segunda-feira, 27 de abril de 2020

O espectáculo mediático mata mais do que qualquer vírus

Um trecho da parte IV do Conto em Tempo de Pandemia "Autocertificação" que o Paulo Faria tem vindo a publicar no Jornal Público.

E que no meio de toneladas de lixo e de inutilidades diárias é o que mais me interessa.

«A atmosfera saturara-se de mensagens optimistas, «Juntos vamos vencer esta batalha», «Juntos vamos conseguir». Havia bandeiras de Portugal nas varandas, como durante os campeonatos europeus de futebol, como durante os mundiais. Na prática, porém, as pessoas que soltavam ou propagavam essas tiradas esperançosas e que desfraldavam às janelas as bandeiras ufanas eram as primeiras a abraçar os cenários mais negros, recusando-se a correr o mais pequeno risco. Num quadro de incerteza, em que pouco se sabia do vírus, optavam por pressupor o pior, deduziam que ele se transmitia de todas as maneiras possíveis e imaginárias, através do ar, à distância, debaixo de água, preferiam achar que ele resistia a tudo, ao calor, ao frio, à secura, à luz do Sol, que ele se colava a todas as superfícies, à pele humana, ao plástico, ao cartão, aos tecidos, obstinado, feroz, quase indestrutível, a não ser por acção do sacrossanto álcool etílico. As pessoas mostravam-se, simultaneamente, muito optimistas e muito pessimistas, sem que isso as afectasse, sem que se apercebessem, sequer, dessa contradição insanável. Pior: como se essa contradição as fortalecesse e lhes desse alento. Como se o optimismo piegas e o pessimismo histérico se reforçassem mutuamente.»

Sim, "Snowden" é um grande filme de Oliver Stone (o que interessa depois de JFK)




Palavras de um tipo com tomates, Edward Snowden. E que sabe obviamente muito mais sobre O Medo do que os milhões de comentadores de bancada inúteis que andam para aí a brilhar e a meter medo:
«Muitos governos vão – ou, melhor, já estão – a aproveitar esta pandemia para avançar na “arquitectura da opressão.
(...)
À medida que o autoritarismo se alastra, que as leis de emergência proliferam, à medida que nós sacrificamos os nossos direitos também estamos a sacrificar a nossa capacidade para deter o avanço no sentido de um mundo menos liberal e menos livre.
(...)
Acreditam mesmo que depois da primeira onda [da pandemia], da segunda onda, da 16ª onda, quando o coronavírus já for uma memória distante, que essas capacidades [de geolocalização, por exemplo] não vão ser mantidas? Que essas bases de dados vão ser eliminadas? Não importa como é que estas técnicas e estes dados estão a ser utilizados agora – o que está a ser construído é a arquitectura da opressão.
(...)
Eles dizem que é para análise dos contactos pessoais [no âmbito da pandemia] – para saber com quem é que esteve alguém que teve infecção confirmada – e isso, à superfície, parece ser uma boa ideia. Mas este tipo de monitorização não funciona quando estamos perante a escala de uma pandemia.
(...)
Temos de conseguir garantir que estão a ser activados alguns travões na pandemia, mas não na nossa sociedade.
(...)
Você até pode ter confiança nas pessoas que têm estes dados em seu poder, mas um dia alguém irá abusar destes dados.
(...)
Estes sistemas, se nós não os alterarmos, um dia eles vão tomar decisões de forma automatizada para determinar quem é que consegue um emprego, quem é que pode ter uma casa. E quem é que não pode ter essas coisas.»

segunda-feira, 20 de abril de 2020

15 filmes dos anos 2010-2019



Nas gigantescas salas escuras do cinema, nos cineclubes encafuados onde se fuma, em casa com a net sempre a quebrar, netfilx, My Two Thousand Movies, no portátil dum puto, filmado com o telemóvel dum puto, ficção de horas, documentário de horas, em episódios ou tudo duma assentada, 3 minutos ou 10 segundos, um fragmento sem entrada nem saída, séries, blockbusters, nos, vos, eles. Tudo é cinema.


- Cavalo Dinheiro, Pedro Costa, 2014 / Vitalina Varela, Pedro Costa, 2019

- The Master, Paul Thomas Anderson, 2012

- American Sniper, Clint Eastwood, 2014 / The Mule, Clint Eastwood, 2014

- O Estranho Caso de Angelica, Manoel de Oliveira, 2010 / Visita ou Memórias e Confissões, Manoel de Oliveira, 2015

- O.J.: Made in America, Ezra Edelman, 2016

- Wolfram, A Saliva do Lobo, Joana Torgal e Rodolfo Pimenta, 2010

- True Detective, Nic Pizzolatto (criador), 2014

- Holy Motors, Leos Carax, 2012

- E Agora? Lembra-me, Joaquim Pinto, 2013

- The Last Day of Leonard Cohen in Hydra, Mário Fernandes, 2018

- Já Visto Jamais Visto, Andrea Tonacci, 2013

- Creed, Ryan Coogler, 2015

- Ad Astra, James Gray, 2019


«Há cineastas, como há pessoas, que procedem por silogismos e assim destroem tudo e se destroem a si próprias. Há cineastas, como há pessoas, que estão para além de qualquer lógica e transfiguram tudo o que tocam em oração e oblação. Nessa delirante irracionalidade do amor, apanágio de tão raros.»

João Bénard da Costa

[Imagem: Andrea Tonacci, a melhor pessoa do mundo, em Já Visto Jamais Visto]

domingo, 19 de abril de 2020

God knows there’s something special about heroes

Cinema, 2020, O acontecimento

"The Last Dance", por Jason Hehir e Michael Jordan

Hoje.



