quarta-feira, 30 de dezembro de 2015
“B-grade western with a twist:
mysterious gunslinger-for-hire Drake Robey is really a vampire, and
it's up to Preacher Dan to save the town and girlfriend Dolores
Carter.”; “The cinema's first vampire Western!”. À primeira
vista este tesouro sombreado a mármore e a luar faz lembrar o cinema
de John Carpenter e alguns derivados Tarantinescos que conhecemos
muito depois de “Curse of the Undead" ter sido forjado;
remetendo atmosfericamente para os seus contemporâneos Jacques
Tourneur ou Terence Fisher. Mas progressivamente, em encantada
filigrana tormentosa e sexuada, questões e choques de diversa
gravidade tomam conta do espaço num tempo não mensurável. O plano
sequência e a fusão dissolvente trabalham cirurgicamente, e da
mesma forma que mesclam o escuro e o claro, as árvores tocadas pelos
ares da noite e as luas apossando-se de rostos, a terra gélida e a
pele clamante, também metem em relação a figura do Padre e a do
Cowboy desconhecido e longínquo, transcendendo o todo à velha
dependência entre o bem e o mal, a fé e a impossibilidade de
domínio, entregas no absoluto versus ausência de apelo. E se o
género americano por excelência teve um fim e uma hecatombe outra
que não a do progresso, ele está neste desenrolar imemorial ao para
trás, destruído no duelo que acontece entre entre a lei das armas e
a falta de lei mística, depois de morta e enterrada a ciência. Carl
Theodor Dreyer poderá ser uma chave, até mais o de “Gertrud” do
que o de “Vampyr”; há em halo e carnalmente, na massa movente do
plano que resiste, um impulso de desejo que nessa hipnose selvagem –
e a questão dos vampiros e do sangue perde os códigos para acentuar
ainda mais o risco e a pulsão – o eleva para lá da paixão, pelos
terrenos inomináveis da posse desamarrada. Com meia dúzia de
tostões e um poder de sugestão realmente sem barreiras técnicas e
simbólicas, Edward Dein e uma equipa tão famosa como ele chegam a
terrenos tão gastos como virgens e perigosos que se saibam. Para lá
ou para cá da nossa luz.
segunda-feira, 28 de dezembro de 2015
“Gus died alone, as he had mostly
lived, in Greece on January 29 at the measly age of 45 from the
complications of untreated diabetes. His death coincided eerily with
the 25th anniversary of the Tet offensive, the campaign so
graphically described in The Short-Timers.” - “The Killing of Gus
Hasford”, Grover Lewis, LA Weekly, June 4–10, 1993
Neste babilónico reencontro e
agradecimento (mais do que obituário), em tamanho e em generosidade,
Grover Lewis fez tudo para evocar o mais inteiro possível o grande
escritor que possibilitou a Stanley Kubrick o seu “Full Metal
Jacket”, contando pequenas histórias das milhentas que o rodearam
efectivamente e em mito, tentando fazer entender aos outros e
perceber ele ainda a complexidade e a riqueza de uma sensibilidade
aflorada, um temperamental esquecido em vida para além das fitas de
cinema e dos interesses publicitários - “It's like fairy gold, the
leprechauns' gold. I don't think I ought to make too much money.
I'd just sit around all the time reading my Civil War books. “,
diria novamente Hasford como nos fuzileiros ou como numa das suas
bibliotecas que eram a sua casa. Morreu sozinho, preferindo o
desmesurado e o longínquo, a sua cerveja e os seus milhares e
milhares de livros, a qualquer remédio ou sujeição imposta. Mas
basta voltar à sua demanda e sentir do ódio e da paixão em estado
puro que faz qualquer grandeza com ou sem ordem - “Pode ser-se um herói durante algum
tempo, por vezes, se deixarmos de pensar em nós durante o tempo
suficiente, se nos estivermos nas tintas.”
“In the tradition of Stephen Crane,
Hemingway and James Jones...”, cito ainda Grover, “The
Short-Timers” é de uma dureza e de uma tensão que não permite
julgamentos aos leitores de sofá que não tenham que ver com a prova
física e psíquica que se experimenta na cadência do presente
humano e infernal em propagação. Crane, Hemingway ou Jones, homens
do limiar, mas Gustav Hasford conserva uma voz e uma presença
únicas, e não foi à folha para provar que domina melhor os
substantivos cortantes do que os adjectivos gloriosos, mas amarrou
nelas e disparou constantemente com o que tinha à mão ou com o
necessário, sendo piedade e emoção as resultantes do instinto
acossado. Ou se entra no turbilhão de uma escrita incisiva como as
balas e os fogos tracejantes que devoram da terra até aos nervos
oculares e cerebrais parando ou não parando na madeira ou nas folhas
das árvores que nos cedem o papel, ou legitimamente se atira a
toalha ao chão e não se está para isso da mesma maneira que não
se está para qualquer guerra desse formato. É uma tarefa hercúlea
e será o mais perto que se estará dos treinos e das provas de
recrutamento antes do palco demencial já sem margem para erros, num
epicentro da competição vil, e há que reformular, redimensionar,
ajustar e desajustar os conceitos de realidade e de lógica; para se
sobreviver, quer dizer, para se continuar no livro. Primeiras
páginas, depois de Walt Whitman, de Michael Herr e de John Wayne, ou
sempre com eles, e o leitor incessantemente à procura da causa e do
efeito, do nexo que lhe possibilite estar seguro, qualquer fórmula
que permita encaixar e avançar e perceber os horrores, o busílis,
as equações trucidantes; até ter de jogar fora capas e toalhas e
protecções corriqueiras, num entendimento férreo e de nervos em
franja - não há lógica nenhuma, eis a questão. “Depois da minha
primeira morte confirmada, comecei a compreender que não era preciso
compreender. Aquilo que fazemos é aquilo em que nos tornamos. As
implicações de um momento são confundidas pelos acontecimentos do
momento seguinte.” E etc., há que aceitar alguma coisa da
lengalenga dos soldados que afirmam como quem cospe da rotina e do
ofício da morte; “A guerra é feia porque a verdade pode ser feia
e a guerra é muito sincera”.
