capacidade de realizar;
força aplicada à realização de certo efeito;
vigor genésico;

do Lat. agilitate
s. f.,
qualidade do que é ágil;
mobilidade;
destreza;
ligeireza;
desembaraço.
do Lat. submersione
s. f.,
acto ou efeito de submergir;
estado de submerso;
...
Ou seja, o cerne do cinema de Ringo Lam não está no melodramatismo nem nos bailados/musicais do cinema de Woo; não está no speed nem no misticismo de muitos dos empreendimentos de Hark; obviamente longe da paralisação em To…só para referir os mais conhecidos.
Lam é um grande estilista das emoções e do compromisso.

ri-se, chora-se e pede-se desculpa*

*Private joke sem joke

Impossível escrever algo sobre o mais inclassificável dos filmes, o filme mais ao lado das bordas, impossível compor sobre....

Fica isto:


Para selar a parceria, Fulci dirige aquele que ainda hoje é considerado pelos seus fãs - e após o relançamento promovido por Quentin Tarantino e Sage Stallone, filho de Sylvester, por alguns críticos também - como sendo sua obra máxima, Terror nas Trevas (The Beyond/L'Aldilà). Na história de Liza, a ex-modelo herdeira de um pequeno hotel em New Orleans que descobre estar morando numa das sete portas do inferno (e esta é apenas a primeira das semelhanças que Terror nas Trevas guarda com Pavor na Cidade dos Zumbis), o que mais interessa Fulci é a criação de atmosferas, a exploração de ambientes macabros, filmar névoas que cobrem horizontes e horizontes que não existem sem névoas (como no primeiro encontro entre Liza e Emily e especialmente na magnífica, inigualável cena final). Se Fulci sempre foi mantido numa posição muito marginal entre os principais diretores de horror da Itália, talvez seja justamente Terror nas Trevas o filme que melhor ilustra o quão magistral seu cinema pode ser, equiparável ao melhor de Argento e Bava. Verdadeiro inventário de todas as idiossincrasias do terror italiano - violência estilizada, sonoplastia exagerada, abandono da narrativa a favor de um domínio completo na construção de climas e utilização marcante do CinemaScope -, Terror nas Trevas se encerra com uma das imagens mais aterradoras de toda a história do cinema: o "além", o "outro lado" do título original toma forma e os protagonistas são envolvidos por ele. Por todos os lados nada além de uma paisagem totalmente desolada, imponentemente absoluta na sua imensidão, circunda o casal formado por Liza (a atriz inglesa Catriona MacColl, favorita de Fulci) e John (o ator neozelandês David Warbeck). Quando percebem que estão cercados, que nada mais existe ao seu redor a não ser um vão que podem chamar apenas de "além", Liza e John correm em direção a esta dimensão desconhecida, e é neste momento de poesia pura, de entrega total ao cinema, que o filme de Fulci se encerra. É o senso de completude e de catarse contidos na última cena de Terror nas Trevas que fazem esta ser uma obra tão única quanto especial na carreira de Fulci; desta vez, ele consegue ir além da imagem.


sexta-feira, 9 de maio de 2008

another spike joint

"Gosto de trabalhar com pessoas que têm talento mas que não estão na escola de cinema"

vale para os estudantezinhos e professorezinhos. Não confundam: o inhos faz toda a diferença.
Conte de printemps, Eric Rohmer, 1990. Como eu amo esta (s) coisa (s), como gostaria de ter sido eu a realizar.
Não é cinema, é vida. Não há histórinhas, há um pedaço de vivência. Não há ideias para lá de uma espécie de pureza cinzelada pela câmara sobre a realidade. É um soco completo e um balão de ar fresco para eu continuar a acreditar no cinema. Pois...é cinema, e muito.

oh Cahiers....



Fizeram merda, agora limpem o chão

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Na Fnac estava a passar o blu ray dessa excrescência chamada Blade Runner, e…tive que me rir. Já não é filme, já nem há sujidade, não estão lá os tão propalados poros – é plástico puro, é imagem de enfeite, é pior e mais “bonito” que os anúncios dos telemóveis. Pelo menos a vhs a que eu assisti há alguns anos atrás tinha a tal rugosidade. Agora é tal e qual um jogo de vídeo sofisticado…

ainda Rib

E outra das coisas mais impressionantes e decisivas do filme de Cukor é a maneira como os palcos e o cinema se inter laçam, como as cenas duram, estaticamente, sem reservas na encenação, etc…e a maneira como irrompe furiosamente a mise en scene puramente cinematográfica. É uma relação de amor entre as duas artes, e é lindo.

