don't judge a book by its cover
emotions are more important than causes
a priest and soldier, a fordian hero
"One Hero", on The Sun Shines Bright, by Tag Gallagher
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"One Hero", on The Sun Shines Bright, by Tag Gallagher
O que significa ainda
hoje no cinema americano esse tão propalado classicismo que depois de D. W.
Griffith lhe ter estabelecido as regras nas primeiras décadas da existência de
Hollywood se tornou chavão do cinema de Henry King ou William Wyler, George
Cukor ou Leo McCarey? Ainda agora na estreia de Cry Macho se voltou a
falar de Clint Eastwood como o último dos clássicos e o seu instinto, rapidez
de execução, invisibilidade de estilo e emoção foram amplamente vistos como os
últimos pregos no caixão desse modo de fazer antigo e, segundo muitos, prático.
E o que significaram os temperamentais Nicholas Ray ou Elia Kazan, Samuel
Fuller ou Sam Peckinpah, homens que dentro do sistema não aguentaram as suas
bordas e regras e o implodiram e estilhaçaram interna e externamente, muitos
deles ganhando fama de fora-da-lei? E pondo de parte Eastwood, que cresceu na
grande depressão e atravessou todas essas convulsões da indústria, que sentido
faz ainda hoje rotularmos de clássico um cineasta que de quando em quando
utiliza com intensidade as vantagens do Campo/contracampo, a velha escala de
planos que vai permitir uma aproximação e revelação lenta ao grande plano e aos
olhos como espelho da alma na envolvência do homem com o meio e a natureza, e
logo, a tal câmara de filmar à altura do homem e dos sentimentos?
James Gray, para nos
ficarmos pelo mais celebrado classicista da nossa era, está deste modo em
sintonia com Alan Dwan, um pioneiro de Hollywood que foi evoluindo (ou
evoluindo sem evolução, como diria Manoel de Oliveira acerca deste assunto) até
fazer o seu filme final – o esplendoroso, rudimentar e assustadoramente moderno
Most Dangerous Man Alive, de 1961 – já na década de todos os perigos da
nação e do cinema americano? Estas questões não são de pouca monta e poderão
ser iluminadas no monumental ciclo que a Cinemateca Portuguesa inaugura agora
sobre este colosso. Colosso no sentido absoluto, um pioneiro que conservou uma
fidelidade aos desígnios vários da máquina industrial cinematográfica também
ela absoluta, uma personalidade que conservando sempre o seu lado de artífice
luminoso (o lado de alvenaria, se quisermos ir para a metáfora do filme
enquanto casa) uniu o pioneirismo ao primitivismo (artístico mas também
antropológico) para manter um modo de fazer límpido e incorruptível às épocas,
às guerras e pós-guerras, às modas e tendências, à pressão do box-office tal
como ao nicho do rótulo independente ou rebelde. Podemos dizer que Alan Dwan
utilizou sempre os seus instrumentos de cineasta, que não foram parcos mas
foram sempre utilizados com completa economia e precisão, para ver com
frontalidade e limpidez os eventos tratados pelo guião que aceitou fazer.
Em The good bad Man,
ou em The Half-Breed, ambos de 1916, relativamente iniciais tendo em
conta que as primeiras entradas na sua filmografia sempre em reconstrução datam
de 1911, o ponto de vista da câmara de Dwan e as chamadas fotos de rodagem captadas
para fins de publicidade ou de mais amplo arquivo, confundem-se, ou melhor,
comportam o mesmo peso de dramaturgia, de frontalidade e de modelação (da luz,
do corpo, dos brilhos das texturas e dos olhares), sendo que da imobilidade
fotográfica se passará para a imagem movente do cinema num acto de realismo que
dispensa uma transcendência outra sempre associada à “magia do cinema”. Um acto
de realismo que é uma fé na impossibilidade de separar os fundamentos da
realidade mais percetível dos fundamentos e utilidade do cinema. A perceção é a
mãe da deceção, diria Roman Polanski nos anos sessenta, portanto Dwan, neste
sentido um clássico sem dúvidas do olhar, busca sempre a objetividade. Alguns
comentadores aproximaram este tipo de realidade da “existência platônica” e
logo do campo ampliado do Platonismo, mas para ficarmos numa compreensão mais
sucinta vale a pena recorrer a uma citação de Jacques Lourcelles a propósito do
realismo em Dwan e, mais do que isso, da impossibilidade do cinema desligado da
relação umbilical com o real. Citando Oscar Wilde, em The Rise of Historical
Criticism, a aproximação a Dwan é a seguinte: «Deveríamos poder dizer de
uma pintura não que ela é bem pintada, mas que não é pintada.»
Sands of Iwo Jima fechou
os anos quarenta, e não querendo parafrasear a asserção de Francis Ford Coppola
em relação a Apocalipse Now, mas todo o oposto, não temos um filme de
guerra, não temos o espetáculo da guerra, temos sim a complexa guerra como é
possível reconstituí-la. Coppola referia-se muito mais a toda a envolvência
demencial da produção e da loucura a ela associada que passou do fora-de-campo
para a tela, enquanto em Dwan temos todos os elementos que podem compor a
ficção – da verosimilhança dos atores à funcionalidade e reconhecimento dos
cenários e dos elementos – trabalhados e capturados pelo senso mais direto e
intenso do lado documental que a grande Hollywood nunca dispensou. Documentário
e ficção, eis uma das dicotomias que normalmente são de conflito para muitos
cineastas mas que para Dwan se volve constantemente, silenciosamente, harmonia
e resolução, questão indispensável e indestrinçável. Nesse filme John Wayne
fuma descansadamente no turbilhão do caos final de Sands of Iwo Jima, em
pleno inferno onde se ousa colocar uma bandeira no topo do mundo que ali é o
Monte Suribachi, quando é atingido fatalmente da maneira como só aos grandes ou
belos falhados é permitido – nada a ver com a ordem normal ou os orgulhos da
vidinha. Cá se fazem cá se pagam, cada um vai ter direito aos brilhos ou às
tempestades que provocou. E, como seria óbvio fazer, não vamos ter
tinta-da-china estilística ou arrebatamentos líricos com a bandeira patriótica
em mais do que grande-plano, como até um Fuller ou um Aldrich fariam por breves
segundos em conquistas análogas, mas tudo ficará no dentro, na impassibilidade
significativa e terrífica, na catarse dos protagonistas a todo o passado. Um
documento mecânico da História.
Revelador da referida
fidelidade a um tipo de construção que permite apreciar as fundações sólidas de
cada empreitada – à maneira do arquiteto mais incorruptível – é a maneira como
nos anos cinquenta Dwan se vai lançar aos géneros cinematográficos. Basta a
cena inicial do Slightly Scarlet de 1956 para todo o melodrama ficar
descascado do lado barroco e excessivo a ele associado. A sombra magnética de
John Payne parece cansada e aborrecida da rotina do poder, a carnalidade de Rhonda
Fleming esconde todas as vilanias e perdições numa aparência e segredo cravados,
a inocência de Arlene Dahl é ambígua antes de abrir a boca, a banda sonora –
normalmente um elemento não controlado pelo realizador neste período - não tem
nem vai ter todo o poder de orientação emocional, tudo sob a luz materialista e
marcada do grandíssimo John Alton (comparar com as super-estilizações em The
Big Combo). Muitos dirão à evidência que as cores são fabulosas e que é
mais noir ou neo-noir do que melodrama, mas como não o seriam num
universo de tal erótica escarlate? Nessa propensão para a volúpia e para o
voyeurismo com que o filme abre, o mais surpreendente é a forma como Dwan
estanca o virtuosismo, num ritmo inexorável rumo à tragédia onde as desgraças
mais vis da natureza humana – incestos, traições de sangue, marcas eternas – se
sucedem orquestradas numa montagem que conserva todos os percalços e toda a
síntese de uma narrativa espessa. Mais uma vez a frontalidade com que os
eventos são olhados permite resolver todos os problemas de verosimilhança. A
fascinação filmofânica (essa oposição ao distanciamento brechtiano) como
delineada por Jacques Aumont e Michel Marie existe pela potência de
reconhecimento amplificado.