Não há lógica e uma das soluções é
deixar-nos ir no arrasto dessa sonoridade metálica que expõe todas
as possibilidades da nossa natureza, música maldita em que “cada
tiro é uma palavra pronunciada pela morte”, sinfonia do indizível
“rolando sempre em frente, para sempre, ao som da negra poesia
mecânica do ferro e dos canhões”. Hasford, rigoroso e lúcido não
perdoa uma e essas ambiências que de catastróficas adquirem a sua
beleza, horrorosa ou simplesmente inata, nada tem que ver com
estéticas sugadoras do incomum, tratando-se de uma observação
directa embora implicada, límpida dentro da sujidade, contemplativa
sem contemplações. E não poderia ter ido ao Nobel ou ao Pulitzer e
derivados pois as palavras não seguem o curso dos ensinamentos e das
normas esperadas e confortantes, da escola ou do crítico literário
em sentido; as palavras só seguem a morte em acção, no mais antigo
dos processos, agora exacerbado. O inescapável momento medonho, a
alegoria e a recordação e o sempre, o riso com noite cerrada, Mary
Jane mamalhuda inseparável do sargento de ferro, a estupefacção a
volver-se costume, pão nosso de cada dia inerente ao Homem. “The
Short-Timers” acaba caminhando e acaba perpetuando-se. E é assim
mesmo.
♪ I don't want no
teenage queen.
I don't want no teenage queen.
I just want my M-14. ♪
Perda da inocência. Renascimento.
Cowboys. Violentação original. Nascença. Piadas. Índios. “Full
Metal Jacket” prova a possibilidade de vergar a natureza dos seres
e mesmo das coisas, torcer ainda a predestinação, gozar do
determinismo; a energia cinética a engravidar potência bastarda.
Pelo voz off do raso e matador Joker – certíssimo Miguel Marías a
enaltecer o bom uso deste recurso como privilégio do cinema – o
processo de desumanização e naturalização da morte vai do embalo
pop e da ironia até ao aterro e ao grito sepulcral, numa compreensão
do fundamental em Hasford que passa não por um processo linear mas
sim por uma circularidade que nos enleia no degredo e no abraço, na
merda e na coragem. Gomer Pyle, ou Leonard, é a representação ou a
espécime acabada disto, pois começa como soldado inapto, passa a
topo de gama e acaba a matar e a matar-se ainda na América – o
Vietname na América, portal do realismo e da intelligentsia
metafísica. Só que a segunda parte do filme, já no Vietname puro,
torna-se a América no Vietname, o que também quer dizer o Homem a
ocupar o que deveria deixar estar em sossego, ali ou no planeta mais
distante, utopia sem nome, choro infinito. O olhar derradeiro
adquirido até à velhice pelo já profissional Joker, a profundidade
e a violação ganha pela morte do próximo perpetrada de frente,
ata-se ao diabolismo de Gomer Pyle, sabendo-se que basta perder o
medo para o Tudo estar em aberto. Na carnificina com que a primeira
parte fecha e na outra que não fecha o filme mas que regressa à
anterior, que rima com ela em impossível desacordo, Kubrick atinge
um Apocalipse que nada tem a ver com simbolismos canónicos mas sim
com algo muito preciso, na guerra licenciada ou na da calada
política, nos compartimentos culturais como nos mexericos
civilizados – o coração e os sentimentos em elipse, duros e
mortos como a resposta bruta da técnica e dos recursos utilizados
para o enforme. E eles continuam a andar em frente. Ainda. Sempre em
frente. É assim mesmo.
sábado, 26 de dezembro de 2015
O silêncio e a fúria -
notas sobre alguns irmãos diferentes.
Visto agora “All the
President's Men” dispensa candidamente a América de Nixon e o
escândalo em causa para ser absolutamente um filme sobre a obsessão
de dois homens por uma verdade. Quando a personagem de Robert Redford
começa a escrevinhar e a personagem de Dustin Hoffman o começa a
corrigir, a primeira não fica zangada pela segunda estar a querer os
louros, mas somente por não lhe ter dito a coisa de frente. A partir
daí não interessa o génio autorístico mas somente, e é tudo,
juntar as peças que preencham o puzzle lógico. Uma correria entre
fantasmas, medos, muita escuridão e ruído que é o caminho árduo
do mal para o bem, da cegueira para a claridade, da injustiça para a
justiça; seja como for, ideologicamente ou moralmente, a luta
imemorial dos opostos. Alan J. Pakula e Gordon Willis não traem nada
nem por um frame, acatam os silêncios e afastam o embalo musical,
acolhem a atmosfera ao invés da ilustração, implicam-se no
pormenor e no instinto para alcançarem um geral no trabalho e na
constatação, o mais límpido possível e sem margens para
desconfiança. O zoom final antes do veredicto e da História, o suor
a entranhar-se nas aparências, o empenho a estilhaçar o embuste, as
insignificantes personagens de Redford e de Hoffman a calarem o
espectáculo global, é a prova de que a persistência e a dúvida
são um par tão bonito como os dois em acção, fasquia sagrada dos
muito antigos em espaços remotos. Que se pode pagar tão caro como
toda a solidão que os envolve na cruzada, sem mulheres, sem “vida”
digna das aspas, até sem carreira recomendável. Somente a pulsação
da verdade algures entrevista sem pedido.