Rib

Se hoje me pedissem um top 3 das melhores comédias alguma vez feitas, respondia: Adam's Rib; Adam's Rib; Adam's Rib.
Hepburn é fera; Tracy faz pela vida; George Cukor é um dos cineastas mais elegantes e sofisticados que os states alguma vez tiveram.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Man on a String

Confirma-se o que pensava, mesmo nos filmes menores de De Toth, como Man on a String, de 1960, existe sempre algo de fabuloso. Uma cena, um momento...algo barato mas genialmente posto em cena.
O filme nada é mais (mesmo com toda uma narrativa diferente, o sentido é o mesmo) que um primo menor de T-Men, de Anthony Mann, história de espionagem e contra espionagem entre o eixo América-Russia (a voz-of, e o sentido documental trabalham na mesma direcção de T-Men), mas o final, a cena do elevador, é qualquer coisa bastante perto do cinema de Hitchcok - no suspense, na rapidez cortante da encenação vertiginosa, cena formalmente prodigiosa.

terça-feira, 6 de maio de 2008

Pode até ser menor, na obra de André de Toth, mas Hidden Fear é o que muitos dos filmes baratos - ou muitos dos caros americanos - poderiam ser. Elegantemente funcional, duas/três cenas portentosas, uma humildade calorosa.
E aquela perseguisão final, quase aposto que Don Siegel a viu - e não é só por causa dos planos da mota...
É uma espécie de nervo que nasce do pouco. I like...

é fogo...

...e em The Devil is a Woman não há nada que a pare. O filme é um imenso corrupio entre a impostura da personagem de Dietrich e os décors ultra saturados, com a câmara a trabalhar no sentido de estabelecer qualquer ordem possivél na coisa. Um monumental prolongamento ao infinito, confirmado por um final mais do que enigmático...

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Penso que a "coisa" de Toth, está na decoupage, como obviamente está na maneira quase fantasmagórica como filma os interiores. De resto é um speed tal, na maneira como decorre a acção e como a põe em cena...bom, fiquei impressionado com este Riding Shotgun.

domingo, 4 de maio de 2008

toda uma diferença...(em relação aos imitadores)


