segunda-feira, 19 de outubro de 2015



À semelhança dos grandes filmes de guerra que tiveram de se fazer e ainda se fazem na América, Leo McCarey, o profundo humanista lúcido que nunca se deixou ludibriar pelos ares e obrigações do tempo, aparências e pressões atmosféricas, realizou a certa altura, quando os cinquenta de Hollywood ainda eram uma criança, um filme sobre o qual se poderiam ter infinitas teorias, acerca das suas políticas e posições, desculpas e redenções, que tudo isso cairia pois a câmara de um verdadeiro cineasta capta as mais ínfimas linhas do rosto, as expressões invisíveis, o nada que tudo significa e que só uma Mãe que teve um filho no ventre percebe num milésimo de segundo ou a milhões de quilómetros. "My Son John", baptizou-se assim, e na expressão mais utilizada e genuína que perdura, o meu filho..., se encerra o que está em causa. McCarey observou no alucinatório e pegajoso clima da sua nação a narrativa mais lamentável que se pode conceber, a da falsidade; o que não é a tentar fazer as vezes do que já foi e haveria de continuar a ser. Para não retirar qualquer tipo de lição de moral ou de aviso: não se trata de defender o patriotismo, como não se defende a religião cega, nem a obediência, nem mesmo o sangue. O que se defende é então esse irrisório e ingénuo sorriso, esse sopro da alma que em vez de se resguardar se mata a certa altura no caminho, sem notarmos. Se alguma coisa se defende ou se pergunta mesmo, é onde jaz o teu sorriso?

A família de "My Son John" tem a Mãe, o Pai, e três Filhos. A Mãe e o Pai como que já cumpriram a sua missão e acreditam nos tantos amanhãs dos seus filhos, para serem o centro emocional da casa, serenamente e activamente. Dois dos filhos, os desportistas, estão no campo de batalha, que faz lembrar e não faz o futebol que veneram. John, o do título, estudou mais e veste fato e gravata, preferindo exercitar o cérebro aos músculos. Regressa a casa, disponível e de boa vontade, mas é daqueles que não podem regressar mesmo, queimado em chamas indomáveis; meninos aos quais Nick Ray e Thomas Wolfe dedicaram suor, lágrimas, derrotas e humilhações. Almeja revoluções e a salvação, o tudo e o vazio, e não consegue afastar a sombra e a fachada inerentes. Embate com o Pai que acredita nos valores da bandeira e do hino, deixa a Mãe de rastos pois nota que ele já destrinçou as bolachas e os biscoitos de Lucas ou de Mateus, não lhe trazendo isso paz alguma. Inevitavelmente, no momento mais fechado de um filme de quartos e salas, logo depois de ela ter notado o campo de batalha do rosto dele, Filho e Mãe descobrem que acreditam nas mesmas coisas, e que se essas coisas não tivessem sido viciadas e sujas pelos ventos e esgares da História, tudo continuaria no mesmo lugar. Mas descobrem talvez tarde demais, o espectáculo dos homens e a sua perene maquinação já tratou de baralhar o que merecia ordem. Para tudo isso ser mesmo assim, sem tabuletas, os embates e as decisões em marcha e em urgência, abissais porque se vêem e dão mesmo, de onde naturalismos cinematográficos, muito menos realismos, não procedem. Tal encenação, tal ritmo, cortes ou enquadramentos, estão lá antes de qualquer frieza demiúrgica e planificação, inteiros. Trata-se de auscultar, olhar, tactear de mansinho ao mesmo tempo que se fixa.

Da Mãe que era a namoradinha dos filhos, do Pai que era outro irmão e filho e amante, do Padre e do médico e do resto como extensão lógica, vão ficar cada um para seu lado, sem acordo nem causa nomeável, e percebe-se que se o tal vento não trouxesse comunismos ou fidelidades absolutas a provar, traria no seu vórtice qualquer outra da semente perpétua do mal que urge não ceifar. A metafísica final e derradeira, discurso sem corpo, divino sem anunciação, luz sem explicação, é finalmente uma cena tão materialista e nítida como os confessionalismos e rememorações dos quartos e salas e corações. E só tem ligação com a anti-metafísica dos poderes telepáticos maternos, que se aguçam com a disseminação da tragédia. Sem redenção, sem guinada ideológica, sem traição. Se alguma coisa se poderá dizer que fala à transcendência, para além de que todos eles estão salvos pois suplicantes no amor sem amarras, é a tal invisibilidade na voz que guarda a melodia dos sorrisos inocentes. Como o que aparece pelos olhos de John na hora imprevista da morte - Robert Walker foi o mais breve e magoado dos actores e dos seres dessa época, concentração profunda da impossibilidade e da entrega sobre a mais exposta superfície. Eu amo-te, eu perdi-me. John emula-se para que todos possam ainda escolher; ou para não matar a sua Mãe, a mais bela. Nos esfumamentos mudos já além vida, como John a não aguentar o choro original, os planos e os corpos e a película ardem clamantes. Clamantes de outra vida. Longe, bem longe de qualquer comício terráqueo, "My Son John" é um dos mais belos e tristes filmes alguma vez feitos, cúmulo da máquina de comoções e revelações onde foi permitido, porque o imenso fica reduzido a uma imagem ou a um sentimento breve, como a estrela cadente e a intensidade dessa passagem fugaz, comportando tal os séculos e séculos. E nesse brilho, tudo o que há para dizer. No rotundo, côncavo, contraditório, recto, a luz inexplicável, que se sente ou não. Que derrete qualquer retórica ou bandeira do mal. A luz. Luz que deixa a cada um perceber o que interessa.

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