sábado, 9 de maio de 2015



"Não acenda a luz. Não é real quando está claro. Só é real quando está escuro." é o credo que a vida ofereceu à suposta louca que é Charlotte num delírio comum que Robert Aldrich teceu em 1964. Criatura refugiada nas sombras há tempo demais para um terráqueo, vacilante de si e dos seus actos, dos seus próximos e dos alheios, ou nunca soube do essencial ou então esse essencial deixou-a no seu mísero estado. "Hush...Hush, Sweet Charlotte", pobre dela, de alguns tantos sãos, assim se chama o filme em lengalenga arrastada e tortuosa como as cabeças que vão rolar.

Se também pouco vemos, se cada um deles pode ter piores motivos para o mal do que o outro, se a manipulação é a ordem, então a luz cegante e excessiva e trucidante que inunda todo o espaço e cada canto de sombra faz parte da contradição e da irresolução de que vamos participar. Tanta luz que só serve para cimentar a dúvida, desmultiplicar reflexos, certezas; ou para descarnar o rosto, a pele e a carne velha de andar à nora que ostenta Bette Davis no seu cúmulo. Para lhe drenar o sangue e mortificar os olhos. Entre manipulado símio caduco e recém-nascido monstro assustado, infante aflito e abusado e crepúsculo que não cai mas quer cair (sujos monstros fetais são os que a amam interessadamente), as suas deambulações e insónias apegadas à caixa de música da perdida infância elevam o excesso e a perfusão à secura e também a um osso. Picados e contra-picados em materialização do gesto salvador ou maquiavélico original, distâncias intoleráveis, aproximações redentoras, serenidades escondidas e infernais batidas.

O barroquismo que às vezes em Aldrich tomba para o número e para o supérfluo escolar, para a caução de todos os armados em Tarantino e com a última pirotecnia estilística na ponta da caneta e da montagem, entra sonhos, passados e medonho presente adentro e apanha a imagem da inocência nessa cara pasmada. Nítida e nua. Que é o medo já sem máscara. Eterno medo e a grande questão da existência. Tanta fúria, som e desequilíbrio e o que fica é uma melodia antes de se vir ao mundo e à sua luz indecifrável, a carta não desvendada e o olhar para o que já correu. Horrivelmente e ternamente.

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