History is the Enemy of Art: Philippe Garrel on Les amants réguliers
By Stefan Grissemann
If there’s a place that film history has reserved for Philippe Garrel, it’s to be found somewhere beyond the neat gardens of French mainstream auteurism and far away from the hip dreams of the nouvelle vague and its contemporary beneficiaries. Most film encyclopaedias, even the more specialized ones, shun Garrel as if he were a ghost that only appears every now and then, quietly endangering established histoire(s) du cinéma. Pretend he’s not there, for heaven’s sake: What you don’t acknowledge will never exist anyway. Garrel has thus become something of a phantom, an artist condemned to splendid isolation on the very fringes of personal filmmaking, a director on the outside of everything: a lone master working on the backside of fame, fashion, and the film industry.
But life on the margins has its advantages: the chance, for instance, to develop a very special aesthetic, a unique world view without much interference. Garrel’s wildly personal cinema, its violent intimacy comparable only to the films of Jean Eustache or Maurice Pialat, has given rise to indispensable works: from his early lyrical underground films such as the very alien—and strangely beautiful—landscape musical La cicatrice intérieure (1972), a counterculture version of Cocteau’s orphic visions featuring a radiant Nico, to more narrative productions like L’enfant secret (1982) or Sauvage innocence (2001), a highly self-reflexive tale of cinema. At all times Garrel’s films—as simple materially as they are complex intellectually and aesthetically—seem to open up to worlds as yet unseen. In an article for Libération in 1983, Serge Daney claimed that with L’enfant secret Garrel had “succeeded in filming something we have never seen before: the faces of actors in silent films during those moments when the black intertitles, with their paltry, illuminated words, filled the screen.”
It must have already seemed clear back in 1973, when Garrel was only 25, that this was a filmmaker for the lucky few, a visionary only for those who knew exactly where to look. It must have been obvious that the fragile masterpieces Garrel had directed by then would be hard to be seen by anyone’s, even a connoisseur’s, standards. In a cursory homage to Laszlo Szabo 32 years ago François Truffaut took Garrel’s initial works as supreme examples of cinema’s sensitive nature. Films, Truffaut stated, were like babies—it just wasn’t enough to bring them into the world. Will anyone, he wrote, ever be able to see “beautiful and inspired” films like Marie pourmémoire (1967), La concentration (1968), or Athanor (1972)? Truffaut was right, of course. Nothing has changed in the three decades since: those films—and most of the others Garrel has managed to bring forth since—remain inaccessible, almost invisible, repressed like some dangerous, contagious truth.
With Les amants réguliers, which premiered at the Venice film festival, things are a little different. Its subject alone would seem to guarantee a certain, if limited, amount of attention. Garrel’s unflinching look back at the events of (and after) May 1968 in Paris offers a more generally political topic for public debate—taken very personally by the filmmaker, however. In Garrel’s minimalistic reconstruction—he claims to have based it on his own lost documentary footage of the nightly street riots of 1968—there’s no romanticism, no sentimentalism whatsoever. This revolution is born out of sadness and it’s fought by a wavering, prematurely disillusioned youth. How much this film is, almost uncannily, in keeping with the times can be seen at a glance: the emblematic images of burning cars and embittered immigrant kids of the Parisian banlieues in 2005 shine through Garrel’s unknowingly premonitory recreations of 1968. The director’s son Louis plays the loner François, a poetic, unhappy soul who winds up in the midst of a revolution that he cannot fully understand—and with his life going down the drain. The conditional love of the girl he meets, Lilie (Clotilde Hesme), only hastens his personal decline. Les amants réguliers carries the weight of a chef d’oeuvre with its epic, three-hour length and the precious, serene, high contrast black-and-white photography of master DP William Lubtchansky. The assured mise en scène, subtly blending autobiography and literary fiction, makes for a dreamlike quality, a fascination that is prototypically Garrelian. History is never simply repeating itself, and tragedy does not return as farce—it comes back as a melancholy love letter to those who vanished with it.
Cinema Scope: In Les amants réguliers, a very subjective, very personal take on May 1968, your son Louis plays a 20-year-old guy getting caught up in an unexpected revolution. You were 20 in 1968 as well. How autobiographical is this film?
Philippe Garrel: It’s autobiographical only as far as the period is concerned. The love story on the other hand is more Romantic, very literary. But formally the film is of course very personal: the scene in which Louis meets the girl crossing the street is deliberately shot like a newsreel. I did shoot a lot of documentary footage of the events of May 68 myself in 35mm, but unfortunately I lost all the negatives of that material. So I tried to reconstruct those images now, three-and-a-half decades later. I tried to shoot them exactly the same way again. In that sense, Les amants réguliers is less autobiographical than a reproduction of the films I shot at that time. That is as far as the autobiography extends: it concerns the period, the climate, the morale of that story. The romance part has more to do with Proust, though, and other literary references. I am now 57 years old, this is my 24th film, and I did in fact already create films that were a lot more autobiographical—films like L’enfant secret. In Les amants réguliers, the love story needed to be more universal, more classical, so that it would make identification possible.
Scope: Your gaze back at the Parisian May of 1968 seems quite pessimistic—or maybe more precisely, skeptical. You are not romanticizing the period at all, the film is completely unsentimental. It also seems very honest, as you focus on the uncertainty of your protagonists, on their uneasy mix of emotion and ideology. The revolution that you describe is quite often based more on accident than on heroism.
Garrel: Yes, well, historically May ‘68 has been a great defeat. What makes my film optimistic, though, is the sheer fact of its existence. It is positive to know that you cannot censor this era at last. Art always finally tries to re-establish different truths of events; there’s never just one truth to an event, after all, but always many. So my film provides an alternative, a personal truth of the time of May 1968. I was able to make this film from a participant’s point of view, like someone who directs a movie about a battle that he himself actually fought. I am an eyewitness of that time, and I can show what I have experienced through cinema without any economic intervention or censorship so typical of all industries. I could relate my truth on May ‘68 despite the fact that I had very few means, very little money to do so.
Scope: Two years ago, Bernardo Bertolucci also made a film on May ‘68, The Dreamers—a radically different film. Les amants réguliers almost seems to be the opposite of everything Bertolucci tried to do.
Garrel: The Dreamers is very classical, whereas I consider my film more of an avant garde work. It is shot in a way that is actually characteristic of cinema in 1968. And, by the way, my film cost about a tenth of what Bertolucci used for The Dreamers. In that sense also I think Les amants réguliers is very modern: it makes the most of very limited means.
Scope: Did you have the feeling you had to tell this tale once more—also to revise dominant views on those historical events?
Garrel: In France , for a long time many truths about May ‘68 were withheld because De Gaulle was still around. The role he played during the fights was of course less than glorious, but since De Gaulle to this day virtually embodies the Resistance, which cannot be touched in France , ever, many facts have been denied regarding May ‘68. But since I was there and since I also happen to be a filmmaker—I had already released my first film, Marie pour mémoire, in 1967—I can finally tell my version of that era. That in itself is positive. Other than that, May 1968 has been a serious defeat. And now one of those who lost the battle tells that story once again. It’s a loser’s film really.
Scope: To me Les amants réguliers is much more than just a film about the specific history of May ‘68. It is also about film history, about personal history, about history proper. Isn’t this film in its essence also a tale about the mechanics of history in general, and about the impossibility to recreate history on the screen?
Garrel: No. I think my film somehow resembles Stendhal’s novel, The Charterhouse of Parm a , in which the two Romantic heroes occasionally leave their story by crossing history. No, I have a different dialectic: For me, history is the enemy of art. Usually when artists touch history, they are always prisoners of time, because every time is ruled by history. But it’s impossible to recreate history itself. Cinema is what we have learned to mistake for history, but cinema is only mise en scène. For instance, we think we teach students about the history of Napoleon Bonaparte, but what we really teach them is Abel Gance’s very romanticized movie about Napoleon. When we think about the revolution of 1917, we immediately think of Eisenstein’s Potemkin (1925). Even newsreels from World War II have turned out to be fiction, manufactured by directors after the war. I believe that cinema is an integral part of history itself, also in its symbolic function. Cinema is by now a part of our memory. It is an attempt to rebuild our imperfect memories. In that respect it can be fiction. I do not think art represents history, I think it is a part of it. Even if it’s fake and mythological sometimes.
Scope: Les amants réguliers cultivates a very austere, very painterly kind of beauty. How did you work with William Lubtchansky? Did you let him do what he wanted, or did you have any say in the camera work?
Garrel: That depended really. William and I belong to the same generation, as does my editor, Françoise Collin. This film truly is a generational movie. We all identified strongly with this story. So we decided to exchange ideas often. And since we all have definitely reached the second half of our working lives, it depended very much on who was most awake at a given morning, and who liked to direct things. At our age we tend to group together more easily than we used to do. So in the film there are camera positions that are typically mine, and other framings that are more characteristic of William. We worked together like musicians, really: we had dialogues, like a jazz band that keeps improvising on what had been written. Whoever felt like playing, played first.
Scope: How do feel about your position as an artist working at the very margins of the French film industry? Is that position self-chosen, or was it really forced on you?
Garrel: It has always been like this. Since my very first film. I did not choose to be marginalized. I was literally put outside. I remember my first film, it was a short movie I made in 1964, Les enfants deésaccordées. I shot this film when I was 16 years old. It was shown on television together with another short film that somebody else did. This other director was interviewed for the occasion, and when it was finally my turn, I was told they were not going to interview me since I was so different and just too original. They were not interested. That’s the way I started. I was always considered different from anybody else. So this forced me to make cinema outside of cinema, so to speak. It was only when I met Andy Warhol in 1969—that was after he had been injured—that I realized it was not so bad to be an outsider. To work outside the established art world. In my case this is not a pose at all: I was forced to work that way. Now I’m used to it, so I don’t feel frustrated any more.
Scope: It’s been four years since your last film, Sauvage innocence. Has it become even more difficult to finance your work lately?
Garrel: You know, every cent in Les amants réguliers has come from the political left, even though it’s a production funded by private and public money. That’s not a joke, it’s true. It had to be that way. There was no way you could tell this story that offers a radically left perspective with right-wing money. So yes, it was particularly difficult to finance this film. But I am not the only one. It is becoming more and more difficult for other filmmakers as well to get their productions together. I used to say that I only do movies for myself, but people kept asking me if I was crazy, why I was making films at all then. It has become so difficult—and almost paradoxical—to make true cinema in a period that’s invaded and ruled by industrial images. Had somebody discovered and supported me back in the mid-60s as a great classical filmmaker, my career might have been different. That said, I did have strong supporters in my life: one was Henri Langlois of the Cinématheque française.
Scope: Since your films always seem to constitute their own category, hasn’t it been strange to submit Les amants réguliers for competition in a big festival like Venice ?
Garrel: For a painter, you mean? It’s true, it did feel bizarre, yes.
Scope: Why did you agree then?
Garrel: It’s a tradition of big film festivals to have one work of the avant garde, to include one black sheep. In Venice in 2005 that was obviously me.

