sábado, 17 de agosto de 2013

 
 
 

“(…) Vítor Mature, tão injustamente apelidado de canastrão, protagonizou, no Arizona, um sábado violento de assaltos sangrentos, que nunca mais me saiu da imaginação. Fleischer outra vez em Violent Saturday. E, nos dois filmes, era também a glória do scope a afirmar as virtudes cardeais, essas que nos faziam dizer como o cinema era grande.”
João Bénard da Costa
 
Cinema grande é o que realmente não falta em “Violent Saturday”, largura que raramente assim se instalou em território tão íntimo e nada convencionalmente épico, profundeza na absorção de uma galeria de personagens, que mais uma vez no cinema de Fleischer, de tão variada, lacunar e complementar, parece meter, em caldeirão, uma possível enciclopédia da existência e a sua lengalenga. Virtudes cardeais que vão relacionar e fazer corresponder em desmesura, dando razão à personagem viciada em fotografia que só fala em dimensões e perspectivas, homens queimados pelas mulheres e mulheres que se queimam por homens. Uns que não se declaram, outros que se declaram demais. Quem olha nos olhos e quem vira a cara. Os que apagam o fogo e os que nele se pelam.
Pela perspectiva fora apanha-se a fiada toda, e daí a importância, tal como no Western de 59, da relação entre o subtilíssimo Mature e o seu pequeno filho. O pai que se queria desenvencilhar das misérias do seu pai e o filho que queria ver no pai o herói que alguns têm. Heranças de pais que passam para filhos, em perda potencialmente infinita. Questão de remissão dos pecados do mundo por violência como a final que secamente explode na tela? Onde até quem se entregou a um Omnipotente, falo de Ernest Borgnine e da sua família Amish, tem de fechar olhos e espetar gadanhas num instante incomportável ou num instante de salvação suprema? Fleischer decidiu terminar este conto ou o seu mosaico com várias crianças e o seu Deus, depois de tantas entregas clamantes e volúpias retardadas. Alguma coisa quererá dizer essa triangular composição, para o bem que está facilmente implícito ou para um novo e necessário perpetuar do mal. Ambiguíssima imagem final.
Mosaico, grandeza, quadros fixos que se aguentam num único ponto de vista pela abanante perscrutação, coordenadas unidas de sentido ou não-sentido e deslizar de um olhar num espaço ao jeito de um grande tabuleiro universal. Zappings e suspensões. Confluências lógicas e impossibilidades de reconciliação. Falei no final violento, falo no entrecruzar de opostos e no passo minúsculo da diferenciação. Não estamos tão longe uns dos outros, parece-me sussurrar uma espécie de Deus ex machina surpreso, que é essa câmara ousada e tão esclarecida que na sua digressão estabelece a montagem dentro do plano uno, que só quebra por razões que não detém ou pelo excesso que nos finda. Bocados de falas que ficam no ar e regressam, presenças que saem de campo para depois invadirem campos alheios, geometrias que não se aguentam nas canetas pela bondade ou pérfida circundante.
Vertiginoso scope que percebe, de modo natural e sem desculpas, que há que ir até ao fim. Mesmo que as linhas limites se vejam côncavas, retorcidas, deslustradas, deselegantes. Que as dimensões e ângulos entrem em guerras de escalas, proporções e hierarquia. Que se perca ou esfume o fundo que nos conforta. Que um rosto ou uma verdade extrema tenha que conquistar o direito de ir ao grande plano sem que seja a retórica determinista a fazê-lo. Toda a compressão de um dia a dilatar e a detonar a narrativa da causa e do efeito, para se tornar pintura abstracta, tal como a questão da herança resolvida. O cinema de RF cada vez mais condensadamente fragmentado, até a umas certas panorâmicas com split screen lá para a frente.
Epígrafe de JBC que nada tem de saudosismo ou de retrocesso, antes todo o progresso e modernismo que a evidência, a filigrana e garra da posta em cena deste verdadeiro realizador afirma. Alguém que está em sintonia com um passado de um Renoir ou de um Pabst, meter o infinito no quadro cinematográfico e permanecer silencioso, mesmo que a combustão seja instantânea, para assim ousar voos nunca tentados. E lembro-me agora de uma espantosa introdução de António Mega Ferreira (pelo menos ali, grande crítico de cinema) à visualização e construção do outro mundo em que assenta “O Fio do Horizonte”, o nosso Vertigo e o nosso Borges, quando dizia que Lopes e Tabucchi não precisavam dessas linhas da moda e dessa cacofonia barata que, não disse ele mas pensei eu, muitos prodígios, jovens inconscientes ou “mestres”, têm necessidade de forçar em nome de uma suposta evolução que só me cheira a atrofio mercantil, carnal e formal. Enchimento mais perto de um espectáculo multimédia ou do design pós-moderno do que instrumentos de um trabalho e a sua urgência a exercerem potência.
“Violent Saturday” é um grandioso fresco, sempre ao terreno nível. Valsa intemporal, sinfonia total urdida a um só instrumento leve e ordinário, talvez de sopro, para ir em busca de todo o peso. Pintura, música, dança funesta e ávida, poesia, quotidiano, por aí fora, volumosa dramaturgia intraduzível que todo o grande cinema deseja e lá toca.
 

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