Deixo ficar ainda os meus cinco (dos que vi) filmes / documentários favoritos produzidos pela ESPN (que tenho em altíssima conta):

- O.J.: Made in America, Ezra Edelman, 2016

- Jordan Rides the Bus, Ron Shelton, 2010

- Mike Tyson, ESPN SportsCentury, 2002

- Tim Richmond: To the Limit, Rory Karpf, 2009

- Rodman: For Better or Worse, Todd Kapostasy, 2019

sábado, 11 de abril de 2020

40 dias 40 filmes – Cinema em Tempos de Cólera: “Spencer's Mountain” de Delmer Daves




A escolha de José Oliveira

LINK: https://mega.nz/file/2yIxRKBb#mnOxuyAGXRFt8Dbh6R5YKJnViP9UXj8yoEJQoIe3Ovc


O filme que hoje vamos ver foi realizado por um dos mais talentosos e prolíferos classicistas de Hollywood, Delmer Daves. Hoje um pouco esquecido, tocou em praticamente todos os géneros, do filme de guerra e de aventuras (Destination Tokyo, a sua estreia em 1943) ao filme noir (o mítico Dark Passage, baseado no romance do misterioso David Goodis, usando o olhar subjectivo de Humphrey Bogart durante um tempo considerável), concluindo a sua carreira no ano de 1965 em Itália e com Maureen O'Hara, em mais uma das muitas adaptações literárias que levou a cabo pelo próprio punho, ficando nos anais a história da actriz ter detestado o trabalho do operador de câmara que segundo ela a não beneficiou, torcendo então pela equipa Italiana que depois de cada dia de filmagens jogava uma partida de futebol contra a parte americana da equipa de filmagens; The Battle of the Villa Fiorita, chamou-se a empreitada. Realizador e argumentista que possuía verdadeiramente o material que escolhia, não um tarefeiro que aceitava qualquer material para muito bem ou mal o despachar, visto em retrospectiva abriu muitos caminhos para a nova Hollywood reclamar autorias nos anos 70, até chegar a Quentin Tarantino ou Paul Thomas Anderson.

Mas foram os westerns a comporem a parte mais brilhante da sua carreira. Broken Arrow abriu e surpreendeu os fifties e é um dos filmes mais importantes desse período, pois tal como The Last Wagon, de 1956 e talvez a sua obra-prima, Daves vai fundo na complexa questão racial da fundação dos Estados Unidos, a mestiçagem e a eterna questão da pertença, aprimorando ainda o seu portentoso talento para filmar paisagens de um modo inteiro que o coloca ao lado de John Ford ou de Anthony Mann. Mas imediatamente no ano seguinte, o expressionista 3:10 to Yuma (imbatível adaptação do escritor pulp Elmore Leonard) é um novo marco, carregado de suspense e terrífico, fechando logo depois esse ciclo fascinante com o vertiginoso e abissal The Hanging Tree, auscultando um Gary Cooper tão torturado e cansado como no terminal Man of the West. Daves sempre foi muito respeitado pelos seus pares, mas nunca teve grandes favores da crítica nem prémios, nem em França, onde os rebeldes da futura nouvelle vague nunca lhe prestaram a atenção merecida.

Faltou referir imensa coisa ao longo dos seus trinta filmes, nomeadamente o lado Shakespeariano de algumas obras, mas vamos então para Spencer's Mountain, o seu antepenúltimo filme e um dos pontos altos do cinema americano. Precioso pois junta Henry Fonda com Maureen O'Hara nas montanhas, nas verduras, nas neves e nos lagos do Wyoming, envoltos num sereno esplendor transcendental que só Michael Cimino seria capaz de estar à altura nos grandes espaços contíguos de Heaven's Gate. «Over 100 years ago, my grandpa come into this land. Grandpa climbed this mountain and said, "this is it' and he built him a sod house' got himself a wife'and they named the whole mountain after him. Spencer's mountain it is to this day.» E logo vamos ver que quem profere orgulhosamente estas palavras, o filho Clay Spencer de Fonda, esteve à altura do legado do pai que primeiramente conquistou a montanha e pronunciou o "this is it'", com os seus nove filhos, desde o recém-nascido até ao primeiro dos Spencer que está prestes a ser graduado e tem em vista a faculdade.

Spencer's Mountain é um conto, quase ou mesmo um conto de fadas, sob a égide da abundância: crias, natureza, os diversos elementos, os acasalamentos vários, as dádivas e os legados de mãos vazias, muitos pais, muitos filhos, muitos ciclos. O eterno-retorno e todos esses milagres em filigrana. Com aquela luz também bíblica que rasga as nuvens do genérico para cair sobre a terra prometida. Vamos reparar, talvez hoje em dia anacronicamente, que todos se tratam por irmãos, todos parecem reconhecer-se irmãos, semelhantes, ajudando-se mutuamente, dividindo esforços, sem superioridades por aí além. É neste Paraíso Perfeito, porventura hoje irremediavelmente perdido ou bastante remoto, que se continuarão a desenrolar problemas semelhantes aos de todas as gerações em todas as épocas. E como sempre, tudo passa. Aqui numa respiração que tudo relativiza.

Os sonhos «maiores do que a vida» que presidem à construção de uma segunda casa no topo do mundo que jamais sairá do esqueleto; a dificuldade que o «rapaz do campo» tem em entrar para o ensino superior, apesar de ter aprendido as diversas matérias à maneira de Abraham Lincoln; o ostracismo mesmo que sub-reptício a quem não está inserido no campo religioso de uma comunidade; enfim, as eternas ciumeiras e vinganças perpetradas pela flutuante instituição do amor e sobretudo do amor não correspondido. Temos no início aquele momento sublime onde na casa em perpétua construção Fonda mostra ao filho a vista que pensou oferecer à amada no acordar de todos os dias, e será essa bela ambição desmesurada o preço a pagar por não ter entendido que todo esse maravilhamento já estava inteiro na sua casa actual, no desfilar proporcional dos nove filhos, do bebé às loirinhas do meio, do intelectual às adolescentes com sangue na guelra.