sobre a América: Milius e Dante


Flight of the Intruder de 1991é John Milius no seu melhor, o que é dizer muito, dizer sobretudo muita coisa sobre o cinema Americano e sobre a América. Constatar que foi até à presente data a sua última longa-metragem, é um crime tão grande como confundi-lo, somente, como o homem que escreveu Apocalipse Now para Coppola. Por isso é que ao longo do filme me lembrei várias vezes do nome de Joe Dante– outro grande americano esquecido, a fazer coisas para televisão, em vez de se aplicar no cinema. Isto é uma merda, é corrupção. Homecoming têm o mesmo poder de fogo que Flight of the Intruder.
Filmes que desferem golpes potentes e sanguinários ao “espectáculo da guerra”, ás falsidades e mentiras, ao baile de máscaras e ás reversibilidades. Tudo tão azedo que dói, dói bastante.
Milius é mais realista, Dante é metafórico, ambos são tremendamente irónicos. Os seus filmes contêm internamente a explicação porque eles estão – comparados com os Bays e Scott´s – arrumados.
Flight é um prodígio de denúncia amarga e violenta em tom de divertimento sofisticado, pois, ao mesmo tempo que as tomadas de vista e a montagem é algo prodigioso, paralelamente é o mais político e brutal filme de denúncia. Sem nunca ser literal, excessivo, frontal.
É também, evidentemente, uma critica a muito cinema americano e ao seu simplista sentido de lazer e pacificação: é o anti Top Gun, o anti Pearl Harbor…é também anti videogames ou reportagem televisiva, é tudo isto e por ai fora…
São estas coisas que tornam Milius um mestre, como Dante ou outros que com certeza me estou a esquecer.

sábado, 3 de maio de 2008

II Cacciatore di squali

II, Cacciatore di squali (The Shark Hunter) realizado em 1979 por Castellari e interpretado pelo implacável Franco Nero, é acima de tudo um fabuloso filme de aventuras.