A lógica ou a congruência
da obra ou desobra final de Robert Aldrich mede-se e une-se pela vida
das coisas, isto é, de que raio são feitas e como trabalham. “The
Legend of Lylah Clare”, não tão derradeiro e o mais funerário de
todos, mete em discórdia a carne passada de uma estrela do cinema e
os quadros em cima dos quadros antes da técnica do split screen ser
ensinada nos cursos de artes e de ensaio, e o efeito nunca se torna
vedeta mas antes descarna sem possibilidades de remissão o declive
central – não se aceitando as rugas, como não se aceitando o
tempo, aceita-se à força os cacos das máscaras quebradas. “The
Longest Yard” poderia ou não poderia ser apenas um cavalo de
corrida nas bilheteiras, ou um manual ultra avançado do filme de
1968, só que veja-se: 1) a sequência de abertura, onde se capta
pela primeira vez um cigarro, a bebida incendiária ou salvadora, os
vícios que não estes e a colisão do sexo com o permanente, sendo
que toda a questão da película e do analógico surge sem retórica
e tão em tudo ou nada como num diálogo entre Quentin Tarantino e
Paul Thomas Anderson; 2) a troca de olhares e de fundos e de vísceras
entre Burt Reynolds e Harry Caesar, onde de uma só vez os
compromissos e a honra são tão consanguíneos como quando o segundo
disse aos negros da sua raça que a irmandade existe muito para além
disso; finalmente: o contraluz e a saída para o sol já em cima dos
créditos, caminho para uma glória escrita nos altos, isto é, muito
no dentro, sem actas; Conclusão: não se trata de um fresco glorioso
e épico pela comunidade com fraternidade revestida como o atingido
por Ted Kotcheff em “North Dallas Forty”, onde Nick Nolte entra
simultaneamente nos terrenos da selvajaria e da hagiografia além
pecado, mas é evidentemente um coração a salvar no caos. Em
“Hustle” há um polícia bruto e uma prostituta delicada, ou um
delicado polícia e uma prostituta ainda mais brutal, mas a maneira
como os corpos de Reynolds e de Catherine Deneuve encaixam tão
perfeitamente como se magoam sem definição no quotidiano, são o
reflexo dessa luz sumptuosa fornecida pelas cores e pincéis dos
anjos dessa terra mítica, ou de entidades similares por eles, em que
os dourados dela e o moreno dele perfazem o tom singular e único
permitido a qualquer par que realmente exista, e então eles respiram
por inteiro nos espaços abertos ou na casa das bonecas, fazendo a
tragédia parte do acordo com a beleza - “Hustle” não é um
action movie e essa luz indefinível é mesmo tão potente como o “Cu
Cu Ru Cu Paloma” que vem do longe para o perto no Sirkiano “The
Last Sunset”, palco de punks negros e de crepúsculos ruminantes em
convívio antes dos movimentos radicais.
O composto final de “The
Candidate” é tão triste como aterrador e ridículo, sendo que
todo o excesso posto em cena e em baile por Michael Ritchie e Redford
se esvazia e se cala numa incerteza Bressoniana que poderia limpar o
esterco de “All the President's Men” se esse possível reinício
não estivesse minado pelas maquinações do acaso. Sendo que o acaso
não pode aí ser irmão do encontro e do par, ou seja, do belo, pois
é o cérebro abstracto que faz parte do grande circo e do
aplainamento que apela à degradação. Ou então, esse vazio tão
oco, ecoante, imprevisto e imprevisível é tão válido como o seu
inverso, e seja o que Deus quiser. Seja como for, está lá uma porta
e a fuga, a tranca e o descaramento.
Homens de pé pela sombra da
dúvida, de onde o tema e o presente são veios, como pregas ou
órgãos, desse espectro. Sendo a verdade, pedra de toque que alguns
reconhecem sem dicionário ou bíblia, a gravidade que os segura.
Tudo.
terça-feira, 22 de dezembro de 2015
Em 1939 já John Garfield
Ran All the Way, mas como ainda estava longe das pulsações e das
escalas mortalmente e sexualmente tensas de John Berry, embalado
apesar da sofreguidão pelo movimento lancinante e concordante de
Busby Berkeley, a meta negra lá foi sendo adiantada, na vagarosidade
de um abraço final puramente terno. “They Made Me a Criminal”
aguenta-se e evolui numa estranheza e numa moral que não advém de
nenhum credo mas sim das vísceras singulares, e então já temos
toda a sorte de Garfield, logo na largada. Na partida, um ringue, um
lutador, um inocente herói, e logo a seguir a desmontagem de tudo
isso, perdendo-se o herói quando a sua natureza não lhe dá
hipóteses de retaliação. No último combate, o ringue, a tentativa
de disfarce, o amor e os filhos como transcendência, mas a sua
verdade, o seu orgulho não arrogante mas intrínseco como tantos que
são fabricados heróis no cinema americano, impõe-se para surgir a
rampa da perdição. Nos meios, em velocidade cruzeiro ou suando
sangue, com a tentação e a mentira na cabeça mas a essência
disponível, foi conquistando todos os corações, os de manteiga
como aqueles trancados a ferros. Conclusão, nada óbvia, nada certa,
não aconselhável, das únicas vezes que mandou a mascarada às
urtigas salvou-se tramando-se – escondido para ser feliz,
bicho-do-mato que nesse mato conquistou todas as luzes e notícias do
mundo, com um empurrão do anjo improvável de que não se acredita.
É doce e amargo, e pode ser que o Filme Garfield seja de facto só
um, interrompendo-se em 1951, com peças espalhadas por todos os
lados, mas num todo dolorosamente compreensível; pode ser que o
provisório seja o centro deste filme, queimando ainda mais o abraço.
Seja tal amor o ferro fundido que dobra toda a pulsão ou seja a
pulsão dobra soberana, é o que este essencial Garfield nos propõe,
em double bill com o muito menor “Nobody Lives Forever” de Jean
Negulesco. Não é questão de pouca medida, sobretudo porque fala
das escolhas dos loosers dos passeios da mesma forma que das escolhas
dos reis do mundo. E também do instante como absoluto. O abraço, as
raivas e o sorriso completamente inesperado de Ann Sheridan. “Force
of Evil” enlaçado com “Gentleman's Agreement”. Todo o rugoso
rolo e o Absoluto.