Fonda aceitará que todo esse maravilhamento, esse lar comum e magnânimo, esse privilégio incomparável, essa posse, não se medem em mais quatro paredes mas sim em toda a envolvência a perder de vista, transformadora, transcendental, e sagrada. Por instantes esqueceu-se, como por instantes todos nós nos podemos esquecer do essencial, mas irá vender tudo isso sem remorso a favor desse primoroso portal que pela primeiríssima vez um membro do clã poderá abrir para todos os outros. Com tal no espírito, tanto irá estar à altura da sua palavra severa aquando do assinar da candidatura do filho à faculdade, como nas mesmas elevações do seu Pai que tragicamente morre nesse hiato mas que no testamento pede ao neto: «Aim for the stars».

«If I had my way, you'd be president of these United States. Clayboy, it was like reaching for the sun and the moon and the stars, wasn't it, dear?», idealizou temerariamente a mãe. E assim foi, e assim poderá ser mais uma vez. Em Spencer's Mountain todos já nasceram com a mais sublime das dádivas, e todos os encontros e desencontros reservados ao factor humano e ao seu perene grito existencialista começam a entrar nos eixos e a colherem a verdadeira luz quando se olha simplesmente em volta, se respira, se limpa o olhar. Acolhendo e agradecendo toda essa abundância, até às estrelas. Um filme tão simples como genial, tão elementar como complexo. E um cineasta no domínio absoluto dos seus meios e da abertura ao outro grande meio natural: a cerimónia de graduação aglutina o hino nacional e a nostalgia da Americana, o discurso apaixonado e confessional da professora-mãe, as lágrimas e o orgulho, com os planos contra-picados que elevam tudo isso até alturas celestiais, tornando o cerimonial uma síntese de todo o trabalho paciente, meio invisível e dedicado de anos, condensando-o pelas formas cinematográficas.

Tudo o resto, e que resto, é a consumada e natural comunhão entre a técnica e esse espírito imperturbável original, nomeadamente nas operações com as gruas que Daves foi apurando em sequências vertiginosas nos westerns para aqui as usar subtilmente, muitas vezes na intimidade, unindo os habitantes à sua terra: no funeral do patriarca, depois de perscrutar os rostos e a mágoa de um modo quase documental, a câmara olha a disposição dos presentes de cima, move-se muito lentamente até enquadrar as montanhas e os céus gigantescos, acalmando e diluindo aí as nossas dores, infinito que nos ultrapassa; pouco depois, já no meio urbano, da primeira vez que vemos o jovem Clayboy na faculdade e ele diz que esse é o mais bonito lugar do mundo, a grua entra em acção e mostra-nos os relvados, as flores e sobretudo um novo mundo que espera o elemento que ousou sair da casca. As gruas que fazem fluir levemente o movimento, tornando-o a um tempo claro e cintilante, combinadas com o ecrã rasgado (o CinemaScope…), fundindo as horizontais das planícies com a verticalidade dos seus habitantes, numa perfeita rotação complementar. Muitos exemplos deste trabalho extremamente maleável e não maquínico poderiam ser dados, dos inícios de sequências em novos espaços ou descrevendo e dramatizando eventos fortes ou significativos, até a instantes fugazes e aventureiros, ficando mais um desafio para se estar atento no riquíssimo rol de possibilidades deste grande cineasta, cheio de coração.

Spencer's Mountain é a abundância, a regeneração e o estado de graça sempre possíveis a quem decide tomar atitudes (como Fonda a ir falar com o reitor, olhos nos olhos, como deve ser), não se desinteressando pelo que o rodeia. Agradecendo, como faz uma das mais novas na oração à mesa, por cada insignificância, desde os pássaros que cantam à comida no prato à fofura do mundo que para ela ainda é tudo. THE WORLD STEPS ASIDE TO LET ANY MAN PASS IF HE KNOWS WHERE HE IS GOING, assim mesmo em capitais, é outro presente da professora ao seu filho. Obrigado, montanha.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Nicholas Ray por Tag Gallagher



Nicholas Ray (Galesville, Wisconsin. 1911-79)  Acting, writing and di­recting, in radio, theater, and television.  First film, 1948, They Live by Night.

   French critics such as Truffaut, Godard, Rohmer and Rivette were lion­izing Ray at a time when Americans were disregarding him.  Partly this disparity was due to Ray epitomizing the desperation of contemporary life, whereas in America during the 50s existential attitudes were only begin­ning to be fashionable.  Partly it was due to Ray smelling like a Hollywoodized version of Elia Kazan, whom New York adored.  Ray had worked with Kazan and shared James Dean with him, and his characters have the same wounded anguish just below the surface.  But Ray made his action scenes bigger-than-life as well, by treating them as choreography, and in general distanced to exasperation the conventions of every genre or convention he touched.  His camera seemed to call everything into ques­tion by the uncomfortable way it meditated over landscapes and rooms (he had studied architecture in his youth with Frank Lloyd Wright).  Ray was not understood.