Mas que o discurso de frontalidades
e secura não sirva para destituir Dwan de febrilidades ou fantasias. Há um
romantismo não-dito mas nem por isso menos sôfrego e fundo que atravessa parte
da odisseia de Alan Dwan. Momentos ou validações perpétuas que alguns podem
experimentar, outros não, e o porquê não dá de si. «Agora sim, encontrei a
liberdade. Agora, estou livre.», concretiza um desertor dos mares a uma ninfa
de tribo canibal quando finalmente lhe aplica a diferença entre o amor e o
peixe, o beijo e a rede ou o mergulho. Aqui nem se trata de metáforas subtis ou
filigrana erótica mas sim uma possibilidade de comunhão virgem. O desertor é o
Dana Andrews dos noirs e policiais de Preminger ou Lang, ultra calejado
pelas vivências em cada porto e com cada mulher do interminável atlas. No
epicentro do perigo, ele, confia o espectador e vê-se no olhar que transcende à
alma, prefere largar a civilização e entregar-se à selvageria. Só que como nas
ambiências de Murnau ou Herman Melville (Enchanted Island, de 1958 é uma
adaptação de Typee), nas sombras e luzes e obscuridades com que Dwan
também se decide envolver, há Tabus e demónios a que o homem mesmo despido de
crenças e disposto a reentrar na origem, se vê obrigado a disputar. Embates
inacessíveis ao comum pois resguardados para poderes outros do lado da
metafisica, mostruário das nossas limitações, portas inacessíveis. Dwan teceu o
cúmulo do romantismo, chegando ao sagrado como que em divina figuração terrena
junta ao renascentista Michelangelo, sem chamar por isso. Mas, diga-se, com
muito mais sopro de vida e experiência concreta do que fascinação cinéfila.
Obra que pode revelar a quem assim quiser acreditar algumas arestas trucidadas
na cepa dura com que parece ser feita a arte e a vida de Dwan.
«Livre? Quem quer ser
livre?» Responde Robert Ryan, salvo de um cadafalso literal à última da hora e
de outro muito mais potente ferrado no interior da sua cabeça, a uma Barbara
Stanwyck que na hora menos esperada viu a vida torcer. Tanto um como outro
pertencem à raça dos que agiram tempo demais em espaço demais por sua conta e
risco. Sem medida, nem sentido, Deus nem Sombra. Ele por esse mundo fora tendo
como teto o céu. Ela junto a elefantes, dentro de palácios e selvas de igual
perdição. A antiga inadaptação. Por meio de injustiças imperdoáveis, irmandades
além morte, insubordinação, fugas, a doença, a peste, vão-se encontrar no milagre
final ou na justiça final e fazer parte disso. Perceber, como todo o grande
cinema americano percebeu e já não percebe mais, o valor da fidelidade. Sentimento
que jamais se amarra ou aninha, mas que é pelo contrário o móbil de todas as
liberdades. Por isso mesmo a deixa final não é sentença, é júbilo. Ou seja,
sentimentos que são os do trabalho do cineasta. Toda a ficção deixa de ter a
sua aura de espetáculo ou de efémero para se projetar em eternidade. O
romanesco é o romanesco de milhões para lá ou cá do cinema. O ofício das formas
como ofício da memória. Da reposição. Uma missão. Tudo entra em acordo e por
isso mesmo é difícil não considerar toda a obra que conheço de Dwan um só
filme. Caminho de múltiplos pavimentos e direções. Seja no fogo de Iwo Jima,
pelas águas do sonhado Suez (Suez, 1938), no gótico e na ciência a dobrarem-se no esplendor escuro e não obscuro de Driftwood, 1947, na viçosa Montana (Cattle
Queen of Montana, 1958), nos desertos falsos e mais do que realistas da
série-b de Angel in Exile, 1958, na cirurgia levada a cabo por Doc Halliday no velho oeste de Frontier Marshal, 1939, que de tão inaudita crueza e limpidez se volve praticamente Ficção científica, pois nunca no Western presenciamos tal ousadia, ou finalmente no apocalipse da obra
crepuscular. Tudo é documento, ainda mais do que documentário, e tudo redime da
vilipendiação e da usura que tantos autores gastaram pelo mundo. Escape to
Burma, de 1955, é a arte e a energia mais livre possível, o mundo como
deveria ser.
Quando em The river's
edge Anthony Quinn começa a queimar incontáveis notas para salvar a sua
amada, sem parar um segundo para pensar noutra alternativa, Dwan insere o sopro
filosófico e existencial no género americano por excelência, bem antes dos anos
setenta e de Arthur Penn. O filme é um maravilhoso road movie ou
pós-western de 1957 que abate sem apelo nem agravo qualquer das coisas
terminais que os anos 60, 70 ou princípios dos 80 iriam trazer. É Dwan, cada
vez mais surpreendente dentro dos seus limites precisos, e selvagem como a Nova
Hollywood que estava a chegar, a fazer raccord com o Frederick Wiseman
que começaria a apreender mundo pouco depois de Dwan se reformar. Trata-se de
captar vales, montanhas, magníficos rios ou as esporas de cowboys da maneira
como devem ser captados, nesse tipo de olhar científico e justo. Mas também
vias lácteas de humanidades, de modos de viver, uma tribo inteira ou apenas um gesto
peculiar, a gesta da mitologia americana ou um suspiro só, o ritmo e o pulsar
do cosmos ou a simples e complexa textura de uma pedra. Registar de frente,
imperturbavelmente, esperando o inesperado, fazendo jus e estando aberto ao
acaso, mas igualmente ordenando ou orientando um pouco as coisas como na cena
acima citada.
Nestas e em tantas outras obras, géneros e algumas invenções sem género, no fim como no princípio, temos todas as grandes e complexas questões humanas sem a necessidade das formas puramente cinematográficas insuflarem de caução aquilo que os homens, a sua palavra e os espaços nos dizem. Assim, é uma tarefa Quixotesca tentar arranjar uma temática ou um estilo nalguém que também não acredita na mentira do estilo ou na importância temática. Dwan não tem um filme seminal, um magnus opus, pois toda a obra é de uma fidelidade seminal. E como a favor dele mesmo refere Dom Quixote logo na abertura da segunda parte do livro de Cervantes: «Orbaneja, o pintor de Úbeda, ao qual em lhe sendo perguntando o que pintava respondeu: “o que sair”. Certa vez pintava um galo de tal sorte e tão mal parecido, que era mister que com letras góticas escrevesse junto a ele: “Este é um galo”.» Com Dwan, filme a filme, nos melhores e nos falhados, jamais precisaremos desse tipo de legendas ou explicações. Um pioneiro, um primitivo, um clássico, mas igualmente a justificação para a recente afirmação contundente de Tag Gallagher: «a era moderna do cinema começou em 1895».
[Texto publicado no suplemento ípsilon do jornal Público no dia 3 de Dezembro de 2021: https://www.publico.pt/2021/12/02/culturaipsilon/cronica/allan-dwan-mil-aventuras-pioneiro-hollywood-1986812?ref=culturaipsilon&cx=stories_featured_c--517190]
"Sério Fernandes - O Mestre da Escola do Porto" é o título da obra da autoria de Rui Garrido que explora a original e controversa obra do realizador Sério Fernandes. Pretexto para uma conversa com o cineasta José Oliveira. Cinema, puro e duro.
Lembras-te do dia em que conheceste o Sério Fernandes? Quais as impressões iniciais?
Eu ouvi rumores, ideias e opiniões sobre o Sério muito tempo antes de começar a ter aulas com ele e, por isso, eu e muitos da nossa turma já íamos com ideias predefinidas de quem ele era. Pessoalmente, fiquei muito receoso de essas aulas serem uma grande perda de tempo e as primeiras impressões não me tranquilizaram de forma alguma. Eu tinha uma ideia muito fixa do que deveria ser uma aula de realização e o que o Sério queria ensinar não era de todo o que eu estava à espera. Para ter uma ideia de como é uma primeira aula do Sério, partilho um excerto do Programa:
«Aos alunos de Realização da Escola Superior Artística do Porto, é preciso fazer sentir que toda a descida em si mesmos é simultaneamente uma ascensão, uma assumpção, uma visão do verdadeiro exterior. O grande objectivo é pôr o aluno de Realização na posse consciente dos seus poderes mágicos ditos artísticos. «Consequentemente a disciplina de Realização, aqui sinónimo de Criação, é Arte Cinematográfica, a Grande Arte do Silêncio, como o Desenho, a Pintura e a Fotografia.