domingo, 20 de dezembro de 2015
“The Breaking Point “ é um
protótipo dos cinquenta americanos procurado por Michael Curtiz,
quinta-essência dessa terra e desse ofício, definição de
realizador, retomando águas, paixões, destinos e o muito fogo de
“Casablanca” ou de “Passage to Marseille”. Que os pergaminhos
e alguma alma tenha sido pedida a Ernest Hemingway só expõe vias e
pulsões que não se previam assim, entrando estas de rompante e
devorando as maquetas e a magia e o argumento, lado incontrolável
dos mais recônditos fundos orgânicos. Pois os timings perfeitos do
mítico filme de 1942, a encenação a milésimo de segundo
calculada, essa luz prodigiosa e dramática dos estúdios mesmo que
mais reais do que o real, fogem para o lado contrário e o que
irrompe é a câmara solta e perscrutante de Rossellini, como que ao
sabor das aragens e das marés; uma auscultação das vibrações do
meio natural e do humano como coisa uma, antes de qualquer maquinação
estilística, comunhão e compromisso do mesmo sangue do
incaracterizável “Deep Waters” de Henry King. As misérias da
terra e do mar, os problemas e o caos de todos os credos e desejos:
dos refugiados tratados como dejectos até à negociata e corrupção
rasteira que vai apodrecendo sucessiva e lentamente atingindo as
medalhas dos genocídios apocalípticos dos imperiais topos. Mas do
que se trata é evidentemente, e pela ordem inata, de histórias de
amor, da perdição e da solidão contundente; concentração e
circunscrição dos fulgores e dos rastos de uma existência. Para ser óbvio que
é John Garfield que numa das suas maiores vivências dinamita
qualquer planificação escancarando os abismos sem rede. História
de amor dele para com a sua esposa resistente às tentações
clandestinas e sociais – juntando o sorriso infantil dela antes do
sexo (uma das cenas mais secas e belas do Cinema sem se dar por isso)
ao choro limpo perto da morte no final; de Garfield para com o amigo
e parceiro e mais lágrimas por não o conseguir escorraçar e assim
salvar; e acima de tudo amor a si próprio que aguenta todas as
penúrias e humilhações daqueles que insistem em fazer, ou tentar
fazer, aquilo de que gostam pois nasceu com eles. A guerra do lobo
dos mares não é tanto para com os criminosos – isso são
estilhaços colaterais – mas essa do par e filhos e busca da
felicidade a todos reservada no princípio. John Garfield está para
lá de qualquer representação pois sabe-se da sua própria vida e
sorte, sendo impossível que isso não lhe tenha alimentado a fúria,
consumido as entranhas, dilatado as veias e tomado conta dos olhos na
película que não atenua mas amplia e descasca. John Garfield é um
vulcão jorrante e um poço sepulcral, ser comum que dá raiva e
razão a biliões de seres vivos e mortos, seja numa pequena aldeia
esquecida da nossa beira interior ou na desolada Nova Iorque dos
genuínos. A conclusão de tanto afloramento e confessionalismo, fogo
que não deixa de se misturar com o gelo em suores frios de pesadelos
nocturnos temperados com nicotina, é a criança largada no cosmos,
ao deus dará..., ponto insistente e final para onde confluiu tanta
complicação e novelo da raça. O filme deixa-nos e nada mais
veremos, a não ser um ressoar que continuará na próxima saída à
rua, pelos passeios miseráveis ou num hospital insone. Curtiz e
Garfield, o controle e a devastação, num abalo que é o movimento
perpétuo que ainda nos aguenta.
quinta-feira, 17 de dezembro de 2015
“Framed” não é a suposta
despedida crepuscular nem mesmo apoteótica de um grande realizador
de cinema como é o caso de Phil Karlson. Decorria 1975 e os
holofotes estavam virados para tudo menos para estas pequenas
intimidades justiceiras, e no lusco-fusco há coisas que importa
reter. Da porrada até à morte que lança o filme e começa a
escancarar a podridão da montagem social, até ao piscar de olhos e
juntar de lábios que o plano final congela marimbando-se para o
disfarce em direcção ao intervalo do amor, há novamente uma
cruzada que continua visceralmente a de “Walking Tall”. Porrada
mortal em seco, em ossos, em pó, como a morrer de sede, esganiçada,
num campo contra-campo concentracionário que aprisiona toda a tensão
e brutalidade para a soltar num silêncio apocalíptico que é a
imagem e cerne do filme. Junção de corpos derradeira que só aponta
à dissidência para a junção familiar dos que se reconhecem, e que
é apontada pelo polícia negro, possa começar a ser verdade.
Verdade, precisamente, é a fome de Joe Don Baker, que estando agora
do lado contrário em relação ao filme anterior – de que este é
sequela ou prequela – se faz pedra salvadora na destruição da
engrenagem que importa. Num mundo onde bem e mal já há muito
vestiram as mesmas indumentárias e partilharam os mesmos cabides, só
o lado animal é capaz de ousar a distinção e destrinçar, roendo,
roendo e estraçalhando, roendo e descarnando, passando por cima de
hemorragias e implosões, até uma nova camada original começar a
vir ao de cima. Karlson continua a utilizar o zoom para o trabalho
porco e para lavar roupa suja, insistindo no estático como
reforçamento de fundações invioláveis. Neste chão escorregadio,
palhaçadas onde as identidades e entidades se desmultiplicam,
atrapalham e baixam ao grau nulo, só olhar olhos nos olhos –
resulta até com cães raivosos, como se prova numa cena fulcral –
e o assumir-se plenamente – a cena final ou a evidência de que o
talento de JDB é o jogo tal como o de Billy the Kid são as pistolas
e a liberdade – procedem na procura de limpidez, que é o que
Karlson ainda continuou a procurar desde os anos 1940. A aço e a
fogo, com zoom e frontalidade. Tarefa e crença que justificam todas
as caras e peles rasgadas que o duro Baker aguentou neste díptico.
Do lado dos bravos. Luminosamente, antes ou depois do crepúsculo.