Carregado de um supremo sentido artesanal, puro e infantil, é qualquer coisa como um conto de um homem que deixou tudo para trás para ir caçar tubarões; é um filme de perseguições; de pura magia aquática; um humor sincero e sem as lamechices de Hollywood…e, como convém sempre, uma caçada ao tesouro.

Quero lá saber de falhas entre temperaturas de cor ou formatos variados. Filme tão humilde, despretensioso, virtuoso (definitivamente!) e caloroso (sempre as personagens com quem nos identificámos, no cinema do italiano) não há. Disto não se fabrica mais e faz-me atirar para o charco, o termo obra-prima, que tantas vezes uso. Joissance inultrapassável.

Una Sull'altra

Mais um de seguida, agora algo completamente diferente. Realizado em 1969, Una Sull'altra, só pode ser um Fulci atípico, desconcertante, mas muito misterioso. Pelas ruas de S.Francisco, Elsa Martinelli, o grande John Ireland, etc…numa subliminar invocação de Vertigo de Hitchcok. A beleza de Elsa como a de Novak, o serpentear daquelas ruas, o homem que redescobre a mulher…tão clássico como moderno: aquelas janelas desmultiplicadas…uff.

Sette Note In Nero

Outro grande, grande Fulci (pois é, estou na descoberta e ainda existe todo um mundo). Sette Note In Nero é bastante conhecido por ser o filme favorito de tarantino do grande realizador italiano; por este ter usado uma famosa musica, deste, para Kill Bill, etc…Mas as semelhanças não param por aqui, veja-se a sequência de abertura, com os créditos a passar, e constatemos que está lá muito da surpreendente limpeza e claridade do golpe de maturidade que Quentin desferiu em Jackie Brown. A mesma coisa para o uso hipnótico dos zooms, que em Nero como nos últimos Tarantinos, estão ao serviço de uma fluidez e acuidade inultrapassáveis.
Mas é que neste filme todas as formas derivam incrivelmente do narrado, tudo é concordante – mesmo no sangue e visões – ficando então como ponto obrigatório na obra de Fulci e dos Gialos.
Já agora o filme começa onde acaba Paperino, fabulosa e tremenda marca de autor.

*1977

sexta-feira, 2 de maio de 2008

Christopher Walken para Presidente

Mais uma vez é incrível a forma como Ferrara suprime toda a sensação de desfasamento temporal – tal como elidia o mosaico em Mary, mas aqui no que aos flashbacks diz respeito, o que torna tudo ainda mais grandioso – para deixar emergir um filme de um só tempo e de uma só alma.
Escuro e compulsivamente terrifico é um filme sobre o mundo (este) em abismo, sem pinga de gordura ou de pose, implacável – Abel sabe-a toda.
A ultima colaboração com o outro génio, Nicholas St. John, fica grandioso painel sobre a fraternidade, mal, vingança, etc…tudo ao mesmo tempo.


Coincidência incrível. Conhecia de ponta a ponta toda a obra de Truffaut (curtas e longas metragens), excepto metade de La Mariée était en noir – na altura tive que sair a meio, não me lembro o motivo.
Ora é o filme que hoje o Público, em parceria com a Cahiers du Cinema oferece. Outra coincidência fantástica: o prefácio é escrito por Leonor Silveira – A Deusa.
E ainda por cima escreve aquilo que eu sempre pensei; o filme pouco têm a ver com os mecanismos e pulsões de Hitchcok, ou seja, é obvio que é o mundo do cinema e a sua paixão pessoal que emerge, de toda a série b americana, até aos romances que Truffaut tanto lia, uma imensidão!
Já agora, para mim, o ultimo plano do filme é talvez o mais corajoso e forte da sua carreira. Todo o visível no invisível. Todo o dentro no fora.

Assayas

Depois de rever Clean, de Olivier Assayas, continuo cada vez mais espantado. É uma estética feroz, rude, muito muito contemporânea mesmo. No sentido em que capta pulsões e rugosidades das realidades em causa. Neste caso a música, as drogas, as relações geográficas, etc…
Pulsões de um certo tempo – este – em que a velocidade cósmica que abala o humano em questão, exige uma câmara e uma banda som sempre atrás do filmado.
Esqueça-se o factor, “devedor da nouvelle vague”, pensemos em algo entre o cinema da nova vaga de Taiwan (Hsian, Yang, etc…) e o americano Michael Mann. Realidade sensorial, tratamento do tempo decorrente da pressão do evento…
Deixo um dos textos que mais gostei de ler sobre Assayas.

