segunda-feira, 12 de dezembro de 2011



“Liebelei” é de 1933 e foi realizado por um cineasta alemão, Max Ophüls. “Strangers When We Meet” já data de 1960 e tem a assinatura de um esquecidíssimo americano de seu nome Richard Quine. Ophüls tem as suas merecidíssimas páginas na história do cinema oficial ou não e o seu monumento final, “Lola Montes”, é o ponto culminante de uma mestria formal e sexual com escassos pares, um dos mais singulares cineastas da mulher e do lírico e das desmesuradas paixões que tudo quebram. De Quine conheço bem menos mas valeria a citada obra para nada dever aos maiores dos maiores, ainda que eu garanta que o vale a pena descobrir em objectos bem diferentes. Pode-se defender que ambos nada têm em comum bem como estes dois filmes se diferenciam como água e vinho. Ou então poder-se-ia evocar o santo nome do melodrama em vão e meter-lhes a mesma etiqueta. Mas não vou nessa e para o “Liebelei” poderia dizer como João Bénard da Costa que tão absurdas mortes finais porque tão absurdas razões e na surdina e emoção pura com que tudo isso é mostrado retira qualquer vontade de assim o considerar. “Strangers When We Meet” já é caso mas bicudo, filmado à largura e com as cores matriciais ou Sirkianas de tão famoso e cultivado género por essas alturas, tudo parece estar dentro dessas normas e desses códigos, o patético inclusive. Fico-me por agora mais neste filme porque a coisa é mais ambígua do que parece. A situação é simples e antiga, um arquitecto de sucesso num dos seus pontos mais altos da carreira, casado e com filhos, é apanhado por uma loira também casada que todas as manhãs leva a sua criança à escola. Conhecem-se nesse ritual e tudo o que se seguirá terá o condão de naquela sociedade despertar escândalo. Kirk Douglas, o arquitecto. Kim Novak, a loira. E se Kirk é tecido a obsessão e persistência e laivos de loucura, no trabalho e no amor, Novak, luxuriante e de presença que tudo à volta engole está paradoxalmente ou não ainda envolta em aura funesta e libidinosamente fantomática da Madeleine/Judy que em “Vertigo” tudo aniquilou, dois anos antes. Lá para o meio ou coisa assim existe um momento particularmente enigmático e obscuro quando numa das vezes em que Kirk encontra supostamente Novak sem querer, ao chamar por ela –Maggie, diminutivo que só o pai algum dia lhe ousou chamar – esta pergunta-lhe a quem ele chama e quais as razões ou audácia, mas isto com uma certeza e igualmente estranheza que nós e Kirk ficámos por momentos sem saber onde é o chão e onde é o tecto. Essa loira jamais foi pálida como ali, severa como ali, assustadora como ali. Ou como contar os instantes que antecedem e concretizam o primeiro beijo que instala o arrojo, nada menos do que assombroso: ele chega-se a ela e vai-a amarrando, ela diz que não que não faça isso, ele faz, ele vai beijá-la a qualquer momento e o impulso é irreprimível, ela diz-lhe insistentemente para a não beijar, ele beija-a contundentemente. Ela a realizar ou ela tramar? A mesma coisa? E depois pelas praias tórridas, pelas pedras e pelo mar, pela casa que eles constroem mais para os dois e para os seus sonhos e desejos do que para o escritor fanfarrão, os encontros enublados em sítios enublados ou os desaparecimentos dela e as dúvidas volvidas certezas e certezas volvidas dúvidas, a noção de que tudo aquilo não existe e é tão fruto da imaginação e vontade de escape e perigo do arquitecto tal como o foi para o James Stewart no Hitchcock citado, é para mim deveras atordoante. No final, depois dos problemas com os respectivos pares, muito mais ele do que ela, e de eternas fugas imaginadas, dizem adeus um ao outro na dita casa das montanhas. Um adeus para sempre que ninguém acredita numa casa hiper-irreal que parece flutuar nas suas cores em arco-íris veladas. Estamos num céu que para eles será a partir daí como inferno ou apenas nos estoura na cara um mundo para lá deste em que aqueles encontros abismais afinal sempre ou nunca se deram?
Pode ser que uma fantasma o tenha transformado em outro fantasma para o resto da vida, pode ser que não. Sem resposta. Tudo tão carnal e ao mesmo tempo de tão fina ilusão, eis o mistério e o triunfo da obra que a todos os instantes extravasa os pressupostos melodramáticos e já é outra coisa de que não disponho nome.