quarta-feira, 16 de dezembro de 2015
Exemplo acabado da poverty row e da
sucata escondida pelos dourados da Hollywood no seu auge, série-b em
plena carburação e inventiva, o “Dillinger” dirigido por Max
Nosseck, produzido pelos irmãos King para a Monogram Pictures e
libertado da biografia para ser metido nas sombras e nas teias das
decisões e dos caminhos puramente humanos por Philip Yordan, é um
filme luxuoso. Primeiro: as peças de cenário mais ordinárias que
sobraram, os curtos planos perfeitamente enquadrados nos limites
possíveis da sugestão e do realismo duro, a fumarada em sintonia
com o destino e os actores lançados a estas feras, são centrados,
concentrados, dependentes mutuamente num universo em que confluem
todos os eternos e corriqueiros dramas sem nunca serem ditos boca
para fora, antes em plena evolução e luta. Segundo, a via nada
sacra de Dillinger volve-se via-sacra pois a tentação é o seu
cerne na medida em que é o cerne da nossa civilização e do nosso
mito. Irresistível o próximo passo, o patamar seguinte, o poder
absoluto, de onde a mulher e o seu feitiço pairam e apelam
subliminarmente. Entre o mundo do cinema e o grande legado humano, um
corpo e uma mecânica correspondente que nos insere a todos; jamais
se dúvida do fim e jamais se mata a pulsão. Max Nosseck, o fabuloso
Lawrence Tierney, técnicos e companhia, formaram uma cápsula ou uma
capela acabadíssima e harmónica, comungando os restos e a
totalidade do mesmo luxo, a inteireza. Inteireza e falha,
encontrando-se cada elemento no lugar propício e lógico do universo
lato. Se se começasse a olhar e a trabalhar o digital nesta medida e
neste alcance, sem a condicionante do disfarce e da película, o luxo
de “Dillinger” poderia servir para todos e cada qual que não
gastasse mais do que a essência; como o tanque de combustível
destinado (bela imagem sugerida pelo Bruno Andrade). Entre cidadelas e miragens, já se queima borracha e óleo e alma pelas belas e terríveis estradas de "Mad Max: Fury Road".
terça-feira, 15 de dezembro de 2015
“The Chase”, a
obra-prima de Arthur Penn, acaba com o xerife Brando e a mulher a
virarem costas a um solo e a uma missão que já fedeu mal demais.
“Walking Tall”, penúltima obra de Phil Karlson, começa
imediatamente a seguir. Estamos perante um dos filmes mais
representativos dos anos 70 americanos – porque um dos seus
melhores e metido das unhas aos cabelos na fossa em causa – e
absolutamente afastado das imagens de marca, sempre a trabalhar ao
lado do instante e da emoção como por aí só me lembro do Richard
Fleischer de “The New Centurions”. Joe Don Baker, ex-fuzileiro
(fuzileiro para sempre), ex-domador de feras, decidiu voltar as
costas ao Sistema para todo o sempre, ámen, e chega a uma nova terra
disposto a esquecer tudo e a ser feliz de novo com a mulher e filhos
e cão. Só que, deve-se aprender antes do tarde demais, os problemas
não passam por causa da terra dar uma volta sobre si mesma nas horas
estudadas, as coisas não se esquecem num amanhã perfeito e novo,
mas devem resolver-se antes de mais, olhos nos olhos, no agora,
questão de vida e de morte sem volta a dar. A aurora de WT é bela,
idílica, cheia de grandes-planos pequeninos e a lembrar a candura e
os paraísos ainda possivelmente virgens de Robert Mulligan. O pai de
família volta à casa de onde nunca deveria ter saído, disposto a
não errar a segunda vez dos idiotas, compra o novo lar doce lar,
vende as coisas antigas e jura paz e amor. Mas os problemas, como as
resoluções de ano novo, não se resolvem mudando as aparências e
as superfícies. Imediatamente os planos começam a torcer-se, o
clássico cineasta começa a descobrir e a decifrar e a rejeitar o
zoom, as lateralidades que a frontalidade e verticalidade sempre
desdenharam ganham o quadro, e os fundos e os cancros começam a
ganhar posição e a alimentar uma fealdade que não mais parará de
crescer entre crânios arrebentados e casamentos para sempre. Daí
para a frente essa câmara, o olhar, a encenação a ferros domada,
dirigida, torna-se fazedora de justiça, ora expondo para si as leis
sempre ambíguas e fantásticas dos homens, ora entrando em terrenos
Salomónicos. Don Baker entra onde Brando tinha estado na fúria
triste de Penn e junta um negro clamante de comunidade e uma
prostituta a morrer de solidão que pede um só carinho, um só que
seja. Os tiros entram nos quartos das crianças, nas cabeças dos
amados, a papelada vira o feitiço contra o feiticeiro, a beleza é
cuspida e emporcalhada por quem não mais viu um sol a bater num lago
e tais revelações, uma criança vai à cama do hospital amarrar a
mão do Pai e uma arma lamentosa que nunca poderia ter sentido nessa
composição mas que tem pois o mal passou a fronteira permitida; a
explosão final coloca alguma coisa no devido lugar, unindo
finalmente o inseparável. A personagem mais abjecta do filme, aquele
monstro engravatado que fala do choque entre o idealismo e a
realidade como se fosse coisa para gozar, personagem que de certeza
criou os tipos dos disparos gratuitos, vai ver nessa catarse
redentora a nulidade da sua fórmula. Quando a Comunidade se faz um
universo genuíno, infinito e sublime – mais do que justiça
Salomónica é o natural em evolução – o sonho e o seu contrário,
o possível e o impossível, utópico ou terreno, perdem a
significância, mais do que isso, a convenção, para se alcançar o
equilibro primitivo onde se deveria ter permanecido. O princípio, e
quem tem razão já é o genérico final com o olhar para trás de
Don Baker e a música de Johnny Mathis. Fabuloso, sobretudo porque a
força da natureza e a moral, as coisas e os seres, se formaram um. O
princípio. Daqui e da ponta mais longínqua.
domingo, 13 de dezembro de 2015
Vale sempre recordar a
doutrina de Phil Karlson, cineasta: veracidade, natureza, osso,
implicação. “5 Against the House” pertence ao género dos heist
movies mas está no oposto deles. Nada tem a ver com os Ocean’s
Eleven pois o que é estilização, cool, maneirismo ou acessório
não passa no filtro moral que entende a arte como razão de
existência. Interessa saber como todas as coisas que a câmara
capta, seja a realidade ou a ilusão, respiram e transpiram. O grande
golpe, aqui pequeno, ridículo e inverosímil, só acontece por causa
do grande medo, do tédio (com desemprego e sem desemprego) e da
rejeição que os homens tremelicantes, apesar da aparente ligeireza
com que soltam as piadas, auguram e sentem mesmo ao arrepio nas
desprotegidas espinhas. Homens que não só viram a guerra mas que a
transportam na carne e nos nervos como constituição orgânica,
facto que nos anos 50 do século transacto serviu de dínamo para o
irracional e para o extraordinário tal como nestes nossos tempos as
drogas políticas e publicitárias. A guerra é a pressão que a
todos devasta e a imagem do mal que a raça humana sempre teve
necessidade de sustentar para que as coisas se mantenham na ordem da
farsa produtiva. Assim, a personagem famosa e “sem problemas” de
Kim Novak é tão decisiva e central como a do atormentado e
fabuloso, porque sem margem para encenação (traição), Brian
Keith, arrastada pela corrente da escória do seu tempo que como hoje
tudo aplana em silogismos e genocídios. Mal, farsa, medo, depois
disso ou nisso, só à selvajaria compete regressar – os elementos
do golpe regressam aos primórdios, ao tempo dos cowboys, tudo viram
do avesso, lei e caos no mesmo raio, as piadas cessam e as lágrimas
vertem, e aí sim, pela ousadia parece haver uma nova esperança.