   Ostensibly, indeed ostentatiously, what were in crisis in Ray’s films were traditional institutions: army and government, justice and schools, the family and sex roles.  But even though Ray had been nourished in radical populist movements during the 1930s, his films are only superficially about what’s wrong with society, and even less about the class struggle and how to fix things.  Rebel without a Cause (1955) starts out about juvenile delinquency but ends up being about the same things as Bitter Victory, a film that starts out about soldiers in the desert, or Savage Innocents, a film that starts out about Eskimos.  And Ray’s antagonists too usually end up confronting a “moral equivalence between their supposedly antithetical natures.” [i]  

   The real drama in Ray, rather than the apparent one, is the Romantic struggle between aspiration and nihilism, between principles and dreams and a hostile, senseless world.  Ray is neither documentary (suburban high school; desert war; Eskimo life) nor fiction (Kazan); he is a yearning, a yearning for transcendentals that maybe don’t exist.  What kind of a uni­verse is it where everything always goes wrong, where I’m so miserable?  Is there anything, in Godard’s phrase, “beyond the stars”? [ii]

[i]  Jonathan Rosenbaum, in  Cinema p. 811.
[ii].  “Au-delà des étoiles,” loc. cit.

c. 1994 for a Spanish cinema encyclopedia /  Trafic (part of an article on c. 50 Hollywood directors) ]

segunda-feira, 6 de abril de 2020

caminho de volta...



Com quarentena ou sem ela o facebook de Jorge Silva Melo continua uma preciosidade, um oásis potável no centro da fossa comunitária, um raio de humanidade e de esperança no eterno último reduto dos cobardes. Não sou contra as redes sociais, sou contra o mal inato dos homens a ser posto em evidência nessa superfície das superfícies, a obrigação de ter opinião, a necessidade de aparecer a todo o custo para ter relevância e não cair no esquecimento, tudo a custo da trampa que for. Num post recente Silva Melo mandou uma tirada daquelas que costuma mandar, dizendo que já viu muitos filmes maus salvos por bons actores, mas nunca viu um bom filme cheio de maus actores. Talvez se possa arranjar excepções, do cinema clássico do pechisbeque, esse cinema sem suposto autor que não tinha condições para escolher os actores certos mas apesar disso conseguia articular uma narrativa, fazer maravilhas com a câmara, inventar raccords de montagem ou cerebrais, promover choques entre realidade e pura ficção, maquetas de estúdio e antros de perdição, etc; ou convocar a fase Mexicana de Luis Buñuel; ou então, caso mais complexo, quando se prefere o peso da veracidade, da herança, da verdade de alguém a representar-se a si próprio ao invés de se contratar uma vedeta, ou mesmo um bom actor, para tentar mentir sobre aquilo que não sabe. Perde-se perfeição e polimento, ganha-se honestidade. Muitas vezes, os grandes actores conseguem-no, mas há casos, tradições (mineiros ou treinadores de desporto), verdades, que não dão para fingir.

“The Way Back” é um desses casos, embora não consiga dizer que é mau pois é mal realizado, provar que a câmara treme muito sem justificação, que a escolha dos ângulos de filmagem é confusa, contraditória, muitas vezes saltando o eixo e a regra dos 180º sem grande lógica nem impacto; não o consigo condenar totalmente por isso, nem pelas distâncias duvidosas de certos planos afastados em combinação com o perto e mesmo os rostos, ou essa música que não traz nada de novo e que pode simplesmente embalar… não consigo dizer que é um filme inofensivo ou inútil pois eu percebi totalmente a personagem de Ben Affleck, os seus dilemas, a sua tragédia, as suas feridas, a sua necessidade de não cicatrizar nada, de pelo contrário as agredir e abrir, de fazer a paga própria e terrena já que a justiça divina se parece ter esquecido dele. Se tudo isso aparece a uma vez limpo, escancarado e protegido, não podemos estar em presença de um filme dispensável.

Na abertura começamos por saber que Ben Affleck é daqueles que poderiam ter sido alguém, como o Berlamino de Fernando Lopes, desses que na infância e na adolescência tiverem o mundo e o futuro a seus pés para depois o chutarem ou lançarem para longe devido a opacos motivos que jamais entenderão. A cruz carregada por Jack é um castigo e uma auto-flagelação auto-imposta, a insistência de permanecer no calvário para lá do aceitável é culpa dele e não de um «outro» culpado. Nessa zona sombria e luminosa da Califórnia ou aqui ao lado onde moramos, miúdos já de trintas e quarentas anos que sofrem de saudades dos tempos remotos congelados algures, dos tempos em que o jogo da bola era o dom sem margem para dúvidas, o divino e a religião, a justificação da vida que não pediram, a maneira de desafiarem a perdição prometida, e agora sofrem pela perda do Paraíso Perdido.

Quem fala no jogo da bola pode falar do pianista prodigioso ou do físico prodigioso, a infância e os sonhos carbonizados por dá lá aquela palha, de uma maneira que não se consegue desculpar nem tolerar, como as criazinhas arrancadas ao leite materno muito antes do tempo. Vamos encontrar Jack a fazer-se de trolha e muitos de nós vão falar com ele, vão ver novamente a sua ferida a abrir-se, um reenviar para o passado sempre presente, nosso ou de alguns casos que conhecemos assim na infância sem sabermos que iríamos ser semelhantes. Lembro-me do prodigioso jogador de snooker na sede do clube de futebol da minha aldeia a derrotar qualquer um em breves segundos e utilizando o taco ao contrários na últimas bolas para humilhar o adversário, o amigo que o compreendia e que não levava a mal. Provavelmente foi fã do Tom Cruise do “The Color of Money” nos sumptuosos anos oitenta das salas gigantescas de cinema, estudou-lhe os gestos, sacou-lhe a pinta, namoriscou umas raparigas à pala dele, mas vinte anos depois também caiu na trolhice ou na fábrica de torneiras da periferia, a brilhar nos sábados à tarde, pela noite adentro. Lembro-me de um fabuloso rapaz loiro, fabuloso atleta, apanha-bolas do Sporting Clube de Braga, que aparecia na televisão amiúde a devolver a bola aos seus ídolos, prometendo-lhes que iria ser como eles, e que uma vez humilhou a minha turma, lembro-me da frase que me soltou quando só decorriam alguns minutos de jogo: «uma dúzia fica mais barato», e minutos depois perdíamos por 12-0, num fabuloso mergulho da pequena cabeça. Esse loirinho de cabelos cortados à tigela-anos 90 chegou à equipa-b dos profissionais, foi titular, continuou a brilhar, mas um dia teve de tirar uns meses de folga para cumprir o serviço militar e quando regressou nunca mais foi o mesmo. Ninguém soube explicar bem porquê, sempre pairaram versões várias e opostas, o certo é que começou a fumar cada vez mais, casou-se, começou a engordar, a beber cerveja a metro, um mistério a adensar-se, foi dispensado e hoje passeia pançudo pelas ruas de Braga, onde muitos o reconhecem e o tratam como a vedeta que ainda é, mito urbano, espectáculo ambulante, o para sempre possível João Vieira Pinto que por momentos o chegou a ser; lembro-me das meninas «modelos», a próxima Claudia Schiffer, hoje e para a eternidade belas a trabalharem nos cabeleireiros e nas lojas.

