terça-feira, 7 de julho de 2009



Confesso-me tocado pelo cinema de José Álvaro Morais. Estranhamente tocado. Por algo inexplicavelmente, sedutoramente transcendental. “O mais romântico dos cineasta portugueses” li certo dia algures. Surge-me apropriadíssimo, sobretudo pensando naquela noção em que o romantismo jamais surge dos actos, dos beijos e do resto, sim de algo inatingível, contemplativo, mais profundo e perto do platonismo. Só digo mais isto, e já digo demais: para mim o fundamental em “Quaresma” não é a portugalidade, a religião ou qualquer oposição espacial, não não, nunca, é sobre uma rapariga triste, magoada, enclausurada e absolutamente livre, a mais livre que por lá passeia, tão frágil e potencialmente cósmica como os inclassificáveis risos que constantemente solta, para logo depois ficar indecifrável. E loucura aqui é coisa ambígua, cuidado. É ainda sobre o encanto e feitiço que isso pode provocar a quem não tem medo e a quem está aberto à fascinação. A quem não se importa de andar pelos caminhos ao lado e pelas zonas de luz inclassificáveis. Sobre elipses e sobre fugas. Sobre o vento que sopra. E agora calo-me e penso em rever “Quaresma”. Mas que bateu, bateu. Ficou a ressoar…

Transcrevo um belíssimo texto do João Mário Grilo. A negrito tudo aquilo que eu gostaria de ter escrito.
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Quaresma.
Gosto muito de muitas coisas no último filme de José Álvaro de Morais: gosto que o título não prometa uma história e gosto que o filme não conte a história que o título não promete; gosto que Quaresma não seja uma galeria de personagens a marcharem todas na mesma direcção, mas que seja um ponto de encontro (de lugares e de tempo) entre criaturas que se tocam e se desprendem, como nesses assombrosos planos do avião que transporta Ana (Beatriz Batarda), a aterrar e a levantar do pequeno aeroporto dinamarquês; gosto que o filme seja um poema, mas um poema exacto, um jogo arriscadíssimo e sensual a desafiar a justeza dos planos, do que eles mostram e da forma como mostram; gosto dos personagens e dos actores que os fabricam e gosto, sobretudo, do enorme nível de concentração do filme, que se desprende dos corpos e contamina a luz e a paisagem; gosto que Quaresma seja um filme de celebração do cinema e dos seus poderes e sortilégios, num tempo em que quase toda a gente parece ter esquecido (mesmo, ás vezes, os melhores) o que isso quer dizer. Gosto ainda de ter a certeza que quem gostar de Quaresma é por ter sido tocado pelo cinema de José Álvaro de Morais: como se pode ser tocado pela poesia de Pessoa, o cinema de Dreyer, Bergman ou Minnelli (referências que para aqui são chamadas), a pintura de Cézanne. E gosto, finalmente, que Quaresma seja um filme português.

Sabemos todos como é cada vez mais difícil filmar. É difícil, pelas razões do costume: por escassearem os meios e as vontades, por o público ter sido chacinado pela indústria americana, por o cinema ter sido atirado para um poço de amnésia colectiva e por tudo isto ligado fazer parte de um complot inconsciente para acabar com a única arte que a humanidade viu nascer. Mas é também difícil filmar por cada vez mais coisas estarem a ser filmadas por linguagens que nada têm que ver com o cinema (apesar de terem o seu aspecto). Não basta que um filme exista para que o cinema exista com ele, como não basta um quadro ser pintado para a pintura ser. As famílias, as pessoas, as casas, os desejos e as frustrações, as memórias, a morte... tudo coisas de que este filme está cheio, fazem hoje parte do vocabulário da televisão que se parece com o cinema e do cinema que se parece com a televisão. Ora, é por isso que, na sua imensa diferença, Quaresma é um gesto violento de reconquista, de reocupação de um território que há muito se julgava perdido: o território do cinema e do que por ele se reflecte e se projecta.

Projecção é o termo: é para isso que o cinema existe. Para projectar as acções, as vozes e os sentimentos.
Em Quaresma, tudo parece, no princípio, extremamente pequeno: um funeral na grande burguesia da província, uma brincadeira entre primos, uma rapariga levemente "desajustada" e um homem que adia uma partida para Lisboa. No final, tudo isto é grande: num molhe da Dinamarca, face ao mar do Norte, a rapariga escreve palavras misteriosas num diário, o homem que adiou a partida para Lisboa caminha no meio de moinhos de vento, a vida continua, mas marcada pela força de uma transcendência que pôde acontecer. Como se chega do pequeno ao grande é o mistério do filme. Um mistério raro e precioso que se chama cinema. Cinema que, neste filme, toma o nome de Quaresma.

João Mário Grilo

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