.....

Les années Cahiers

O cineasta Olivier Assayas não teve formação acadêmica – o que não significa que não tenha freqüentado uma escola de cinema. Uma vez que sua verdadeira ambição sempre foi a realização, a passagem pelos Cahiers du Cinéma nada representou senão sua faculdade de cinema. Aspecto bastante coerente para alguém que considera fazer cinema e pensar cinema uma mesma coisa, como duas etapas de um mesmo processo criativo (cf. Contracampo nº 50). O elogiado curta-metragem Laissé inachevé à Tokyo (1982), portanto, pode ser considerado um filme de escola.

Se os Cahiers foram uma escola, seus professores eram então Alain Bergala, Serge Toubiana, Jean Narboni, Pascal Bonitzer... E Serge Daney, é claro. Não por acaso, é constante na obra cinematográfica de Assayas uma tentativa de resposta a várias das questões que ele herdou como crítico, e que estavam entre as questões mais pulsantes daquele momento (1980-1985): o que significa, afinal de contas – e após tantas investigações teóricas –, estar fora-de-campo? (interrogação-chave, por exemplo, para Bonitzer no seu Le champ aveugle, livro-coletânea de artigos – e houve o grande interesse de Assayas, como nas defesas entusiastas a David Cronenberg, pelo cinema de terror, palco privilegiado do fora-de-campo); o que reter da passagem, que traço apreender do fluxo sob forma de escritura? (cf. "Vieillese du Même: Hawks et Rio Lobo", artigo de Daney nos Cahiers nº 230, julho/1971 – a cena de Fim de Agosto, Começo de Setembro em que os personagens conversam, num café, sobre o recém-falecido amigo escritor é quase uma adaptação deste texto que Daney escreveu sobre o derradeiro Hawks); a realidade, antes de ser o seu duplo afirmador, é o que assombra o cinema? (ver tanto "Robbe-Grillet et le maniérisme", artigo de Assayas nos Cahiers nº 370, abril/1985, quanto Irma Vep, filme seu de 1996); recortar e enquadrar o mundo é em si um gesto castrador originário? (aí entram páginas e páginas de Bonitzer, Daney e toda a fase pós-lacaniana da crítica e da teoria do cinema, e entram também filmes como Água Fria e Irma Vep).

Da carreira de jovem crítico, sobressaem os textos sobre a "nova" indústria hollywoodiana, aquela sacudida pela revolução tecnológica a partir de George Lucas e cia, a versão pessoal de Assayas para a política dos autores (com Bergman – Conversation avec Bergman é um livro seu de 1990, em colaboração com Stig Bjorkman –, Tarkovski, Kenneth Anger e Bresson no topo) e a fascinação pelo cinema de Hong Kong, o que vai da observação atenta à nouvelle vague de HK – ainda começando naquele momento com os primeiros filmes de Ann Hui, Tsui Hark e Allen Fong – até a busca por uma genealogia do templo de Shaolin, com a descoberta, um tanto improvisada e tardia, do cinema de artes marciais clássico. Foi sua a idéia, ao lado de Charles Tesson (que anos depois viria a se tornar editor), de fazer nos Cahiers o número especial "Made in Hong Kong", em 1984. Assayas rapidamente se tornou fã do cinema de Liu Chia-liang (também conhecido como Lau Kar-leung, assinatura com a qual foram lançados alguns de seus filmes agora em DVD no Brasil), cineasta que ele sempre viu diminuído em meio à história da Shaw Brothers e do cinema de kung fu de uma forma geral, e que ele entrevistou, mais uma vez ao lado de Tesson, para o número especial de 1984. Enquanto ferramenta de resistência dos chineses, e enquanto cultura popular na sua versão mitologizada, o kung fu permitiu a Assayas encontrar um similar do rock n’ roll: "uma mistura de arte, cultura popular e mitologia coletiva". Assayas é muitas vezes apontado justamente como um cineasta da geração rock – o que, na sua lógica, equivale a dizer que ele é também um cineasta da geração que redescobriu o cinema de kung fu, antecipando o próprio movimento cinefílico que deságua em Kill Bill.

Um filme após o outro

Antes de realizar o primeiro longa Désordre (1986), Assayas escreveu ainda dois roteiros para André Téchine, Rendez-vous e Le Lieu du Crime (ver texto de Tatiana Monassa), além dos roteiros de Passage Secret (Laurent Perrin, 1984) e L’Unique (Jerome Diamant-Berger,1986). Em 1987 ele divide os créditos de uma adaptação de Abril Despedaçado (o romance de Ismail Kadaré também levado às telas por Walter Salles em 2002), filme dirigido por Liria Begeja, e em 1998 Assayas voltará a roteirizar um filme de Techiné, Alice e Martin.