O hustler das mesas de snooker tem vários filhos e a vingança infligida aos compinchas amansa-lhe constantemente o ímpeto, salvo raras explosões impossíveis de conter; o João Vieira Pinto número dois compensa nas grades de cerveja e nas equipas dos campeonatos amadores em que continua a brilhar já quase aos quarenta anos, facilmente, devorando nos terrenos pelados o mistério e uma possível culpa; as cabeleireiras, as modistas, essas de quem desviamos o olhar nas caixas ou na secção da padaria do Pingo Doce ou do Continente, alienam-se em revistas, séries de televisão, nas discotecas de fim-de-semana onde são desejadas como as super-modelos a que um dia aspiraram. Príncipes e rainhas, outros nem por isso, talvez todos nessa história de uma humanidade que certo dia vislumbrou e tocou numa luzinha única, bruxuleante, talvez ambígua ou ilusória demais. Talvez pudessem ter feito um pouco mais, talvez não, teve que ver com a senhora sorte?

O Jack de Ben Affleck trabalha até rebentar, bebe como um Dean Martin no “Rio Bravo” e magoa-se para se esquecer disso, porventura para meter, como diziam os adultos na alvorada da sua vida, juízo na cabecinha. O filme desenrola-se e vamos ficar a saber dos problemas que ele teve com o Pai, de um casamento talvez precoce e logo uma vida estável que já não dava para mudar quando começou a ter consciência da troca que teve de fazer sem querer, de um filho amado e perdido, e da tragédia consumada num «para sempre». E de como Jack tentou substituir a tragédia adulta pela oportunidade perdida no Paraíso das magias e assim não dar chances de ruptura ao compartimento do cérebro que fecha a sete chaves os foguetes mais brilhantes e sonoros de toda a consciência. Não dar chances ao coração abafado. A nostalgia e o imperdoável em retrospectiva a perderem a substância original, como quem martela álcool e o bebe como sendo a colheita certa. O destino e o inexorável a adormecerem as teimosas melodias da infância que teimam em não cessar.

Gavin O'Connor não parece ser um grande cineasta, nem um realizador com talento, mas também não é um criativozinho do argumento, da dinâmica mentirosa e espectacular, da pro-actividade dramática, tudo vocabulário desprezível. De certeza, pois Ben Affleck encorpa toda essa fatia gigantesca da desilusão ao «Deus-dará» de um modo e com um peso que parece não advir somente do empenho de actor profissional, nem do método reinventado, da grande mentira. Inchado e não somente gordo, sem centro de gravidade e não apenas bamboleante, atormentado e jamais apenas bêbado; a pele estriada, o olhar sem centro, os gestos desencontrados, o caminho perdido, tudo fruto da negação existencial e sensível. Há cenas no filme de verdadeiro realizador, como aquele primeiro encontro ao ar livre com a ex-mulher, no qual os silêncios e os olhares desencontrados, a câmara a recuar constantemente até nos sonegar o que não podemos aceder, o que não temos direito mas compreenderemos pela experiência de cada um, se torna na única possibilidade daquela cena existir. Esse Jack que saberemos perdeu um filho, e por causa disso perdeu a mulher que certa vez ou para sempre amou, pensando ter perdido filho e mulher da mesma forma que perdeu a oportunidade de ser jogador de Basquetebol; Jack é o mesmo que implora a um dos miúdos que vai treinar,  nessa oportunidade caída do céu ou escrita nas estrelas, que assuma a posição de líder, daquele que lançará a bola decisiva nos derradeiros segundos, retirando-lhe o medo de jogar e logo o medo de viver, simplificando-lhe os problemas caseiros e devolvendo-lhe o Pai aos pavilhões e ao amor mútuo.

Uma oportunidade, uma última oportunidade, one last shot at redemption, diz a sinopse e muito do espírito americano. Jack é contratado para orientar a equipa em que certo dia brilhou de um movo inultrapassável, retira-a dos últimos lugares, devolve o orgulho aos miúdos humilhados, sai por instantes da sua carapaça de coitadinho. Outra das cenas mais fortes surge num dos momentos capitais do campeonato, quando estão em jogo os playoffs que esse liceu não atinge desde os tempos de Jack, e ele diz a todos e a cada um que não os trocava por ninguém; depois de lhes devolver a honra e acima de tudo a alegria de jogar, coloca-se como um deles, joga com eles, volta a ser um deles, altivo e não coitadinho, não envergonhado; e como sempre prova-se que os palavrões são linguística essencial mesmo num colégio católico. Jack, vamos pressentindo em todos os sinais, da maneira como brinca com os sobrinhos até às segundas oportunidades que parece oferecer aos pupilos e que na verdade são primeiras - esses cálculos de quem passou por aquela situação e é generoso sem inveja - é um bom ser, integro e honesto, que só faz mal a si mesmo e por consequência a muitos que ele ama e que o amam. Jack é um bom ser e teve boa formação, mesmo que essa educação tenha sido «a bola», por isso não será a derradeira oportunidade, e tudo o que ele faz medrar nesse hiato oferece-lhe a definitiva regeneração que não é só bandeira do cinema Americano desde a formação sanguinária mas um resguardo de todos os comuns, de alguns no acaso, de quem decide enfrentar um pouco os espectros.