«Na cultura ocidental, a síntese da Criação Artística remete-nos para a Grécia Clássica, Pré-Socrática, onde o Coro é a essência da Tragédia. Assim na disciplina de Realização o objectivo primordial e artístico é a reconstituição do Coro Trágico do Drama Clássico Grego, que no início era só o Coro e nada mais que o Coro.»
Eu também fui aluno do Sério e, na minha turma, muitos eram fascinados pelas suas ideias e outros o contrário. Como se deu a tua turma?
Aconteceu exactamente o mesmo, mas aconteceu de uma forma tão extrema que acabou por ser um ponto de ruptura para a escola, o Sério e os alunos. Esta grande clivagem é fruto de imensos factores, mas para mim o principal foram as mudanças culturais e sociais que alteraram a forma como as pessoas entendem o que é o cinema, o que é uma faculdade e como é que se ensina cinema. As respostas de muitos alunos a estas perguntas eram extremamente diferentes das do Sério e, por isso, havia uma grande dificuldade em chegar a um compromisso, apesar das várias tentativas do Sério. Estes momentos de choque foram momentos catalisadores para mim. Foi aí que nasceu a necessidade de compreender melhor o Sério e de documentar esse processo.
O que tens a dizer sobre a noção de “Quadro Artístico Cinematográfico” assim como o Sério o entende? Foi útil para ti?
Foi extremamente útil. Gosto muito da ideia de síntese que o Sério tem do Quadro Artístico Cinematográfico, onde tenta colocar tudo que pretende mostrar num único plano de um minuto. Criativamente, é uma ideia desbloqueadora que me permitiu, pessoalmente, começar a executar ideias que ainda não estavam bem formadas, em vez de as planificar até à morte. Aliás, o próprio documentário nasce de uma forma muito espontânea e sem muita planificação. Penso que isso só aconteceu porque tinha acabado de passar por todo o processo de criação de um filme da Escola do Porto.
O Sério aceitou imediatamente a ideia de ser filmado por ti ou foi um processo mais demorado?
Andei durante alguns meses a pensar se deveria ou não avançar com a ideia e decidi avançar depois de uma sessão especial do MIFEC, o festival da escola, onde passaram o filme “Chico Fininho”, do Sério. Foi uma sessão para homenagear o Sério e o seu trabalho, mas o mais impressionante foi o facto de a sala estar completamente cheia de ex-alunos e docentes. Nunca tinha visto uma sessão do MIFEC com tanta gente e isso fez-me ver que, apesar de ser uma figura controversa enquanto professor no meu ano, o Sério tinha uma grande capacidade para mobilizar as pessoas, quem o conhecia verdadeiramente gostava muito dele. Depois dessa sessão perguntei-lhe, num átrio ainda cheio de pessoas, se podia fazer um documentário sobre ele. Ele aceitou imediatamente, sem pensar duas vezes. Acho que na altura ele pensou que só se tratava de uma entrevista e pouco mais. Eu próprio não sabia bem o que é que ia fazer, por isso até o posso ter induzido em erro. Lembro-me perfeitamente, passadas umas semanas, depois de filmar, de ele me perguntar quanto tempo teria o filme. Eu respondi que não sabia, que podiam ser dez minutos, vinte ou mesmo uma hora. Ele respondeu-me, decididamente, que dez minutos era muito pouco e que uma hora seria melhor.
Tiveste um apoio do ICA para a pós-produção, o que permitiu também uma maior circulação do filme, muito por causa da produtora The Stone and The Plot. Terias lutado à mesma para o acabar bem e o mostrares, se não tivesses tido esse apoio?
De uma maneira ou de outra, eu tinha que acabar o filme. Por respeito ao Sério, ao Jorge (que filmou sem pedir nada em troca), a todos os outros que me ajudaram, por todo o trabalho que tivemos e por saber que, se não o fizesse, todos aqueles filmes que o Sério tinha guardado em cassetes e dvds iriam eventualmente desaparecer. Dito isto, se não fosse o Daniel, o futuro do filme seria completamente diferente. Nunca teria tido a possibilidade de digitalizar partes do “Chico Fininho”, nunca teria feito uma pós-produção em condições e, garantidamente, o filme nunca teria tido a distribuição que merecia. Teria, inevitavelmente, o mesmo destino que muitos dos arquivos que documentou, acabando num disco rígido até o tempo o destruir. Felizmente isso não aconteceu e hoje podemos dizer que, graças ao trabalho da The Stone and The Plot e do Daniel, uma parte de Sério Fernandes, das suas obras e das obras dos seus alunos, está devidamente salvaguardada do esquecimento de uma forma muito mais duradoura.
Consideras-te parte daquilo a que o Sério chamava (e chama, espero) a «Escola do Porto»?
Apesar de não aparecerem no filme, cheguei a fazer algumas entrevistas a ex-alunos e amigos do Sério e fiz-lhes várias perguntas sobre a Escola do Porto. O que percebi com estas entrevistas é que a Escola do Porto tem uma definição bastante livre, que é interpretada de diferentes formas pelos diferentes alunos. Para mim, a Escola do Porto é principalmente um espaço seguro de criação artística. Serve para os alunos se libertarem de quaisquer pretensões, anseios ou egos e se entregarem totalmente a alguma forma de criação, seja esta cinema, pintura, escultura, teatro ou fotografia. No cinema, o conceito de quadro serve depois para unir estas artes e artistas, o coro, à volta de uma única obra com autoria partilhada. Para mim, a Escola do Porto é um modelo de criação opositor ao modelo culturalmente estabelecido, onde os artistas de certa forma são obrigados a individualizar-se e a competir entre eles. Eu subscrevo totalmente esta oposição e essa forma de ver o mundo, por isso também me considero parte da Escola do Porto.
Por José Oliveira
Artigo originalmente publicado aqui: https://novo.jornaldofundao.pt/cinema/encontros-cinematograficos-do-fundao-encontro-com-rui-garrido?fbclid=IwAR118OhHzFKTCCTIPkZn3GBv9-Kd1TQ5UABfVSd-V89hmV8i9rM47xgDgaY
O filme "Porto, Porto" de Sério Fernandes estará em destaque na 11ª edição dos Encontros Cinematográficos, oportunidade não perdida para uma longa conversa com José Oliveira, cineasta e ex-aluno do Mestre da "Escola do Porto"
«Hoje, Sério Fernandes caminha, sem a mentira do estilo, sob o grande, alto, forte, duro e claro sol dos Lusíadas. Como Dioniso, corre o risco de ver negada a sua natureza divina.»
Miguel Oliveira
Qual a tua relação com o cinema nos dias de hoje?