Repara-se como no começo (voltando depois nos finais e nos meios)
Karlson nos deixa a ver tempo demais para as regras dramatúrgicas os
elevadores dos carros; ou como no primeiro engate o rapaz pede ao
competidor que se chegue para lá e deixe a rapariga para ele, e logo
o plano de conjunto de três passa abruptamente para dois -
veracidade, natureza, osso, implicação, e faltou intuição, que
nos perfeitos timings com que tudo é rodado e unido permite entrar
todo o ar do documento e do indomável. Se rareiam músculos e
sensibilidades destas, se calhar porque não têm uma fábrica
propícia ou uma comunidade, lembremo-nos do “Thief” de Michael
Mann ou das prisões de Ventura em “Cavalo Dinheiro”, para se
voltar sempre à conclusão que interessa o génio ou simplesmente a
pintura emocional que está à frente e não o espectáculo técnico,
essa ilusão de poder.
Frank Sinatra faz 100 anos, uma rádio
passa durante 24 horas os seus êxitos cantados por ele e pelos seus
herdeiros, o jornal da noite diz qualquer coisita da praxe antes da
meteorologia, numa tasca ou noutra consideram-no o maior, e fico
feliz pois ele resiste a tudo isso e continua grande. Só que, ao
exemplo dos últimos anos, penso ou vejo ou escuto Sinatra e só me
lembro de “Some Came Running”. Da complexidade da sua vida e da
sua obra, das luzes da ribalta aos buracos e brilhos negros, o que
sei dele, muito mais do que as ligações à máfia, aos bordeis ou
às garrafas de whisky sem dó nem piedade, tem a ver com o movimento
torrencial a que ele se entrega, movimento que por consequência
apanha os que o rodeiam. Mas antes de ir a Vincente Minnelli, a
Shirley MacLaine ou a Dean Martin, vou a James Jones, sem o qual nada
disto seria assim. É lá perto do final das 1000 páginas originais
deste contundente e contraditório altar humanista que se lê: «a
essência, o sumo do que queria dizer, era que o homem constituía
por si mesmo um universo sagrado e ao mesmo tempo um balde de
porcaria, que infectava o ar do jardim e do qual era preciso
desembaraçar-se o mais rapidamente possível. Estas duas coisas não
só se misturavam indistrinçavelmente, sim formavam uma entidade só
e única, não existindo portanto mais do que uma evolução». É
assim que Dave Hirsh – livro ou filme, o mesmo corpo – volta à
pequena terra da sua nascença, muitos e muitos anos depois, para
tudo isso repelir e insultar, não admitindo que, de facto, os
sentimentos não enganam, são sempre fieis quando recordam. E a sua
violência, perdição, esse vórtice devorador que o consome nas
deambulações, é de uma vez a recordação daquilo que certo dia em
certo tempo árido julgou para sempre e assim não foi; e o que se
lhe apresenta e se lhe agiganta como um presente prometido e estável
que assusta por assim se voltar a apresentar de chofre, sem pedido.
Esse embate entre o que foi a infinitude e o que se apresenta a prazo
corrói-o inexoravelmente. Era uma vez... e não se sabia da morte,
já foi uma vez... e tanto dela se tacteia. O filme, o livro, a vida,
acontece: Sinatra a insultar MacLaine indesculpavelmente num segundo
para no seguinte lhe pedir ajoelhado que esta se case com ele. Dean
Martin a explanar que nasceu para beber tal como o seu amigo nasceu
para escrever e por isso vive e morre conservado na bebida como Dave
na fogueira literária. Alguns, como estrelas cadentes, tudo em
milésimos, de passagem, amando o efémero, à maneira de Eugénio de
Andrade.
Demorei muito a perceber
tantas coisas do filme de Minnelli. Tantas coisas que não se dizem
em palavras mas sussurradamente em olhares e expressões, vazios e
silêncios. Mas certa vez, já não imagino a data, descobri que na
infância, nessa casa vasta demais e sem contador, quando se é
pequeno, vi tantos e tantos tipos como Dave Hirsh. Magalas,
fugitivos, imigrantes, desistentes, seres sem rei nem roque que
apareciam no lar já não doce ao fim de anos impronunciáveis e
causavam sem querer uma hecatombe não muito pequena. Quando se
estava no café e se via que algum estranho com uma aura devastadora
se encontrava no bilhar e o ruído era mais do que o costume, já
estava a ver o “Some Came Running”. Quando na missa as velhinhas
e os adultos viravam a cabeça para os lados e para trás e tossiam
mais do que o habitual, o “Some Came Running” já estava a ser
visto e revisto sem o saber. Se na paragem do autocarro ou no jogo da
bola domingueiro uma garota de saia curta e cabelo perfumado e
arranjado não olhava para o estranho mas corava, o “Some Came
Running” projectava-se sem freios em desmesurada janela e com toda
a vibração e todas as cores e melodrama. “Some Came Running” é
o mais antigo dos contos e dos dramas, e o grande realizador como o
grande escritor que foi aos campos de batalha (sabe bem dizê-lo, sem
falar em segundas linhas mesquinhas ou doutas) deram a ver pela
primeira e derradeira vez essa ferida e esses desabrochares pois
meteram-se no meio, por dentro das dúvidas e nos círculos
contínuos, suicidiários e irracionais, talvez salvos pela paixão
demasiada, sem distâncias gélidas.