Sem final feliz, sem pontas atadas, nem mesmo ciclo fechado, redondo, Jack faz uma viagem no tempo e oferece aos ofendidos e humilhados da pior equipa do mundo todas as armas essenciais à perda da inocência e ao embate em seco na realidade adulta, proporcionando mais um pouco de conhecimento das encruzilhadas reservadas a qualquer um de nós em certo tempo e em certo espaço. Uns vingarão, outros serão novamente Jack, mas alguma coisa daquela entrega, daquela igualdade e fraternidade, daquela troca, ressoará um dia, e outro Jack irá em auxilio de um sonho aterrado.

“The Way Back” é, sem contestação, uma história mil vezes contada, mil vezes melhor narrada, mil vezes superiormente dramatizada, apurada. Mas por uma vez (ou por mais uma vez, não muitas) consegui apreciar uma estrela de Hollywood com a mesma carga, o mesmo cheiro, a mesma temeridade e fragilidade do Tom Cruise de trazer por casa da minha aldeia, do loirinho genial já careca e deformado, da Barbie para sempre apetitosa, todos eles complexos monumentos Bracarenses, estátuas errantes, mitos desmitificados. Com a mesma carga e perigosa verificação verista do citado Dean Martin, naturalmente atormentado pois uma amado o largou, naturalmente atormentado pelo seus sonhos falidos de Wyatt Earp ou de Jesse James, lendas do oeste a degladiarem-se com o fim de um tempo que o apanhou desarmado, literalmente.

E um realizador a apagar-se, a não querer saber mais dos que esses seres fugazes, a refrear-se, para tentar estar à altura do protagonista. Não o conseguiu, Affleck é superlativo e mais do que tremente, mais do que ancestral e novo na terra, mas pelo menos não lhe espetou, nem um, golpe baixo. O cinema a não partir do pequeno, dos pequenos sentimentos, para atingir o grande, o épico, o exemplar, a receita, mas antes a aguentar-se na nota baixa, fina, melodicamente perfeita mesmo que torturada. A lengalenga da infância e a lengalenga da decadência. A comoção não nos é atirada, ilustrada, escancarada por diálogos e fúria audiovisual, mas invisivelmente desvelada para um semelhante à procura de cura. “The Way Back” é um horizonte da sempre possível felicidade. Não existem sonhos ou perfeições perecíveis de serem apagados. Nenhum trilho será dizimado.

No final de “You Can't Go Home Again”, Thomas Wolfe escreveu assim, impossível de traduzir ou explicar, pertencente aos amplexos negados: «You can't go back home to your family, back home to your childhood, back home to romantic love, back home to a young man's dreams of glory and of fame (…) back home to places in the country, to the cottage in Bermude, away from all the strife and conflict of the world, back home to the father you have lost and have been looking for, back home to someone who can help you, save you, ease the burden for you, back home to the old forms and systems of things which once seemed everlasting but which are changing all the time--back home to the escapes of Time and Memory.»

Dilema, perdição e paixão.  Jack tanto poderá ser perdoado pelo padre e voltar às quadras como continuar nas obras mais orgulhosamente. A vida continua, como nos Renoir. E isso já não tem tanta importância.

quinta-feira, 2 de abril de 2020

3 filmes de Fincher



Com “Se7en” David Fincher marcou toda a década de noventa do século passado. Eram os anos setenta e os anos noventa a conversarem, fundidos e não-resolvidos; a MTV que importa e as rugosidades paranóicas e bíblicas. O que fazer depois de atingir um auge aos 32 anos?

Em comparação, “The Game”, dois anos volvidos, soou como um exercício frívolo, mas com o decorrer do tempo e do estado das coisas nas sociedades globais o epíteto ressoou ainda mais como as mesmas intenções aplicadas a Hitchcock em filmes como “To Catch a Thief” ou “North by Northwest”.

O frio e cerebral empresário Nicholas Van Orton carregada por Michael Douglas ou está mesmo a pedir por uma lição ou então é um homem magoado na infância que pede um olhar e uma atenção mais profunda. As imagens em super-8 que paralelamente invadem e trucidam a narrativa no começo para consequentemente tudo assombrarem e finalmente apaziguarem,  fazem raccord soturno com a única citação bíblica literal que se escutará: «Eu era cego mas agora vejo!», do livro de Jo.

Era cego e estava a pedi-las; agora vejo, estou curado; talvez seja, a resultado final. Mas o vale das sombras é duro e está carregado de perigos a que devemos fazer frente pacificamente e acreditando. Fincher fez um filme sobre o próprio cinema e sobre o aqui e agora, sendo 1997 ou 2020. Um filme sobre a felicidade e as agruras do livre-arbítrio. Que tanto funciona nos sentidos literais como nas parábolas mais demenciais, em termos concretos e em termos da famosa suspension of disbelief. Isto não é um videogame, não é uma PlayStation.

Van Orton vai apreciar a realidade a ser transmutada violentamente e despudoradamente; o grande espectáculo a vilipendiar o dia-a-dia e a rotina que nos sustém; vai ter de explicar o inexplicável e a plot mais rocambolesca ao semelhante mais comum; vai notar o que nunca tinha notado ou não notava há muito tempo: que existem figurantes, actores, que passam de um lado para o outro e é preciso estar atento; vai confundir o simulacro por causa do aparato, como nos telejornais e redes sociais, e estar no centro dos efeitos especiais ultra-manipuladores, acreditando nisso tudo;  enfim, um filme a ser feito dentro de outro filme, produzido pelo actor principal que vai ser ele mesmo, produtor também e, lá para o fim, argumentista.

