segunda-feira, 4 de maio de 2015


"América, América", épico secreto, pequeníssimo e sempre fiel ao momento, à batida pulsional, irmão de "Once Upon a Time in America" ou dos "Mistérios de Lisboa", não tem a ver com deslumbramento inocente, fascínio exótico ou ode imperial. Alguém diz que nela existem os mesmos massacres e as mesmas prosperidades. Todos percebem, mas não desistem. "Saia da sua terra, do meio dos seus parentes e da casa do seu pai, e vá para a terra que eu lhe mostrarei.", por um lado isto, o chamamento transcendente, a quimera prometida; por outro, tão fundamental como, a revolta civilizacional, selvática, indómita, a guerra particular na guerra geral e incompreensível do poder. Aí, almeja-se o espaço do incomensurável, a maior quantidade de ar e de possibilidades. Chega-se a Herman Mélville, na queimante aventura interior em tanto solo ou tanto mar. O protagonista desta odisseia não pode deixar de agir na pressão máxima. Agir, arrebatado pelo coração e estômago e cabeça que não controla instante a instante. E já é todo o cinema de Elia Kazan na sua forma total. Aqui na primeira pessoa e abraçando o mundo inteiro. No instante agudo, tudo pode acontecer. O essencial fica guardado no fundo dos fundos. Inteiro. Sublimado. Nudez, fragilidade, força.

Logo que Stavros avista essa terra enigmaticamente primordial e ela se materializa e se impõe ao seu fugidio imaginário e febril obsessão, Kazan atinge e estabiliza naquilo que sempre esteve prestes a explodir noutras vezes (e tantas vezes explodiu fugazmente) pela dimensão voraz e realista do seu cinema - a dimensão do puro sonho, da pura liberdade e flutuação sensorial sem qualquer tipo de legislação - cinema mudo, entranhas da alma, os dois lados do espelho. Os rostos fundem-se com as águas, as aves e o ar com os corpos em êxtase, recordação e presente em marcha, o alvo movimento como primeira e última linguagem. O sopro lírico das visões inomináveis assopra e queima, a natureza e o homem em correspondência una, o paraíso e o abismo. Do nada, nada nasce, e assim perfaz com a aparição que antes houve da mulher, apelo da redescoberta original e do nascimento, transcendência, finitude e eternidade no mesmo campo. É preciso esquecer a doença da cinefilia, a estética e as maneiras educadas, riscos calculados, triunfos da superfície; há que se agarrar à massa e à memória do que se ousa contar e fixar para que verdades assim possam acontecer, passar e inspirar. Kazan, como Rimbaud ou qualquer anónimo Franciscano, anónimo teimoso ou humanista simplesmente, viu de tudo, sofreu na pele de tudo, delirou e meteu-se lúcido. A estátua da liberdade para onde todo o filme confluiu aparece e não há nenhum evento. Círculo onde nada é dispensável. Demanda destinada. Montanha inicial e montanha final.

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