Dou os Parabéns a Frank
Sinatra e tenho de os dar igualmente a Dave Hirsh, bruto, caloroso,
contraditório, seguríssimo. Não se trata do anti-herói pusilânime
ou do escritor bloqueado que redescobre a inspiração, mas de um
indefinível genuíno, um puro, uma fonte de confiança e um berço
(ventre) seguro; resumindo, tarefa impossível: muito longe do
virtual e das máquinas e da convenção, cheio de carne, sangue,
suor, amor e raiva, sublime e esterco. E assim, de confiança. Sem
lições ou conselhos: cada um como cada qual: um universo sagrado...
Sinatra, como Hirsh ou Martin, são velhos como o primeiro cepo do
primeiro jardim e novos como a eternidade. Todos os anos de vida.
terça-feira, 8 de dezembro de 2015
LUCKY STAR - Cineclube da TOCA
Situado no centro da cidade de Braga, no espaço TOCA - Trabalho de uma Oficina Cultural e Associativa, este Cineclube tem como principal objectivo ser um ponto de encontro de todos quanto gostam de cinema mas igualmente daqueles que o pretendem descobrir. Através de uma particular atenção à história de uma arte centenária, todas as terças-feiras à noite um filme clássico poderá conviver com outro feito nos nossos dias, ou vice-versa, em relações que se pretendem produtivas e que suscitem o interesse e o debate. Fundado e programado por João Palhares e José Oliveira e com o apoio da SYnergia - Centro Jovem, cada sessão contará com uma folha de sala escrita originalmente para o efeito, que contextualize e analise o filme, bem como uma apresentação prévia. Sempre que seja possível ou se justifique, um convidado especial apresentará o filme e participará na discussão. Em resumo, quer-se devolver ao Cinema o seu estatuto belo e humilde de arte puramente popular que certo dia foi, pondo Braga no mapa da cinefilia que verdadeiramente importa, isto é, esse gesto simples da partilha.
"Tarrafal" (2007) inaugura mais uma fase bastante especial da obra de Pedro Costa, composta por várias curtas-metragens em remontagem de sentidos, depois das durações, amplitudes e respirações largas de "No Quarta da Vanda" (2002) e "Juventude em Marcha" (2006). Nesses filmes tratou-se de regressar às Fontainhas e à comunidade Cabo-verdiana sobrevivente em Lisboa depois de aí ter estado em "Ossos", só que, factor decisivo para tudo o que se seguiu, Costa dispensou as grandes equipas e meios do cinema dito industrial, para com os recentes e leves equipamentos digitais chegar realmente junto das pessoas, estando com elas todo o tempo necessário. Desse tempo, dessa disponibilidade incondicional para escutar as histórias de vida únicas e o quotidiano de um bairro, aboliu-se qualquer tipo de género ou fronteira cinematográfica, registando-se pessoas em vez de personagens, o seu movimento e por consequência o movimento do seu mundo, nunca deixando de lado um romanesco fortíssimo que irrompe da memória e do coração de cada um desses seres que vivem e habitam intensamente. "Tarrafal" abre com um plano de conjunto que ocupa praticamente metade dos seus dezassete minutos, imóvel, duro e no escuro como o que é dito, onde uma Mãe e um filho, aglutinando as promessas da infância e a desilusão adulta, vislumbram um passado na sua terra natal, fazem uma cartografia familiar e afectiva, um estado das coisas político e uma denúncia feroz que na sua extrema crueza e realidade ostenta laivos feéricos. Composição e fundo que reenvia directamente para "Casa de Lava" (1994), onde os vivos da ilha esperavam os mortos, os pesadelos, as notícias e os fantasmas dos que tinham saído para Portugal. Se "Tarrafal" apresenta uma inversão geográfica e sentimental em relação a esse filme decisivo, o facto de se passar numa zona abstracta e árida - uma barraca sem nome nem lei, no meio do mato e longe das rendas, fora dos prédios brancos de "Juventude em Marcha" e dos quartos de Vanda - acentua e aprofunda todas as perseguições, misérias e genocídios a uma raça e a um povo que como tantos outros corre o risco de ficar sem pátria, futuro ou dignidade. A conversa que escutámos acaba por versar sobre uma entidade sem rosto nem identificação que persegue, expulsa e finalmente mata quem decide não poder fixar-se no País acolhedor, e da boca de quem o conta ficamos a saber que também eles ou já foram apanhados e morreram ou estão em risco de o serem. Entidade que vai ostentando dimensões do mal em forma absoluta e fantástica, imemorial e contemporânea, e que será figurada em elipse na segunda parte do filme. Lá fora, em agrestes extensões que deixam apenas vislumbrar resquícios recentes da civilização, um velho procura e bate violentamente com um pau em algo que nunca veremos; Ventura, o Pai de "Juventude em Marcha", entrega os pesares fúnebres ao jovem da barraca; e do dia viajamos repentinamente para o âmago de uma noite cerrada que tudo absorve, cara do inimigo fugidio surgido inteiro na rememoração; lamento pelos mortos que nem enterrados podem ser, como os vivos que não podem escolher. Voltamos à barraca e já só com aqueles que já morreram mil vezes, habitantes da sombra que ainda contemplam horizontes perdidos, mantendo-se em pé por uma força superior de quem viu o inaceitável e não se rende por isso mesmo. Para o punhal e a expulsão final fazerem ainda mais sentido agora, depois de "Cavalo Dinheiro" terminar com facas, cantos e promessas de justiça, pacificado e grave, avisando agora Ventura e todos os seus da mesma maneira como antes foram avisados e agredidos. Pedro Costa, Ventura, José Alberto Silva, como em outras horas Vanda ou Pango, e à semelhança da desmultiplicação de filhos e logo de primaveras florescentes asseguradas, o rebaixamento ou a demagogia não entram, para na treva e no finca-pé se apelar a toda a luz e a todo o cósmico humanismo. O poder das formas cinematográficas e a força irredutível do amor.