A minha relação com o cinema hoje é eminentemente artística. Mas eu digo isto e volto a frisar: eminentemente artística! Eu, devido à minha trajectória, que é vastíssima, quer no cinema comercial, quer na publicidade… fiz muita publicidade, portanto, filmes institucionais. Depois os meus filmes artísticos, depois a escola, que me deu um “click” artístico absoluto. E por uma razão muito simples, pois eu quando fui para a escola em 91, quando fui convidado, uma das decisões que eu tomei – uma delas, e que foi nuclear para a minha vida académica – foi esta: todo o cinema comercial que eu tinha feito, o cinema industrial, [tinha de] ficar à porta da escola. Foi nuclear esta minha opção, não levar o cinema comercial para a escola. Por isso é que tudo aquilo que nasce da escola é, entre aspas, artístico. É fantástico. Portanto, os anos foram-se passando, eu fui filmando também, fazendo os meus filmes, com os meus alunos, como tu, etc. Colaborei imenso com os filmes dos meus ex-alunos, longas-metragens, etc. Fiz dezenas como assistente de realização, também. Como actor, no Nuno Malheiro, etc. E, portanto, há cerca de cinco anos, quando fiz setenta anos – a idade limite para dar aulas, setenta – reformei-me. Fiz setenta e cinco, portanto, estou há cinco anos reformado. A minha relação com o cinema é pois, hoje, colaborar, e vou-te dar já uma ideia, com o cinema artístico. Por exemplo, há cerca de um mês, o Nuno Malheiro, realizador e autor desta tese de doutoramento [“Sério Fernandes, Mestre da Escola do Porto e o Quadro Artístico Cinematográfico”, BeiFilme, Porto, 2019] que te estou a oferecer, e que está um trabalho fantástico, vais ver… O Nuno rodou um filme, com argumento dele, um filme de dança, sobre dança, com uma bailarina polaca. E rodou isso na minha quinta de Miraz. Posso-te dizer que o filme, e eu já vi, com música original dele, está verdadeiramente excepcional. É uma longa-metragem e está verdadeiramente excepcional. Foi rodada há cerca de um mês ou dois. Está pronta e ele já está a tratar da estreia, que será feita de uma maneira não convencional. Portanto, a minha relação com o cinema, hoje, é essa. Colaborar. Ou como assistente, ou como actor, principalmente de filmes dos meus ex-alunos. Como é o caso que te falei agora do filme de dança do Nuno Malheiro.
Separas a arte (e o cinema) da vida?
Eu pintei durante muitos anos. Pintei durante muitos anos. E fiz outras coisas. Portanto, a arte é qualquer coisa de mágica. De mágica, é uma coisa mágica. O que é a arte? Ninguém sabe. O que é? Ninguém sabe. Agora, que nós estamos aqui, aqui vivos para sermos artistas, isso é que eu não tenho a menor dúvida. Claro que vamos fazer outras coisas, eu fiz outras coisas. Eu andei dois anos ou três da minha vida a fazer sete filmes institucionais para a Petrogal. Que na altura era a maior empresa deste país. Muito antes de ir para a escola. Ganhámos um concurso nacional. Aliás, as pessoas diziam que eu era a pessoa que melhor conhecia a Petrogal. Pois conhecia, filmei-a toda de uma ponta à outra. Esta é a diferença. Repara, eu fiz por exemplo o “Porto Porto”, que tu viste. Repara, aquele filme foi rodado num dia, só com os meus ex-alunos, inclusive como actores. Os exteriores de manhã, e os interiores de tarde. Custo do filme, zero. Não gastei um tostão, tirando uma jantarada, ou isso. Eu quando penso nisto, até fico com os cabelos em pé. O meu cinema, o meu verdadeiro cinema, aquilo que eu considero o cinema artístico, começa a nascer quando eu começo a filmar com os meus ex-alunos. E porquê? Porque a filosofia é a mesma, nós estamos dentro da mesma filosofia. E, portanto, as coisas surgem naturalmente. Sem esforço, sem dinheiro, custos mínimos. Mínimos dos mínimos. É um prazer, um prazer muito grande. Mas isto custou-me os olhos da cara, os olhos da cara. Custou-me uma trajectória, que eu depois consegui, por exemplo, no “Chico Fininho”. O “Chico Fininho” é um filme que eu faço para, exactamente, cortar com esse passado comercial. Uma machadada, e foi, só que foi muito forte. Foi fortíssima. Portanto, o cinema deve ser, e pode, pode ser do domínio da arte. Pode e deve ser. Eu li há muito pouco tempo uma entrevista a um escritor americano de cinema, que agora vai fazer um livro sobre o Coppola. Vou exemplificar, a pergunta que lhe fizeram era esta: «mas o Coppola do “Padrinho” e do “Apocalipse Now?”» E ele disse, «Não. Isso não tem nada a ver com o Coppola, esses filmes não são do Coppola. Os filmes do Coppola são os pequenos filmes.» Isto é autêntico, os pequenos filmes dele! Os outros ele foi obrigado a fazê-los, pela máquina. Pela máquina da indústria. O Kubrick, há muitos anos, o Kubrick do “2001”, escreveu um texto. Eu tenho esse texto dele, que é fantástico, está guardado. Em que o Kubrick, o da “Laranja Mecânica”, dizia assim: «o meu sonho era fazer pequenos filmes, pequenos filmes. Sem actores, só com paisagens, pequenos filmes, era o meu sonho e nunca consegui fazer isso.» Dizia o Kubrick, «nunca consegui fazer isso porque estava apanhado pela indústria.» Pela máquina do cinema, que é terrível. Eu estive desse lado. Mesmo no “Chico Fininho”, eu tive camiões de geradores, som directo 1 e 2, câmara 1 e 2. Tinha uma panóplia de técnicos, luz artificial, etc., etc. Gastei uma data de massa nessas coisas todas. Fiz o “Porto Porto” e outros filmes, com os meus ex-alunos. Fantástico, não gastei um tostão. Assim, uma coisa… [Sério faz um gesto largo com as mãos]. Como nas outras áreas, o cinema pode ser feito assim, e ele é feito. E eu conheço-o. Só que, claro, são filmes que ficam aí, guardados, que a gente desconhece, são autênticos tesouros. São autênticos tesouros, assim mesmo, percebes? Este filme que o Nuno Malheiro rodou sobre a dança é uma coisa… pá… [Sério faz um gesto com as mãos ainda mais largo que o anterior e alonga-se nos vocábulos]. Com dois bailarinos, uma bailarina e um bailarino, argumento e música original dele, é um filme que a gente fica de boca aberta, e rodou-o numa tarde! Rodou-o numa tarde! Assim, ele, o próprio realizador, foi o próprio operador de câmara. Foi ele que rodou o filme. É isso que o Kubrick dizia, é isso que esse escritor vai dizer do Coppola. “O Padrinho” é um grande filme, mas é um filme da máquina. Os filmes do Coppola são os pequenos filmes. Portanto, é possível. E se tu me tivesses feito esta entrevista há trinta ou quarenta anos atrás, é obvio que eu não tinha este discurso. Não tinha, não podia ter. Mas fiz a minha trajectória. Hoje sei, sei de facto, por experiência própria, o que é, entre aspas, o cinema artístico. Porque a arte não existe. A arte não existe, o que existe é cultura. Isto é que existe [Sério aponta para a rua], os carros, tudo isto. Isto é cultura. Um filme também é cultura. Arte só existe se existir o artista. Mais nada, é tão simples como isto. Para haver arte, tem o homem que ser artista. Tem que estar imbuído desse acto. É uma coisa cósmica… a cultura é isto que vemos, são os carros, as casas, estas coisas, é a terra. A cultura é a terra, a ceninha aqui. A arte é uma coisa cósmica que tem a ver com estes biliões ou triliões [Sério aponta para o céu], tem a ver com o infinito, percebes? A arte é o infinito. Portanto, não se pode, nem se deve, e aqui é que está, e uma vez fizeram esta pergunta ao Giacometti… não se pode perguntar a um artista «porque é que fez isto?», porque ele não sabe. Se ele soubesse o que estava a fazer já não estava a fazer arte, estava a fazer cultura. Perguntam ao artista, «como é que fez isto?», e ele, «Não sei, olha, não sei». Se ele começa a filosofar muito, «ah, porque fiz isto assim…», assim, e assim, como eles falam sobre os filmes, e mais isto, e mais aquilo… tenham paciência, mas está a falar de outras coisas. Então, só para terminar esta parte, nós estamos vivos, é para sermos artistas. Todo o homem, sem excepção, só pode ser, potencialmente, um artista. Só pode ser! Só que, claro, noventa e nove, vírgula nove, nove, nove, nove, por cento, deixa-se ir pela vidinha, não é? E depois, chegam ao fim da vida, como eu ouvi muitas vezes, muitas vezes, pessoas da minha idade, pessoas idosas, a dizerem: «ah, a vida é uma mentira.» E eu digo, «ai é, mas porquê?» E eles respondem: «se eu tivesse menos vinte anos tinha feito isto, tinha feito aquilo…», e eu volto: «Mas então, porque é que não fez?». E eles: «não fiz porque tinha os meus filhos, tinha não sei o quê, não podia… mas…». Então, as pessoas, no final da vida, têm essa sensação, de que viveram, assim, de uma forma não-substantiva. Que viveram, que trabalharam, etc., e queriam fazer outras coisas… Mas não puderam fazer. Eu paguei um preço muito alto, paguei um preço muito alto, mesmo pessoalmente. Com a família, por exemplo. Eu tinha cozinheira, uma ou duas criadas em casa, estas coisas todas, e de repente fui viver para um quarto. E foi uns anos, ainda. A minha trajectória foi assim, teve de ser. Eu era muito bom a fazer publicidade. Fiz grandes anúncios de televisão, eu ganhava muito dinheiro. Eu era mesmo bom realizador. A minha produtora, os filmes institucionais para as grandes companhias – não é só a Petrogal, é a Efacec, houve um momento em que era a maior do país – os grandes filmes institucionais, da cortiça, do leite, foram todos feitos por mim na BeiFilme como realizador. Este era o meu mundo. Eu vou assim [Sério vai levantando os braços], vou, vou, contra isto. E depois? Tive a sorte de ser convidado para a escola. Podia não ser convidado, mas tive essa sorte. E foi aí que a cena artística no cinema começa a atingir toda a grande expressão. Foi com os meus alunos. Na ESAP. Fizeram-se Quadros Artísticos Cinematográficos, que, posso-te garantir, é arte cinematográfica pura. Pura! [Sério vai falando cada vez mais alto]. Fizeram-se ali coisas que eu ficava de boca aberta.
