sexta-feira, 11 de julho de 2014

 
 
Numa parte dos filmes de Frank Borzage vem ao de cima (ou muito por de dentro) um certo anarquismo, um certo niilismo, perto de uma certa tontaria, que parece muito suavemente e silenciosamente possuir os personagens. Quase sempre os pares, o homem que ama a mulher incondicionalmente e vice-versa. Em “Little man, what now”, o precursor que já contém tudo o que se agravará em “Three Comrades” e “The Mortal Storm”, Margaret Sullavan e Douglass Montgomery sabem que a suposta pobreza é a indubitável riqueza, e assim vão alegres pelo mais precioso demagogismo que salva e é justo. Como dois tontinhos, dirá o são. Portanto, em todo o Borzage o anarquismo ou o pacifismo (tinha dito niilismo ali em cima) ou a tontaria é a liberdade protegida pelo amor, e não é por aqui estarmos em terrenos ideologicamente totalitários que tudo tem mais peso ou elevação temática. Os dois pobres continuam com o maior dos luxos que é a protecção mútua e a certeza da paixão, do caminho, enfim, do primeiro olhar encontrado, e assim jamais alguém lhes fará mal; a luminosa Sullavan, a angélica de outro mundo que não o da sujidade, criatura que voa com o leve sopro Sullavan, oferece a comida dela e a do marido pois tem pena dos que como eles não têm, e o marido ao notar que só tem ar para comer ri-se para ela, beija-a e abraça-a sem amanhã; à beira do precipício Montgomery ainda escuta os tambores da dignidade e dos ensinamentos claros da infância e prefere o despedimento à perpétua condição que rebaixa infinitos; para não insistir, outra vez toda a obra deste Homem bom, em beicinhos limpos antes dos beijos na orelha e das telepatias plenas que quebram todo o tempo e todo o lugar no “I've Always Loved You” sem freios; e aparecem os aliados caídos do céu que alguém não da terra lhes mandou ao caminho, o locatário desprendido e o colega que se lança a patrão sem pose, e tudo acaba num raio de esperança e de acreditar não importa como que tanto ainda tocará espíritos disponíveis como fará rir a bandeiras despegadas as chamadas audiências adultas.
 
Não é propiamente a política conforme ou o escancarar neste caso Alemão que vai tornar tudo mais polifónico e compósito, FB vai na chamada abstração obsessiva que um dia Truffaut escreveu a propósito dos modernos Bresson e Nick Ray para fazer os dias de hoje saberem que grandes fossas onde se tentaram colocar os grandes valores continuam a agigantar-se e a cheiraram mal de uma forma camuflada. Sendo assim muito mais radical do que o chamado género cinematográfico da denúncia ou do panfleto. Tão radical como as peças musicais de muitos minutos a fio e de planos cerrados e esvoaçantes que em “Song o' My Heart” continham todo o Straub/Huillet. É ver quando o poderio patronal prefere as comissões pantanosas aos salários fixos e mete pela primeira vez Montgomery a chorar de raiva e a ceder à humilhação a que se diz que os da não-ilusão argentária não experimentem – abram hoje um jornal de empregos, ou vão a um net.qualquer coisa da mesma pandilha, e vejam a jorrante oferta enganosa para batedores de porta e enfatuados bem cheirosos com todos os truques do universo na manga, cães de fila assanhados a morderem cada carne ou a venderem pai e mãe e árvore toda, pobres jovens que no seu primeiro trabalho de férias já se mancharam para a vida e para o túmulo à custa dos cheques e da plaqueta de comerciais. Ou aquelas partes de periódicos outros em que supostamente se promovem corpos com corpos, homens com mulheres, homens com homens, mulheres com mulheres, pele à pele, onde nem são precisas falas para todo o prazer do mundo explodir – nada contra prazer ou explosões, relax ou animalidade, mas comparem-me a fibra ou a superfície de uns e de outros na cena em que os opostos se encontram à mesa, a estética que advém do acordo e a ética que saí da entranha. Ambas as práticas chegaram às linhas telefónicas que não se animam magicamente como as do telefonema de Taylor a Sullavan no Comrades, mas que de erótico e de monstruoso se aliam para serem indestrinçáveis nessa letalidade cobarde - seguros, telemóveis, sexfones, enlaces. Violações, ou vícios, pecados, ou desvios para não ser eu o radical, antigos, primeiros e últimos, que aqui são paralelos ou se imiscuem nas mesmas camadas da bondade, e que são humilhados numa firme posição que para uns pode ser inocente mas para alguns, talvez muito poucos, vale o percurso, a caminhada, a insistência, a batalha fundamental. A vida. Entre o choro imponderável do que não ousaríamos confessar e o gozo fácil a patetas crentes, a evidência projetada para a frente e para dentro, que é a luz irrepetível de uma certa arte, que é uma certa alma. A brilhar imponente e vacilante como uma vela que fura o escuro mais do que escuro a que se costuma apelidar medo, e que não se apaga até ter dado tudo. Deve ser assim para lá das estrelas.
 
De prenda para os que não viraram o rosto e a sensibilidade, o tal espelho triplo que é tanto oferta babada do marido para a beleza que contém a beleza milagrosa no ventre, como a do cineasta à beleza ela mesma. Beleza que alguns jamais aceitarão ferida. Espelho que nos permite ver três Sullavan´s mais e estarmos assim prontos a declarar guerra ao barulho e ao oponente que escorre pegajoso. Ou melhor, o milagre da desmultiplicação. Para tudo fechar com o rosto alvo e descansado do bebé. Ali onde se disse que estavam à beira do firmamento. O Cinema que ensina (ia a dizer avisa) a vida. Para lá das estrelas.

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