Argumentista pois o socorro que irá representar a ex-mulher ainda dentro do Grande Jogo, todo o inverso em relação ao telefonema que com ela teve anteriormente, o negativo a volver-se positivo, o coração a brotar do gelo; ou, já aparentemente fora do Jogo-Jogo, quando no final pede para se encontrar novamente com um dos peões cruciais do tabuleiro, a bela Deborah Kara Unger, ele reescreve tanto dentro como fora o destino que cabe a cada um, sem ilusões; argumentista ainda no momento em que ainda Oficiosamente se suicida mesmo, antecipando o homicídio que funcionaria como o clímax perfeito, o toque de Midas de um grande estúdio, de uma grande equipa técnica e artística.

Se toda essa fábrica descendente de Hollywood e dos seus sonhos e pesadelos chega a levar o exercício aos píncaros, e consigo tanto acreditar que Orton tanto se lixou como apenas – e pode chegar – Fincher, o pintor Harris Savides e os homens da caneta são uns génios, como perceber que continuamos como no Jogo da Vida, onde é preciso resolver quebra-cabeças encapuçados, arranjar chaves e tramar labirintos, oferecer o corpo e a mente aos mind-fuckers. E é nessa brecha que podemos, uns a meio do caminho outros no termo, perceber mais uma vez que o jogo da vida ultrapassa sempre o da ficção, a realidade é sempre mais intrincada e surreal do que o escapismo e a evasão mais descabeladas.

Basta ver hoje, quem previu a pandemia 2020, todo este suspense, condicionantes, alternativas, alcances, estagnação e criatividade possível? Talvez este «exercício inútil depois de um dos filmes mais originais e aterradores dos anos 90» ajude um pouco a lidar com o jogo fora do Jogo. Como Nicholas Van Orton que metafisicamente deu um passo por livre vontade para o outro mundo, ressuscitou do pesadelo inventado e do pesadelo imposto, ultrapassou a questão imemorial do Pai e nasceu outro.

“The Girl with the Dragon Tattoo” é certamente o filme menos esperado do percurso de Fincher. É claro que o universo de mistério, dos assassinatos em série, do tratamento anti-bizarro de tudo isso e dos funcionamentos das mentes criminosas estão lá – e daqui pode-se conectar directamente com as investigações ultra-complexas e ultra-éticas da série “Mindhunter”, assombrosa – mas é sobretudo os ambientes, a geografia de Stieg Larsson e as intrincadas e sempre rocambolescas questões das heranças e genealogias sempre aparentadas às arcas de Noé desmitificadas que estranhamos naquele que parecia ser um cineasta puramente americano; tal como o mergulho pelas ramificações complexas e distorcidas da formação emocional da detective juvenil que dá nome à saga, sendo juvenil a surpresa.

Mas é de emoção, precisamente, que se trata, de inteligência emocional. Os cofres a serem desempoeirados, remexidos e virados do avesso são fundos, antigos e imemoriais; as forças que os deslindam encontram-se emocionalmente em perda – a miúda com cavos traumas de infância perdida e de inadaptação social pode vislumbrar na missão de encontrar uma menina estranha quarenta anos depois uma alma-próxima, e talvez uma cura, tal como o detective de Daniel Craig necessita de confirmação de identidade. O curso dramático empoeirado, e para além dele a frieza tecnológica que aqui é o outro centro condicionante, promove o encontro de duas inteligências. A inteligência dele reconhecida por um velho patriarca que quer arrumar a sua história e por consequência a história familiar, e a inteligência dela que lida tão friamente como as máquinas pelas constelações numéricas e algoritmos que hoje nos definem.

Para lá dos sistemas, das redes e das conexões invisíveis e científicas interessa a Fincher o potente fogo domado até ao nível zero de transparência e de inflexão pelo cérebro, pelo corpo mas sobretudo pelo espírito de Lisbeth Salander, a extraordinária personagem que é The Girl with the Dragon Tattoo. E assim temos o encontro desta inteligência emocional sôfrega e contida ao mesmo nível, sôfrega dentro, contida fora, com a inteligência emocional do detective / jornalista de Mikael Blomkvist, que será o único a possuir e a utilizar adequadamente as redes de conexão sensíveis e personificadas com ela – distância, compreensão, comunicação ao mesmo nível que com ele mesmo, sem superioridade, sem qualquer desconto, jamais comiseração.

Entre as violações, penetrações e intersecções abstractas e inexoráveis do planeta dos hakers e as violações, penetrações e intersecções físicas e psicológicas entre terráqueos, a câmara, os famosos inserts, e a orquestração Fincheriana parece construir todo o o crescendo e desenterro não no mistério traçado pela plot que promoverá o filme – um fabuloso Cluedo «ultra plus nec» - mas sobretudo pela destrinça, pelo desenrolar, pelo recobro e regresso à temperatura emocional que pode dispensar a inteligência isolada e clínica e entrar nas vertigens do coração e nos arremedos da paixão. Que serão visões, movimentos e cenas micro – mais do que o sexo e a descompressão animal, um toque nas costas, um olhar para o quarto privado, a pálpebra de um olho a emudecer.