Continuas a acreditar que a arte não serve para nada?
Não serve! A arte, se servir para alguma coisa, passa a ser cultura. Mais nada, é tão simples como isto. A arte não serve para nada. E é por isso que as coisas fazem-se, passam-se, e muitas vezes só muitos anos depois é que se vai descobrir certas coisas, e fica tudo de boca aberta. Porque para as pessoas, hoje como ontem, isto é terrível, a existência. Para o comum dos mortais, é muito dura a existência. É dura, e não estou a falar da pandemia. Têm que ganhar a vida. A pressão da rua é muito forte. E as pessoas fogem da arte, entre aspas, como o diabo da cruz. Fogem, porque não entendem, não é qualquer coisa de causa e efeito, percebes? Qual é a utilidade? Para que é que isto serve? «Não sei», «Ah, pois…». É tão simples como isto! Mas por isso é que é, entre aspas, arte. Isto é feito pelo homem, pelo artista. O homem tem que estar em estado de arte. Ele tem que estar em estado de arte, para fazer, entre aspas, arte. Faça o que ele fizer. Portanto, sinónimos para arte? É tudo! Arte é verdade, arte é uma cena cósmica, é tudo isso. O que a arte não é, é uma ceninha assim [Sério faz um gesto pequenino com as mãos]. Uma ceninha de lana-caprina, uma coisinha… Arte não tem a ver com essas cenas, por muito jeito que isso nos dê. Os artistas, alguns deles até têm carro. E eu tenho carro. Eu vou agora buscar o carro e vou para Francelos. Mas aí é que está. Para mim, a cultura existe, mas é um meio. Não é um fim. É um meio! [Sério levanta novamente a voz]. Eu vou dar-te um exemplo: aqui há uns anos atrás, para um cineclube lá de baixo, do Algarve, passou um filme meu, e o responsável disse-me, «ah, mande-me um cartaz, por não sei quê». [Averiguando posteriormente, trata-se sem dúvida do wetransfer ou plataforma análoga]. Eu disse logo, «ah, não tenho, vai por correio». «Ah, isso demora…», e mais não sei o quê, disse ele. Não tenho, continuei a dizer. E diz-me ele assim para mim: «o senhor não tem, e então como é que o senhor anda? Como é que o senhor se mexe se não tem essas coisas?» Perguntou-me assim, como é que eu me desloco. E eu digo-lhe: «a pé». E ele diz-me: «ai… a pé…». Ficou muito admirado por eu lhe dizer que se não tivesse carro, se não tivesse essas coisas todas, não ficava aí sentado numa cadeira. Ia a pé, como antigamente. Portanto, a cultura é importante, sempre, como meio. Porque tu repara, a escola é eminentemente cultural. Tem edifício, tem professores, tem aquelas coisas todas… tem funcionários… Mas, para mim, a escola foi um meio para eu trabalhar artisticamente. É assim que temos de ver a cultura. Quer sejam os carros, um filme, quer seja tudo o que for. Sempre como um meio, e não como um fim. Infelizmente, a maioria das pessoas, hoje tem cinco, amanhã quer ter dez, depois quer ter vinte. Se tem um carro X quer ter um XPTO. Não sei se estás a perceber, mas a cultura é isso mesmo. E é perigosíssima. Um dos meus melhores alunos, lá para trás, mas um grande aluno, um dia disse-me assim: «ó professor, eu vou-lhe contar uma coisa que o professor nem vai acreditar.» «O que é que foi?», disse eu. «Perdi o meu telemóvel, e sabe o que é que aconteceu? Não conseguia sair de casa…», disse o aluno. «Como?», pergunto eu estupefacto, «Não conseguia sair de casa sem o meu telemóvel… foi a minha mãe que me emprestou o dela para eu poder sair de casa…». E eu digo «Por amor de Deus… então é assim?», e ele: «Era como se eu estivesse nu, sem o telemóvel.» E posso-te garantir que é um grande ex-aluno meu. Portanto, a cultura é uma coisa muito forte pela dependência que cria nas pessoas. Pela dependência! Depende-se da electricidade, depende-se disto, depende-se daquilo, dos carros, mais isto, mais aquilo. Isto é um autêntico colete de forças! E é muito difícil de cortar. Portanto, os artistas coitados… Para fazerem, entre aspas, arte, eu volto a dizer, entre aspas, porque a arte não existe, têm que cortar com tudo isso. Não podem, porque se a arte é uma coisa pura, puríssima, assim [Sério faz um gesto alquímico, finíssimo, com o polegar e o indicador], ela, é obvio, que não vai beber a estas coisas…vive no homem, no seu sangue. Já reparaste numa coisa, nós estamos os dois aqui a falar, estamos vivos, mas nós neste momento somos o repositório de todas as gerações lá para trás, de tudo, de milhões e milhões e milhões de anos. Nós os dois. Nós temos esta responsabilidade. O teu sangue, o meu sangue, percebes? Se a gente conseguir deixar assim uma ceninha, assim [Sério faz novamente um gesto pequeníssimo com o polegar e o indicador], fixe. É muito bom. Portanto, hoje o meu trabalho é este: estou a empacotar tudo, as minhas cenas todas, estou a rever coisas, coisas lá para trás. E tive sorte. Embora, volto a repetir, custou-me os olhos da cara, a minha trajectória. Em todos os aspectos, até financeiramente.
Como vês o teu legado nos teus ex-alunos? Valeu a pena?