Assayas nunca realmente calculou compor uma trilogia com seus primeiros longas-metragens, mas admite que, além da equipe e de alguns procedimentos estéticos se repetirem nos três filmes, há uma circulação de temas (principalmente no que diz respeito à passagem à vida adulta) e de funções dramáticas que dão a Désordre, L’Énfant de l’Hiver e Paris se Levanta esse aspecto de intercambialidade e coerência interna, configurando uma espécie de trilogia. A verdade é que essa intercambialidade e essa coerência interna perpassam a obra de Assayas. Um filme como Désordre, por exemplo, guarda com Paris se Levanta as mesmas semelhanças que guarda com Clean. Assim como Fim de Agosto, Começo de Setembro, de 1998, é ainda mais profundamente uma continuação para L’Énfant de l’hiver do que qualquer dos dois filmes a este adjacentes.

Une Nouvelle Vie, um novo cinema: o filme que rompe com a "trilogia" é também um filme que busca rupturas estéticas na obra de Assayas, que a partir dali já se vê como um artista seguro daquilo que faz. Experiências com a montagem e com a narrativa, somadas a um primeiro contato com o formato 1:2.35, se tornam mais presentes que a experiência de movimento dentro dos planos, e o resultado é uma vontade imensa de colocar o espectador tão perdido diante do que está acontecendo quanto a personagem do filme. Estar imerso no filme e não conseguir vê-lo de fora, e muito menos à distância, passa a ser mais que essencial: Assayas certamente não é um cineasta da esperteza narrativa. Mesmo quando a estrutura narrativa de um filme seu revela pontos de virada, não é a figura do mastermind o que desponta desses momentos, mas antes a manutenção – forçada porém quase imperceptível – dos seus personagens num determinado estado emocional (pois ele precisa sempre filmá-los à flor da pele).

Essa opção de trabalho conflui para a beleza plástica e a absurda pulsação (dramática, imagética) de Água Fria. É como se ali Assayas reinventasse os movimentos de câmera mais simples, seja através dos longos travellings que percorrem a antológica festa (tanto no seu ápice quanto nas suas reminiscências matinais), seja por um uso da câmera na mão que a faz parecer ter sido emprestada aos próprios personagens do filme, tamanha a organicidade do registro. Movimento: nenhum plano de Assayas pode negar essa premissa. Sua câmera se move, reenquadra, caminha, remexe, fuxica. Quase sempre com uma certa pressa em captar aquilo que encontra, como se o elemento móvel fosse sumir a qualquer momento e ele precisasse registrá-lo de todos os ângulos antes disso acontecer. Ele precisa apanhar alguma coisa do movimento do mundo – no que sua relação com a pintura, anterior àquela com o cinema, nada tem a ver com estaticidade. Como disse Kent Jones, Assayas parece tornar a velocidade palpável, e ele talvez seja o único cineasta a nos dar a "poética da era digital em toda sua perfeição malévola" (demonlover sendo o projeto que mais caminha nesse sentido, certamente).

Do movimento se passa à mudança: depois que Assayas explora tanto quanto pode o enredo do rito de passagem na adolescência, o efeito do tempo/movimento começa a levá-lo a um outro lugar. Maturidade, responsabilidade, vida adulta: essas são algumas palavras cujo sentido, antes esvoaçante e impreciso, começa a ser assimilado e processado. Coincidentemente ou não, é também aí que o melodrama se infiltra mais pronunciadamente em seu cinema, atingindo uma forma admirável no belíssimo Fim de Agosto, Começo de Setembro. Embora com uma estrutura muito original e fluida, o filme passa a sensação de um ar mais compenetrado, de uma poesia com menos ópio e mais soro fisiológico (do que Clean é apenas uma nova manifestação). Irma Vep, um pouco antes, tinha sido o primeiro filme em que ele explicitara, face à desordem de signos da cultura visual contemporânea, sua tentativa – mesmo que "fracassada" já de início – de hipostasia e retorno. Reter o fluxo incessante, buscar o encanto dos primórdios do cinema, buscar a pureza das primeiras imagens (aquelas que prometiam ao homem um recontato com o mundo) se torna seu contraponto lúdico ao caos visual – e afetivo – em que os personagens se encontram. A poluição visual desperta em Assayas um sentimento puritano mesmo (demonlover novamente), mas o que o salva do reacionarismo é um desejo irreprimível de mergulhar nesse emaranhado de signos e dar eco a toda sua impureza fascinante. Irma Vep é curiosamente seu filme mais famoso – digo "curiosamente" porque: 1) o filme propõe uma discussão metalingüística que está longe de possuir apelo comecial considerável (ao menos não um que possa tornar o filme mais "vendável" que Água Fria ou Paris se Levanta) ; e 2) como nos contou Eduardo Valente, de Paris, Assayas disse num encontro com ele e outros jovens cineastas que se tratava de um filme que surgiu por conta da complicação que era a preparação de Os Destinos Sentimentais. "Foi um filme feito com tal urgência e falta de meios que ele realmente jamais esperava virar ‘o cara que fez Irma Vep’", Valente disse por e-mail.

