quinta-feira, 26 de setembro de 2013

 
 
É por demais natural que espíritos e invisibilidades de universos e existências já desaparecidas nos visitem, para nos tirar o tapete e as certezas. E a História do mundo e dos periféricos anais. O contrário seria ridículo. Assim como será natural que quando desaparecermos, a forma que nos irá substituir, será evadida pelas nossas bruxarias ou por Homero. Quando menos esperarem. São os caixões com corpos ainda pulsantes lá dentro que clamam pelo socorro da maldição. A escuridão encerrada na escuridão. O regresso à noite eterna. É por aqui que o traçado de “Isle of the Dead” rumoreja e assola. Ilha que é uma plataforma onde os mortos puxam pelos vivos que os perturbam. Lhes cantam canções soporíferas. Velhas crenças e lendas que declinam o seu enterro e menosprezo. Oblívios vingativos. Ciência vergada a terror. Corpos que não são os gloriosos da dourada Hollywood, como não são os ordinários do cinema posterior do resto do globo. Estamos noutra ordem ou noutro plano face ao que planamos. Adjacentes a essa, no seu limbo ou por de baixo. Ou tudo obliquamente. Esquizofrenicamente. Mais ainda… Suicídios vingativos. Enfeitiçados mortíferos pássaros da beleza esvoaçados pelo subalterno vento. Línguas de fogo molhadas e movidas a segredos perpetrados e a não-perdão. Um homem tanto sonha e estremece que todas as realidades confunde. And so on, and so on, and so on…
 
A dupla Mark Robson/Val Lewton atinge aqui o seu apogeu. Onde o falsificado solta a sua personalidade pelas constituições do mal real. Conspira com ele. Destruindo o simples corpo presente e simbolismo. Vociferando paredes, pó, folhas, espíritos, tudo. É muito raro, e por isso bastante precioso, que as formas e substâncias que encorpam o mundo em cinema cheguem a ter vida própria. Que a luz, sombras, recortes, psicologia, tecidos ou o inominável fugam da mera questão técnica ou do apuro artístico e acedam a outra coisa. Outra coisa autónoma e incontrolável. A uma animalidade ou delírio que vai estremecer terra e água. Mais além dos prodígios e das flamâncias danosas de “The Ghost Ship” ou de “Bedlam” porque impregnado de um visionarismo circulatório que anula qualquer assomo do papelão ou do truque, ou seja, de um esteticismo ainda possível. A morte no reflexo e no interstício. Cara e olhos e víscera.
 
 E assim, do campo dos soldados mortos recolhidos por soldados momentaneamente vivos que temem a peste, até à peste que tudo cobre do outro lado das águas, uma impossibilidade de saída do hermético cenário. De travelling fúnebre a bruta fusão a frio do que respira e do que não. Robson/Lewton não permitem uma fenda neste cosmos que junta todos os tempos e todos os tipos de organicidade. E a Deusa e a superstição que devora do princípio ao fim do pesadelo abrange muito mais do que essa localização e contexto, representa todas elas e todos eles. O grande comedor. A Jane Eyre por Tourneur e A Ilha dos Amores pelos loucos. Boris Karloff de temerário a Santo. A grande boca aberta negra. Reveladora. Impossível final feliz. O focinho alucinatório que vai pontuando o filme também o vai fechar. E é uma promessa. A mesma com que podemos contar. Eterna lengalenga que tudo liga.

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