Não tenho palavras, até estou a tremer. Palavra de honra, que nem tenho palavras. Para os meus alunos, não tenho palavras. Foram anos e anos e anos, ó meu Deus. Extraordinários, fantásticos. De uma criatividade total e absoluta. [A emoção em Sério é visível e acontece uma pequena pausa]. Eu vou só contar um episódio, pois aqui atrasado fui ao Brasil dar uma conferência, e contei isto. Este aluno era brasileiro, o Francis. Fizemos uma tragédia grega no Douro, “Agamémnon”. Lá em cima, acima do Tua, um sítio fantástico. E o Agamémnon também era o João, um aluno, que era o actor. E o quadro do Francisco, fantástico. Ele estava em cima dum penedo, no meio do rio, um cenário fantástico, tinha um barrete, estava nu. E o Francisco tira-lhe a máscara da cara, ele tinha uma máscara dourada, e põe-lhe a máscara nos pés. E filma o actor dos joelhos para baixo. Faz um quadro em que tu vês o rio, o Douro, as montanhas, ao nascer do sol. Um cenário artístico, naturalmente. E tens um actor nu, mas só vês o actor do joelho para baixo, com a máscara ao pé. Não é preciso mais nada. Não é preciso mais nada, está lá tudo! [Sério vai subindo progressivamente o tom de voz, emocionado]. Não é preciso mostrar a cara do actor, não é preciso, não é preciso… não é necessário… Já está os pés dele e a máscara nos pés. Ele tira-lhe a máscara da cara e põe-lhe a máscara nos pés. Um quadro perfeito. Alguns quadros que foram feitos na escola, eu tenho-os todos presentes, tenho-os assim [Sério leva ao de leve as mãos próximas da cabeça, envolvendo-a]. Relembro-os. As coisas aconteciam, porque tinham mesmo que acontecer. Porque toda a envolvência era artística. Ali não entrava cinema comercial, etc. Todas as pessoas, porque são artistas, sem excepção, naturalmente começam a criar. Começam a criar naturalmente! Qualquer pessoa que lhe seja subtraída a cultura, por qualquer razão, ela naturalmente começa a recriar-se. Naturalmente… porque o ADN está cá [Sério bate no peito]. O ADN artístico está cá. E, portanto, a escola, aqueles vinte e tal anos que eu estive na escola, foi uma dádiva dos deuses. Uma dádiva dos deuses e uma dádiva também dos meus alunos. Tenho-lhes um respeito e um apreço total. Não tenho palavras para aqueles vinte e tal anos de escola. O Nuno Malheiro, nessa tese da Universidade de Coimbra, tece tudo o que importa. E se calhar vai sair agora outro livro, sobre outra realizadora da Escola do Porto, acho que ele está a trabalhar sobre isso, o Nuno tem uma obra fantástica.
Queres falar mais um pouco do filme que escolheste, com o Rui Garrido, para projectar nestes Encontros Cinematográficos, o “Porto Porto”?
O “Porto Porto” é um filme sobre o Porto. E eu sou natural do Porto, nasci aqui, vivi aqui, os meus pais viviam ali à beira da Avenida dos Aliados. Ali no centro da cidade. Os meus escritórios são aqui, embora eu viva há muitos anos em Francelos. Mas é aqui, todos os dias estou aqui. Isto é interessante pelo seguinte: eu vou para a escola em 91. Começo a filmar com os meus alunos. E eu, os meus filmes, pararam. E só mais de dez anos depois, portanto em 2003, é que eu faço o “Porto Porto”. Só dez anos depois de eu ir para a escola, é que eu faço a minha primeira longa-metragem, e faço-a com os meus ex-alunos. Todos os filmes que eu faço a seguir ao “Porto Porto”, sem excepção, são todos feitos com os meus ex-alunos. Como actores e como músicos, como fotógrafos, etc. E repara, o filme, o “Porto Porto”, tecnicamente, é um filme perfeito. Com uma fotografia perfeita, feita por um ex-aluno meu. Com um som perfeito. Com uma banda-sonora feita de propósito pelos Aneurisma, que é uma banda de dois meus ex-alunos. Um deles, coitado, já morreu, suicidou-se. O Tiago Rodrigues, coitado, o grande Tiago. Mas o Zé Pedro está aí. O grande Zé Pedro está aí. Os Aneurisma fizeram-me uma banda-sonora de propósito para o “Porto Porto”! E eu rodo o filme, e a Mariana é a actriz, a Mariana Figueroa, formada em fotografia e teatro na ESAP, uma grande fotógrafa. Como já disse, rodo de manhã os exteriores, começamos às sete da manhã, e de tarde os interiores. Está feito. Longa-metragem. Eu digo-te uma coisa, toda esta trajectória que eu faço depois da escola, se ela tivesse sido feita trinta anos antes, qual “Chico Fininho”, qual carapuça… não havia nada disso. Não havia! [Sério começa de novo a subir o tom de voz]. A cena da cultura ainda tem muito peso, mesmo no “Chico Fininho”. Ainda tem muito peso, há muito excesso de cultura. O quão prejudicava, é evidente, ter muita gente… porque é aquilo que o tal escritor dizia do Coppola: para nada! É só ruído, só ruído. Só dinheiro. Faço o “Porto Porto”, que é um filme extraordinário, eu adoro esse filme, com os meus ex-alunos e não gasto um tostão. Uma rodagem limpinha. Assim, de manhã exteriores, de tarde interiores, o filme está feito. Banda-sonora, tudo original. Argumento original. Tudo original. E pronto. Foi estreado num dia muito triste. Vou falar disso só para terminar. Houve uma antestreia na Casa das Artes. Tudo cheio. Estávamos lá com os alunos que estavam na escola, tudo. E o grande Vasquinho, o Vasco Castro, um dos meus grandes alunos, o meu grande companheiro. Chegava à minha casa, tocava à campainha, eu perguntava, «quem é?», «é o Vasco!, ó Sério» [Sério imita o Vasco], assim com uma voz de trovão, «É o Vasco!». Grande Vasco, não apareceu na antestreia. À noite, e a antestreia foi ao fim da tarde, seis horas, o pai da Mariana Figueroa, o doutor Carlos Figueroa, que morreu no ano passado, no final do filme veio ter comigo, deu-me um abraço, um abraço que me ficou até hoje [Sério faz o gesto de um abraço largo e comovente]. E o Vasco sem aparecer. À noite fizemos outra cena, o Ricardo Leite fez outra versão do “Porto Porto” em 8mm, uma coisa com dez minutos, paralelamente. Em super-8. À noite, em Massarelos, numa associação, apresentamos o filme de super-8, foi o Cristiano que organizou. E o Vasco não apareceu. Era uma meia-noite e soubemos que ele tinha tido um desastre. Ele vinha de Viseu para o Porto. Ficou em coma, ainda ficou uns vinte dias ligado às máquinas. Nós íamos lá todos os dias, vê-lo. E morreu, desligaram as máquinas. O grande Vasquinho, uma morte, assim uma coisa… A seguir ao “Porto Porto”, eu faço uma série de longas-metragens, eu tenho mais de dez longas-metragens. Mais de dez! Eu depois faço, em média, uma por ano. É fácil de fazer as contas. Essa foi em 2003… Sempre com os meus ex-alunos! Até hoje, até hoje… eu já não realizo há uns tempos, mas tenho sido actor, como disse… mesmo nesse filme, o Lusitânia que está nesse livro, do Nuno Malheiro… que está a fazer uma obra – tem uns seis filmes todos excepcionais – que quando esta gente, que está imbuída culturalmente, lhe descobrir aquelas pérolas, vão ficar assim [Sério faz um gesto de cabeça embriagado]. E rematou agora com esse último filme que não me canso de falar. Uma bailarina polaca verdadeiramente excepcional… Não há palavras, um filmão do caralho. Portanto, tenho colaborado com os meus ex-alunos, fazemos umas jantaradas lá na quinta de vez em quando, e tenho estado por aqui. Agora estou a juntar fotografias, a rever fotografias antigas. A empacotar. E pronto, eu tenho consciência perfeita de que estou a chegar ao fim. É evidente, estou a chegar ao fim. Fiz setenta e cinco anos, era uma meta. Não tenho meta nenhuma de chegar aos oitenta. Nenhuma. Não tenho. Não tenho vontade nenhuma. Agora, em casa ainda tenho muitos gatos, em Francelos. Tinha aqui o meu gatinho que morreu, o meu pretinho. Aqui, coitadinho, tinha aqui um gatinho que morreu… Mas em Francelos ainda tenho muitos gatos. Tinha lá muitos cães, mas agora só tenho um cão… Para onde eu vou agora. Vou agora para casa, tratar deles. E, portanto, a minha vida agora é feita assim. Colaborar. E ajudar naquilo que for possível.
Por José Oliveira
Artigo originalmente publicado aqui: https://novo.jornaldofundao.pt/cinema/encontros-cinematograficos-do-fundao-encontro-com-serio-fernandes?fbclid=IwAR136VtNyosdsHB8OftKWhwORpTWLcBYeuUvySyHsZTPw06Ljsxerlq1JLQ
Poderiam dizer que Paz é um filme sobre escombros feito de escombros. Escombros que resultaram de uma guerra desastrosa e silenciada, a Guerra Colonial Portuguesa. E escombros enquanto material fílmico reutilizado proveniente dos arquivos da mídia portuguesa desta guerra e das filmagens das obras anteriores dos diretores José Oliveira e Marta Ramos — Guerra (2020) especialmente. Entretanto, em seus 25 minutos Paz revela-se como totalmente novo, como as flores que brotam das ruínas e devolvem-nas à vida, transformadas.
