sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

"O riso é o canto dos anjos".

"A tree grows in Brooklyn" é o primeiro filme de Elia Kazan e pode logo ser o mais belo Kazan, tão magoado como "On the waterfront", tão propenso a brotar e a queimar de lirismo como "Wild River", enfim, tão emocionalmente e nostalgicamente violento como "Splendor in the Grass". Isto para ficarmos em três cumes. Pode ser tudo isto mas faltará sempre o que para Kazan ou Nick Ray ou Fuller era fundamental, um golpe de verdade que obliterasse os mundos e as pessoas captadas e que pusesse o foco em algo que soubéssemos perfeitamente físico e próximo. Visceralidade. Carne. Suor e o sangue que nos corre e escorre e nos faz agir. E as relações...e como são tocantes e ternas e duras nesta Brooklyn a arder de laços humanos.

Uma família e o bairro que as envolve, e tudo isto no mais dentro e no mais intimo que tal complexidade ostenta. Os Nolan, a família com que estaremos duas horas e se quisermos uma eternidade. Temos a mãe, o pai de vez em quando mas no fundo sempre, o filho e a filha que são pequenos mas tão velhos parecem. E mais.

Comecemos por Johnny Nolan, o bêbado e o sem rumo que talvez só o seja para, como se vai dizer, combater a sua falta de talento para ganhar dinheiro. Isso não sabe fazer, mas sabe amar com o coração e a cabeça e o corpo todo. Canta pelas ruas e quando entra em casa. A todos quer alegrar e ver bem. Cumprimenta um a um como se oferecesse sempre algo valioso. Andar a seu lado era como dar a mão a um rei, é o que reconhece a mulher após o turbilhão... Uma criança, portanto. De sorriso tão bonito, tão puro, tão ingénuo. Dos que não sabem jamais distinguir a irresponsabilidade dos dizeres do orgão que comanda a vida, mesmo que com heróicos esforços. Tão, tão inseguro. Tão, tão apaixonado.

Depois, a sua mulher que certa vez lhe vislumbrou esse brilho raro nos olhos que só alguns crentes e desesperados na terra possuem, mas que se assustou pela vida e suas responsabilidades e assim mesmo se esqueceu por tempo fatal. Viria uma redenção sem tempo, ficaria cravada uma marca certamente inapagável do valor das coisas que realmente importam. A entrega final a outro homem só noutra dimensão e distância se adivinha.

Ainda a filha que é anjo protector e consolador do Pai e do irmão também. Menina franzina e delicada que de tenra idade prefere Shakespeare às fábulas e lengalengas instituídas mas que mesmo assim gosta de finais felizes. Devora prateleiras de biblioteca na sua ordem alfabética. Quer ser escritora, fala com Deus e acaba feliz na incomensurável aventura da existência que o filme nos mostra. Frágil e de uma fé sem limites, de seu nome Francie.

Às vezes, em alguns lugares, olha-se lá para fora e tudo faz sentido.

E é sobre tudo isto e mais infinitas galáxias de vida – também não se esquece a tia Sissy que é gozada por amar homens sem conta; a professora que nota a verdade na mentira de Francie e lhe dá a tarte; o engate final do adolescente fã de basebol à mesma Francie; os seus olhares pelas janelas molhadas ou geladas; as idas transformadoras dos irmãos aos telhados, que tanto fazem lembrar o que se vai passar em "On the Waterfront", etc – nesta obsessão pelas pequenas grandes coisas, comportamentos, rostos, andares, famílias, que tão se nota o anacronismo em relação ao hoje, uma nobre tradição, algo que lamentavelmente nas telas contemporâneas pode passar por racionarismo ao "espectáculo do grande" ou igualmente às teorias bem pensantes de fim de curso, pois esses não percebem que o espectáculo e os segredos da vida e disto por onde passámos, sempre serão o essencial da arte. Chamem-me reaccionário, mil vezes.

Filme de anjos, de primeiras vezes e de superação, tal como a árvore selvagem que contra tudo e contra todos teima em crescer sempre, mesmo que vilipendiada. A mestria de Elia Kazan por 1945 é conservar a câmara como elemento altamente preciso e tremendamente sensual que compõe e harmoniza o espaço e a luz e os corpos, que se dispõe para as almas quaisquer que sejam, e já torcer e explodir tudo isso por dentro – o incontrolável que excede o cinema e os truques. Que afecta a invisibilidade da construção e a clareza clássica do recito. A sua modernidade ou o seu temperamento - o máximo de solidificação das formas e dos materiais e, pelo enquadramento adentro, tudo a poder pender para o mais negro ou para o abismo mais inescapável desses destinos. Tal como as imperturbáveis janelas da casa dos Nolan e a neve que se desfaz lá fora. Existem os que confundem os maneirismos vazios e aleatórios da movimentação exterior sobre a cena e só ai fazem coisas "bonitas" e sensoriais (ai os modernos de trazer por casa e os pós-modernos e os que experimentam nas superfícies) e depois aqueles que não desligam uma coisa da outra e onde um suspiro ínfimo lá dentro pode convocar a catástrofe. Aqui é a atenção a esses laços, afectos e dependências, bem como ao afunilamento da esperança, que faz nascer a posta em cena, num sensivél tomar de pulso e de temperaturas a cada singularidade. Superfícies de betão, homens que tremem, e tantas vezes vice-versa, fundamental. A justeza de tudo isso.

Elia Kazan, pulso de aço e interior convulso.

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