Afinidades eletivas

Comparado a Chen Kaige e Zhang Yimou, em entrevista concedida à revista eletrônica Sancho.does.Asia, Assayas se sente claramente incomodado, e confessa não ser admirador dos dois chineses citados (e, cai para nós, ele tem toda razão em discordar da comparação). Ele prefere se sentir dialogando com cineastas taiwaneses como Edward Yang e Hou Hsiao-hsien. Quando da insistência do entrevistador, ele completa: "Não, eu me sinto no limite, do ponto de vista do que tento fazer, com mais afinidades com Wong Kar-wai, eventualmente, que eu creio ter evoluído bem na sua escritura e no seu estilo, ou ainda com Hou Hsiao-hsien quando ele faz um filme como Millenium Mambo ou Flores de Xangai". Sobre Hou, Assayas fez o documentário biográfico HHH: Un Portrait de Hou Hsiao-hsien.

Há ainda um grande número de cineastas que aparecem ecoados na obra de Assayas. Cronenberg (o final de demonlover é pura citação de Videodrome), David Lynch (ainda em demonlover, um pouco antes do final, a cena que lembra A Estrada Perdida), Bresson (Une Nouvelle Vie foi um filme que buscou uma espécie de dramaturgia bressoniana), Shinji Aoyama (a estrutura musical dos filmes), Techiné (Água Fria é em grande medida o Rosas Selvagens de Assayas), Truffaut (menos por um ou outro filme em particular, ou por uma ou outra cena em particular, e mais por uma questão de um projeto de cinema que se assemelha ao do Truffaut). E outros.

Perfeito exemplo de cineasta-cinéfilo, Assayas consegue alcançar um estilo pessoal justamente escapando de usar essas referências do modo que o tornaria um diretor "descolado". Uma vez preparado o set e previamente inseridas todas as referências possíveis, o filme parece apostar numa cegueira diante disso tudo, e o resultado é bastante tátil (ou tateante), bastante intuitivo. A indeterminação e a profusão do jovem e a maturidade do adulto: eis a bipolaridade que estabelece a oscilação-padrão do cinema de Assayas. Há obstinação mais quixotescamente encantadora para um cineasta do que filmar uma visão adulta do mundo com a intensidade de vida de um adolescente? Enquanto "não" for a resposta, Olivier Assayas estará fazendo um dos cinemas mais interessantes da atualidade.

Luiz Carlos Oliveira Jr.

quinta-feira, 1 de maio de 2008


"Film is a battleground. Love, hate, violence, action, death...In a word, emotion."
"Being a hooker does not mean being evil. The same with a pick-pocket, or even a thief. You do what you do out of necessity."

Leone intimo, Leone nostálgico, Leone apaixonante…foi uma vez na América.

Wong Kar Wai - anti publicidade

Porque é que alguém que prefere o cinema puro e sem efeitos, que é da familia dos cineastas frontais, ascéticos, estáticos mesmo, e que acreditam na realidade, gosta de Wong Kar Wai? Principalmente deste My Blueberry Nights? Primeiro, o alguém, sou obviamente eu, que não gosto de publicidade nem assisto a qualquer série de televisão há anos.

Bom, Kar Wai é simplesmente a excepção, talvez única, pois é o único cineasta, ia dizer do mundo, que ao parecer enveredar por esses caminhos todos que enunciei, dá sempre uma guinada, insufla de gravidade terminal os sentimentos do filmado (humanos ou objectos) corta no momento limite, e não só escapa a tudo isso como faz a critica do cinema publicitário dentro de cada quadro e de cada efeito.

Na publicidade não há corpos, há papel, silhuetas, vazios absolutos. Em Wong todas elas são nostálgicas, feridas, e sempre, ou há beira da ruptura e do precipício, ou numa vida acomodada, letárgica, paralisada; muitas vezes também com ânsia sexual, quase á beira de uma febrilidade.
Formalmente Wong Kar Wai é o anti Jean-Pierre Jeunet. O Francês envereda por um absurdo e eufórico festival de todo o tipo de efeitos e cores que não estão ao serviço de nada, são, simplesmente, publicitários mais longos, onde os corpos flutuam sem gravidade e logo se evaporam, ficando unicamente a máquina a trabalhar, os efeitos da nossa era em total exibição.

O Chinês, pelo contrário, numa atitude quase Hitchcockiana , usa os efeitos para logo os evaporar e para deixar ficar corpos, rostos, ferimentos palpáveis, sensíveis. Daí também o rótulo, justo, de cineasta fetichista que cedo lhe foi aplicado. É a maneira como ele olha, logo filma, os homens e as mulheres, como algo aflorado, palpável, de carne, suor e sangue, carregadas de desejos, daí um erotismo devorador que tantas vezes emerge. É esta aproximação/critica que o torna singular.