Talvez seja isso que interessa ao Fincher, e se não o for, interessou-me a mim mais do que tudo o resto, de modo precioso. Pois o labirinto e a reposição desenrolam-se até ao ponto em que se deu o indesculpável, e no final temos inclusive a desilusão dos primeiros amores e a continuação. Ela está pronta para o próximo capítulo, de dentes cerrados, de espírito aberto ao semelhante, pressentindo-se essa novidade de forma admirável. E Fincher, para algumas mentes um nerd e um obstinado tecnológico – «até publicidades e anúncios desportivos continua a fazer» - arrisca um blockbuster negro baseado num bestseller exótico e global para no turbilhão tentar sacar uma festinha carinhosa na epiderme básica, no arrepio e nos estremecimentos íntimos e salvíficos. Que isso aconteça na neve e longe da América pode não ser tão contratual como parece, talvez uma camada natural, uma lente natural a confundir as Prime Lenses das Red Epic. Se hoje Renoir caísse neste pântano parece-me que a isso, só a isso, cinco segundos num filme de duas horas e meia, aspiraria. Cinco segundos que podem ser como que uma hecatombe.

Com “Gone Girl” Fincher continua a sua veia significantemente manipulativa derivada do apogeu que se deu logo ao terceiro filme, o “The Game” em 1997. Na verdade, nunca a deixou, mas abriu várias excepções para espetar a sua unha no grande sentido justiceiro e tradicionalmente livre que a geração dele acatou de homens como Alan J. Pakula, homens inevitavelmente marcados pelo sonho americano cuspido para a lama que representou o assassinato de John F. Kenendy, nessa sublime elegia à orientadora obsessão que é “Zodiac”, ensinamentos férreos Languianos; ou na continuação dos sonhos ligados com pesadelos do onirismo realista de F. Scott Fitzgerald em “The Curious Case of Benjamin Button”.

Em “Gone Girl” os argumentistas e o realizador são mestres titereiros a dissertarem e a esmiuçarem sobre a vida pós-casamento, os compromissos, as cedências, chantagens, etc. E não só isso, pois agora Fincher e Gillian Flynn fazem como que uma revisão de clássicos do calibre de “Ace in the Hole” ou “A Face in the Crowd” metendo em grandíssimo-plano o veneno e o nojo dos novos meios de propaganda, fabricação e manipulação da informação e da verdade conforme o valor de mercado. A propagação do mal estudado e aprovado pelas desmesuradas cadeias de informação e enformado pelos rostos que nos acompanham no tranquilo sofá familiar, a desinformação e o twist que se tornam virais, perdem qualquer resquício de lógica (mesmo que distorcida), de alcance (maquiavélico ou com segundas intenções) ou de moral que nas obras de Billy Wilder ou de Elia Kazan poderia ser tacteado, para cair nos pântanos do nada.

Nada, ausência de plot causa-efeito, perda do poder moral de encenação, abstracção maligna do ponto de vista, manipulação com objecto ausente. Acto contínuo, “Gone Girl” é tanto um tratado contemporâneo sobre as imagens e sobre o caso particular do cinema, como sobre a não sobrevivência de qualquer tipo de anticorpos no mediatismo global do espectáculo da informação, do espectáculo na informação, do espectáculo informativo e dramático. Sem dramatismo, sem ponto de vista ou ética, temos o resultado da disseminação aleatória dos legados gratuitos da fusão da ausência de forma com a ausência de conteúdo que do Big Brother até aos painéis desportivos – infinitamente para lá da tão propalada estética MTV que agora se percebe justa – elevaram a vilanagem do brilho pessoal e da razão a qualquer custo para as mecânicas narrativas cinematográficas como para a globalização particular.

Uma das jogadas mais inteligentes mas também mais ambíguas ocorre nos dois movimentos opostos, dois blocos, duas partes, duas velocidades e lados que o espectador tem de escolher. No primeiro deles, o marido é claramente culpado. No segundo, tudo é inverso e o marido é mais do que inocente, sendo a esposa o mal do universo. Mas é precisamente neste posicionamento aparente, neste simplismo de jogo de damas ou de «programa das manhãs» que tudo se vai baralhar. E então é preciso estar atento aos menores sinais, aos hábitos que conhecemos como nossos, ao que refutamos e ao que adquirimos por certo. E não simplificar ainda mais para não sermos a peça mais básica do GRANDE OLHO. É nesta intersecção e penetração que tudo se joga, e então, como em toda a arte que importa, é questão de irmos olhando, deslindando, escolhendo ou desculpando, fulgurantemente.

Não é Fincher nem Flynn que são destituídos de princípios, carácter ou deontologia, antes a ausência destas armas, deste tipo de alma e coração, que urge expor, e quanto mais em modo abjecto mais utilmente, ou antes, impossível fugir ao modo abjecto se a lucidez presidir. Assim, o filme é feio, moralmente feio, esteticamente condenável, mas talvez útil. Útil como o frio bisturi que em “Zodiac” opera uma circuncisão pelas entranhas opacas do Mal até ao âmago. Um tipo de zapping, de rewind e de fast foward pelos meandros do nível zero que tem a sua imagem cristalizada e vazia na imagem final que não chega a um novo estado nem continua uma saga, antes vale pelo seu valor intrínseco de nada querer resolver. Relembrando as palavras do detective de Morgan Freeman no “Seven”: «It will go on and on…» O valor de Fincher, dos escritores, dos montadores, mas sobretudo de Fincher, o artesão-mor, é tornar todo este planar pelo degredo, todo este puzzle sem forma final, esta toca do coelho do mundo de lewis Carrol sem fundo nem aveso, novo remake de “Vertigo” com o abismo da mulher morta e da mulher viva num corpo cerrado para sempre sem suicídio, o mais lisível possível, para assim o desprezarmos ou acatarmos, conforme o caso. E nisso Fincher continua um mestre imbatível, um artesão ao nível do possível Hawks. Depois de Clint Eastwood, um Hawks que veio dos anos oitenta e noventa, sobrevivendo-os, sem perdoar. Cada plano à altura do homem e do real meio em que está inserido, numa cadência justa e reveladora. Mesmo que no nojo.