Em Guerra — exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo do ano passado —, Oliveira e Ramos desafiaram o tabu português que relegou ao silêncio a Guerra Colonial Portuguesa e seus veteranos — na sua maioria, homens simples do interior do país convocados pelo regime ditatorial do Estado Novo em suas últimas tentativas de manutenção de força e poder político no país e no continente africano. O filme acompanhava Manuel, um veterano da guerra, em uma Lisboa dos tempos atuais. Sem encontrar um lugar para si e tomado por um passado cujos fantasmas esbarrava em cada passeio, ele buscava a paz e a encontrava apenas com seu descanso final. Manuel foi vivido por José Lopes, em uma performance de entrega absoluta e em uma parceria estreita com os realizadores — foi de Zé Lopes a iniciativa e o desejo de fazer o filme, que não viu estrear, devido ao seu falecimento no final de 2019.
Guerra não era apenas extraordinário por conta de sua coragem com os temas abordados, mas também pelas suas escolhas formais enquanto misturava passado e presente, monólogos e diálogos partidos, sem nunca abdicar da emoção — palavra tão evitada no cinema atual.
Enquanto o filme anterior era centrado na figura de Zé Lopes e na Via Crúcis de Manuel, Paz consegue revisitar e dar novo sentido às inquietações da dupla de realizadores: trata-se de um filme em que cada pessoa que surge na tela é também protagonista. Revemos os veteranos da guerra do filme anterior (todos não-atores e veteranos de fato), com mais tempo para passarmos em sua companhia — e é isto o que interessa a Oliveira e Ramos, que possamos ver e ouvir estas pessoas. E lá estão eles, para dar seu testemunho da abertura de trilhas (o motivo de as “picadas” terem esse nome), do que carregavam nos bolsos consigo, das discussões com os superiores, da leitura de cartas destinadas a seus familiares, das canções que gostavam. Nenhum momento é banal: em todos, tomamos contato com seus rostos, sotaques, histórias. Contra o esquecimento, o apagamento, a morte.
Que Oliveira e Ramos não tenham se contentado com o filme anterior e tenham decidido dedicar um novo trabalho a estas pessoas é mais uma prova de seu compromisso com elas. O cinema pode vencer a morte, de certa forma. Alguns dos homens que vemos ali já nos deixaram: além de Zé Lopes, Nelson Gonçalves (que canta as duas canções ao final do filme e a quem o trabalho é dedicado). Quantos mais ainda podemos ouvir? Paz é também um convite, para não desperdiçarmos mais nenhum instante.
“Ouçam o que tem para dizer o homem que está em silêncio” diz a abertura do filme, pouco antes de sermos tomados por imagens de arquivo da guerra e da imagem de um túmulo e uma sombra. Paz faz o processo de dar voz a estas sombras — inclusive ao material de arquivo, tomado por um novo processo de som pelo filme, agora repovoado por máquinas, choros, chamas e sinos, em um esforço estupendo e minucioso — para que elas possam caminhar conosco. A coletividade está no centro deste novo filme: é trazer estas pessoas e suas histórias para perto e também de reinserir a Guerra Colonial Portuguesa na História, inclusive com os créditos finais, que mostram os mísseis cortando os céus da Palestina. A guerra continua entre nós presente — mas também a paz pode estar.
Marta Ramos certa vez disse que cinema é amor e pudor, destacando o último. Ambos funcionam como vetores intimamente ligados que moldam seus filmes todos: há sempre um enorme respeito pela integridade das pessoas que filmam — todos não-atores, seus amigos. É um cinema realizado com poucos recursos e enorme garra e inventividade, fruto da união destas pessoas e de grande resistência.
A carta lida em voz alta em Guerra retorna aqui, ainda mais forte: “procura a felicidade que ela deve existir”. A nós, cabe procurar sem cessar. Ela está entre nós e floresce no cinema de Oliveira e Ramos, entre os escombros.
Artigo originalmente publicado aqui: https://estadodaarte.estadao.com.br/paz-ruinas-oliveira-ramos-comodo/?fbclid=IwAR15CdXPX2dYSE9xe9s51w2o-MFXZGhbt0Yw-PhPmdo-3OTZCzr6cBjThTc
O SENTIDO
DA AMIZADE
Paz, como seu antecessor, Guerra, e como o antecessor deste, Longe, é um filme simples, cujo título
nos aponta o caminho, isto quer dizer o sentido que o filme adquire assim que
tudo se fez e se foi.
O que se fez: por
onde se andou, por onde se parou; o quanto se continuou, o quanto se renunciou
para se continuar. Quando Paz começa,
temos a sensação de que as personagens – José Lopes e Rui Carvalho – já andaram
muito, já estiveram em muitos lugares, mas ainda não pertencem ao presente do filme, à trama de imagens e
sons que o filme de fato nos apresentará.
Na fronteira da alvorada a sombra de um homem se projeta sobre uma lapide; em
seguida dois homens brindam e bebem sozinhos, num espaço que parece ocupar o
limiar entre o nosso mundo e o seu além.
O que se foi: as
lembranças, os lugares, as viagens; o que se compartilhou, o que nos aproximou,
o que nos separou; os caminhos deixados para trás, os caminhos que foram feitos
até o fim, os descaminhos. Uma tarde na esplanada dos Amigos do Minho, as mesas
e as cadeiras já postas, as garrafas de vinho abertas, um amigo arranhando as
cordas do violão e os outros o acompanhando com as canções – essas coisas de
que não se fala, essas coisas as quais apenas se vive e às quais nos apegamos, e
que talvez mais tarde nos lembramos com a vontade de revivê-las ou a certeza de
que foram bem vividas.
É curioso: a atmosfera dessas cenas, a circulação das falas, das
canções, a sombra convidativa das videiras e o sol que resplandece na esplanada
dos Amigos do Minho, a camaradagem, os sentimentos, o tempo que leva para todas
essas coisas se consolidarem e se propagarem como o próprio ar que circula ali
no alto da Freguesia de Anjos, a presença real
disso tudo encarna a proposta do filme e nos faz esquecer (em outras palavras,
nos faz aceitar) que a paz, como a guerra, é aquilo que se estabelece quando se
sabe que o que está longe assim permanecerá e o que está próximo se avizinha
cada vez mais.
O que se
avizinha, o que permanece próximo, o que se carrega no peito: a amizade, à qual
os antigos combatentes, novamente reunidos, dedicam algumas loas. A amizade
que, diferente do afeto, se consubstancia quanto mais o laço que une uma pessoa
à outra é recrudescido, justamente, pela passagem do tempo. Uma coisa que
sobrevive aos homens que tiveram a fortuna de experimentá-la e aos tempos, isto
quer dizer todos os tempos, os de guerra e os de paz, os que se avizinham e os
que se apagam. Uma coisa que retorna e que pode ser retomada a qualquer
momento, em qualquer lugar, sob qualquer disposição (penso na segunda parte do
filme, quando Zé Lopes “regressa” aos Amigos do Minho), e que na sua plenitude
assume a forma não de um “eterno retorno”, mas de um retorno eterno aos lugares
e sítios em que a vida se irradiou no seu grau máximo de brutalidade, ou de
serenidade.
Paz, epílogo de uma
trilogia constituída em torno de uma personagem e um ator sublime, é o fruto da
obstinada paciência de dois realizadores, José Oliveira e Marta Ramos. Suas
lentes capturam os instantes despretensiosos da vida como grandes luxos
coletivos, e é dessa forma que seus filmes reencontram o Homem, através da
saudosa figura de José Lopes, na sua eterna busca por repouso e acolhimento.
Nada mais coerente, portanto, que o capítulo final dessa jornada seja uma
compilação minuciosa de todos os sentidos anexos da palavra “paz”: refletindo sobre
o significado e a importância existencial do armistício, ou mais simplesmente
do espairecimento daqueles que tiveram que lutar
pelas próprias vidas em algum ponto de
suas existências, o filme se torna a narrativa de uma existência que se volta,
nos seus últimos instantes, à harmonia, à união, e conseqüentemente ao sentido
mais profundo do contato com o outro, que nada mais é que o sentido mais
verdadeiro da amizade.