Volto a “Liebelei” e a uma história só aparentemente bem menos fora do mundo e bem menos flutuante – mesmo que uma das mais belas cenas do cinema se passe na neve e num pequeno cosmos de pura magia – do que a de Quine. Na Viena dos inícios do século vinte somos imediatamente introduzidos a um universo operático que orquestrará a tragédia e a gravidade de um tenente que possui às escondidas uma baronesa comprometida com um seu superior e tais consequentes inesperados. Esse tenente, de nome Fritz, conhece numa noite também ela nublada e carregada uma jovem aspirante a cantora e perde-se irremediavelmente de amores. Vai a correr acabar com a baronesa mas o barão ou seu general conclui as suas suspeitas e faz um ultimato fatal a Fritz. Naquele tempo e naquele contexto a honra era coisa absurdamente posta acima do amor e o duelo entre os dois homens é inevitável. Pertence ao barão o primeiro tiro e já não se vai escutar o segundo porque em of e lá longe no contra-campo um amor que tudo prometia é assim espezinhado. A jovem inocente de nome Christine nem em devaneios ou nos seus piores pesadelos poderia tal coisa supor e depois de uma audição que lhe correu às mil maravilhas só quer é beijar e abraçar o seu amado. Procura-o em todo o lado mas quem encontra são os portadores de tão pavorosa noticia. Ophüls cola a câmara à jovenzita e detêm-na a perscrutar o imperscrutável, a adivinhar e a repudiar e ainda a acreditar que tudo não passa de algo transcendente que se vai desvanecer. Terror do presente total e aleatórias distensões. Homilia e estilhaçamento. Mas o ambiente e as certezas adensam-se e adensam-se. Levanta-se e começa a descer umas escadas, e sabemos como este cineasta sabe filmar escadas. Abre uma janela e o plano seguinte já nos mostra uma multidão num passeio em volta de um corpo terminado. Antes um salto até ao desconhecido do que a puta da loucura. À memória inapagável, o risco sem limites. Seco, inaceitável, triste sequência de sabor para lá do amargo. O plano final é o de um cemitério gelado que enegrece precisamente a citada sequência do trenó na neve e que assim pode funcionar como união dessas condenadas almas. A imaculada e o honrado. Ó eternidade gritada um dia.

“Strangers When We Meet” e “Liebelei” têm progressões, movimentos, atmosferas e diálogos para lá do real ou do natural, instaladas campo do irreal. Se os amantes do primeiro parecem ter planado acima da terra para no fim do filme, que não o fim da história deles, dizerem que basta de tanta transgressão e preferirem uma suposta “normalidade”, já não sei a dimensão em que tudo aquilo afinal ficou e o que em cada um deles irremediavelmente transformou e o que se adivinha dali é adivinhavél, naquela paz ninguém acredita e se calhar aquela casa e aqueles altos querem dizer mais qualquer coisa. Já o tenente e a pura parecem ficar unidos no final mas já noutro reino, o dos mortos. Ela tão ainda desarmada percebe ou acredita que naquela vida já não vai ter hipóteses e a ele prefere juntar-se. Naquele momento paroxistico, acreditou-se que para lá da castradora realidade o amor ainda seria possível e um abismo abriu-se.

É provável que só para uns ou só para mim esta leitura faça o mínimo sentido e não delírio qualquer, mas no presumível hiato entre as duas artes, temperaturas e sufocos concordantes. Arte da crença. Quine, a fantasia carnívora e ideada para lá de todos os credos. Ophüls, o amor dos tão jovens que não se conformam na terra. Romanesco enviesado, fendido, carregado. Ambos em certo momento, a arrepio.

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