O trabalho do Escocês Bill Douglas, nomeadamente a trilogia inaugurada com "My Childhood" (1972), comunga de uma mesma intensidade, rigor e, por consequência, generosidade formal, que engrandece e transcende o que à primeira vista já tantas vezes se viu. Num universo igualmente árido e compacto onde a descoberta e assombro da infância se vai desvelando num austero preto e branco que acentua a dimensão assombrada e o peso do real a um nível idêntico, o fora-de-campo pressentido ou sonhado tem um poder comparável às desilusões e anseios presentes nos filmes referidos de Pedro Costa. A orfandade é lugar de abandono, deambulações, magia e terror do inaudito que surge e se agiganta sem aviso, e Bill Douglas, secamente e liricamente, utiliza-se do manancial vasto e sempre por desbravar do cinema e da sua técnica para nos devolver o estado de candura inerente a essa idade. Nunca desprezando o genuíno classicismo, utiliza a escala de planos e a profundidade de campo necessária a cada evento, assim como a subjectividade e a temperamental fusão entre a fixidez e o varrimento; já os ímpetos sonoros, carregados de rugosidade e personificação assustadoramente orgânica, em correspondência com o acolhimento do génio da natureza, essa imprevisibilidade vulcânica do indominável, colocam estes filmes no campo liberto e fulgurante do que se acostumou chamar modernidade - constituição de um primitivo inclassificável. "My Childhood" atinge o máximo de lirismo nas cenas onde o comboio promete paraísos outros ou nos campos ventosos onde se ganha um Pai, apelo do desconhecido e da libertação calorosa que pertence à família de Jean Vigo (o plano da almofada esventrada no segundo filme é prova da consanguinidade); e chega ao máximo de drenagem e de silêncio nesses afectos subtis ou negados, nos abafamentos que potenciam a fuga do seio progenitor estilhaçado, quadros absolutos e ruído em surdina que reenviam para Robert Bresson. Entre embates corriqueiros e passeatas transgressoras, desemboca-se no longe, que é o destino da criança no plano final, recomeço ou destino a todos prometido. "My Ain Folk" (1973), filme do meio ainda antes de sequela, está ainda mais cravado de mistérios e de circularidade, levando-nos até vias-lácteas insondáveis - a cena da aula é apenas uma parte do universo dependente - em rostos de espanto que alumiam dentro da sala de cinema iniciática, únicas cores que fatalmente se desvanecem. E do cinema não é certo que se saia, tal a ordem de acontecimentos e de visões que decorrerão no suposto real. Ainda mais sozinho e emancipando-se cada vez mais do irmão mais velho, o miúdo que acompanhamos vai, para além de continuar boquiaberto com as confusões e misérias dos crescidos, descobrir que as pessoas morrem, que a morte existe e que talvez seja a meta última e assegurada. E é dessa luz que rasga uma fenda e ferida para um sempre que brotará a luz descarnada sobre os olhos desprotegidos desse ser ainda novo demais. Mineiros e camponeses, sinais de uma Escócia rural - dados pela música exígua e por outros dados reconhecíveis - claridade estelar e negrume inescapável, deriva entre os avós e mais Pais inventados e fieis, o movimento do filme permanece o movimento e fluxo grave e maciço da queda da inocência. Fatalmente, caixões entram e saem por janelas, acentuando o irreversível e a passagem, para tudo se deter na mais perene das conclusões, o aceitamento. Nos mais secretos recantos de "My Ain Folk encontra-se um miúdo e um Avô, escondidos para não se magoarem e tentarem a felicidade, debaixo da coroa de estrelas protectoras, fora de mapa e de cronologia, longe da doença do tempo. Rimando com o aceitamento e a lógica, essa marcha final em que tudo faz parte e comunga de tudo, os templos longínquos e a tradição em acção, o presente e os ecos, como em Yasugiro Ozu. Cinco anos depois Bill Douglas fecha com "My Way Home" o périplo de Jamie (Stephen Archibald), aqui mais do que nunca parecido com as atribulações e errâncias do Antoine Doinel que François Truffaut viveu com Jean-Pierre Léaud, legado natural de Vigo. Se no filme anterior entramos pela ilusão do cinema, neste será pela encenação e frontalidade teatral, no mais cerrado dos três. O teatro, o retrato familiar retido, a imobilidade e o regresso a casa como tentativa de todas as redenções. Mas a volta é breve, talvez porque as casas continuam umas iguais às outras, as disfunções caseiras irresolúveis, a respiração cortada. O paroxismo latente que a trilogia sempre meteu em centro arrebenta, para uma primeira explosão que será apocalíptica no término - a guerra entre o dentro e o fora, a casa impossível contra o desejo irreprimível, a ignorância e a morte. Jamie volta do orfanato decidido a ser artista, é recebido pela avó louca como um príncipe que merece o David Copperfield de Dickens, o irmão continua a projectar-lhe a sombra atordoante. Plana por castelos desfasados do meio, minas hereditárias e pianos quiméricos. Impõe-se o barulho dos adultos, esse ruído determinista, que o faz recusar a narrativa matricial em direcção à alma, numa ascese que quebra toda a estética e ambiência passada rumo ao interior. Das estrelas do segundo tomo passa-se para as pirâmides, desertos e enigmas ancestrais na terra, e Jamie entrega-se ao exército sem guerra e com tédio para auscultar as profundezas da vastidão humana e do natural em conjugação. Aí, as repetições e a repercussão, o pequeno e o incomensurável, os horizontes rasgados e o nada próximo, o quente e frio indestrinçável, convergem num ponto e num lugar limite para a grande explosão advir. O dentro, a casa, as paredes, as fundações. Abalo último, vilipendiação da matéria, criação de um novo mundo, renascer, Acto de Primavera e eternos retornos assegurados. Jamie ficou, como qualquer um, entregue a si. Bill Douglas partiu do berço de "My Childhood", passou pela condição onírica do Cinema para acabar no mais mítico dos palcos ou jardins da nossa existência. Foi da infância ao fim dos fins e atingiu o reinício. A juventude do mundo e o peso dos séculos e séculos. Para nos deixar a imagem mais acabada da solidão e da memória. Por entre os círculos e os elos e o sumo da Maçã partilhada.
Texto escrito para o catálogo: "Nos Caminhos da Infância", ciclo realizado no CAM (Fundação C.Gulbenkian) e programado pela associação Os Filhos de Lumière.
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