Bruno Andrade
A partir de hoje (02/09), por meio das plataformas NOW, VIVO, LOOKE, GOOGLE PLAY ITUNES e MICROSOFT, o público brasileiro pode, enfim, assistir a um dos melhores filmes do ano retrasado: Os Conselhos da Noite (2019), do cineasta português José Oliveira.
Estrelado por Tiago Aldeia, Adolfo Luxúria Canibal, Marta Carvalho e José Lopes, o longa-metragem segue Roberto (Aldeia), jornalista desiludido que retorna a Braga, sua cidade natal, a fim de revisitar o próprio passado. No entanto, entre reencontros e descobertas, um novo capítulo se abre em sua vida.
A ligação de José Oliveira com o Brasil não é nova. O seu curta Longe, de 2016, foi exibido na mostra Perspectivas do Cinema Português, a qual passou por São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Curitiba e Florianópolis. E o seu mais recente longa, codirigido por Marta Ramos e intitulado Guerra, fez parte da programação da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 2020. Além disso, José escreve para a brasileira FOCO — Revista de Cinema.
Meses atrás, o Estado da Arte entrevistou José Oliveira acerca de Os Conselhos da Noite (a entrevista pode ser lida aqui). Hoje, temos o privilégio de publicar, com exclusividade e por ocasião da estreia do filme no Brasil, um texto de sua autoria.
Eu e o João Palhares começamos a pensar fazer um filme sobre a nossa cidade, Braga, no norte de Portugal, distrito do Minho, nos começos de 2014. Um frio gélido, um ar rarefeito, cinzento, leve e denso ao mesmo tempo, e uma certa revolta em nós. Uma revolta que hoje não me é fácil de definir nos seus exatos contornos, mas que tinha a ver com os encontros inesperados que muitas vezes se davam nos lugares menos propícios a isso, e a imagem que o exterior, não só o resto do país, mas as localidades próximas, continuavam a ter em relação a esse universo. Revolta conosco por estarmos defronte a algo que não estávamos a reconhecer e logo a não querer aceitar de mãos vazias. Encontros com personagens que pareciam saídas de outras décadas e eras, por exemplo dos anos oitenta e da música punk dos Mão Morta (Adolfo Luxúria Canibal, o líder do grupo, representa simbolicamente a personagem de Vicente no filme) ou do romantismo de Sebastião Alba, mas também encontros com dançarinos bizarros a bailar em frente a lugares sagrados, sonoridades eletrónicas indefiníveis, noites de poesia e de profanidades, um santuário dedicado a Zeca Afonso, esse poeta e andarilho da nossa revolução de abril etc.
Lembro-me bem que nem tudo era genial e descabelado como o dançarino que vemos no filme, e que é ele mesmo a viver e não a representar, pois havia, como em todo o lado, poesia péssima ou mentalidades da idade da pedra, mas esses encontros, embates e diálogos entre várias coisas que se rasgavam e amplificavam umas às outras eram muito surpreendentes para mim e acho que também para o João Palhares. No meu caso tinha vivido largas temporadas fora de Braga e ia ficando estupefacto a cada regresso.
E, como continuávamos “presos” no cinema e a ver muito cinema, sentíamos pena que quase todo o cinema em Portugal, pelo menos o que se fala na imprensa e é por isso amplamente mostrado, claro, continuasse perpetuamente por Lisboa. E queríamos, num frio infernal, tentar possibilidades. Possibilidades para esses personagens para nós tocantes, para essas situações, a arte visceral e a não tão significativa, a mudança de paradigma e de visão do mundo, a reviravolta política e aquela que só aparentemente se modificou. Possibilidades ainda para deixar impresso o que não gostávamos e o que achávamos que não estava nem nunca vai estar bem.
Uma espécie de utopia que tinha de ser abundante — meter o máximo que conseguíssemos, de personagens a diálogos, dos espaços marcantes à ação — e contundente, ou seja, tínhamos mesmo que levar a empreitada para a frente e não desistir nas dificuldades, pois senão seríamos uns fala baratos e continuaria a não existir a possibilidade de cinema em lugares como Braga. E isto nada tinha a ver com regionalismos, pois a nossa inspiração continuava a ser o cinema americano clássico ou mesmo o “lisboeta” Manuel Mozos, por causa do humanismo, da profundidade dos seres, do ritmo marcado, da respiração fílmica mais ligada ao pulsar da vida do que à contemplação vácua. Entre Janeiro e Fevereiro desse ano vi mais de trinta vezes o “Some Came Running” (“Deus Sabe Quanto Amei) de Vincente Minnelli, inteiro ou em partes, pois a história a contar era a mesma, o clima igualmente, alguém que regressa a casa e fica furioso em primeira instância, mas depois…
Mas depois lá conseguimos escrever, ou quase sempre transcrever, pois verdade seja dita o trabalho teve mais a ver com organização. Quando virem o filme, encontrarão uma roulotte noturna e alguns clientes habituais desses espaços, e garanto-vos que tudo o que sai da boca deles saiu primeiramente da boca de gente real que ali esteve, nesse mesmo local, perdidos nos ermos e nas solidões das altas horas, circundados por betão, aridez, costumes bons ou maus e possibilidades infinitas. A caminhada que o personagem principal, Roberto, concretiza até ao Mosteiro de Tibães, e que muitos ao verem o filme disseram forçada por causa de míseros 10 km ou nem isso, foi feita pelo João Palhares e escrita a seguir, com as elipses e as sínteses do cinema a entrarem em campo. Enfim, da segunda vez que Roberto se dirige ao pavilhão desportivo da sua infância e fala com umas senhoras e depois com o treinador, essas senhoras costumam estar mesmo lá e falar com esses modos e sorrisos e sotaques e esse treinador é mesmo uma lenda do desporto e não um ator a fingir de lenda. Claro que não conto isto para convencer os potenciais espetadores de que o filme é bom ou é diferente dos outros, tendo nós descoberto pólvoras que gente como Roberto Rossellini ou João César Monteiro (um tremendo realista) já há muito tinham experimentado e levado à incandescência, mas antes para tentar desfazer algumas ideias feitas que a academia cega, a cinefilia cega ou as ideias e chavões cegos teimas em perpetuar.
Resumindo, “Os Conselhos da Noite” é também um documentário assente em bases de pesquisa etnográficas e antropológicas tão sérias como as usadas nos documentários que normalmente são aceites como tal pelo aspeto cristalizado, pelo rótulo documental e pelos discursos canónicos. Pedro Costa disse recentemente que Yasujiro Ozu é um dos grandes documentaristas da história do cinema pois quando Costa deslocou pela primeira vez ao Japão já conhecia todos os usos, costumes, História, acontecimentos presentes marcantes e homens e mulheres desse país longínquo, isto por causa dos filmes do grande mestre. Eu e o João passámos muito tempo a observar pessoas, rotinas, sotaques fiéis e miscelâneas, viagens ao passado e o que será o presente puro, a arquitetura romana e sueva a conviver com os envidraçados e o império do aço. Sem juízos de valores para o nosso lado, aprendemos esta seriedade na pesquisa, na recolha e transposição com nomes como José Lopes — que antes da vida de ator percorreu todo o país nas suas recolhas etnográficas coordenadas pelo seu mentor Eduíno Borges Garcia (que se tornou indiretamente nosso mentor) — ou John Ford, ou Howard Hawks, outros grandes realistas e documentaristas que só não o são considerados assim pois os académicos cegos (não falo dos sérios) só associam esse tipo de cinema e de visão do mundo particular e fundamental a nomes como Vittorio de Seta ou Frederick Wiseman.
John Ford, pois claro. Foi ele a fonte capital dessa abundância e desse convívio de opostos pretendidos. Nos seus filmes convivem todos os tipos de registros de atores e não-atores, de respirações fílmicas — tanto é um poeta da contemplação como o mestre da narrativa e da “ação à americana” — estratos sociais díspares, o velho e o novo, tradição e coragem. Tanto uma mãe gigantesca diz ao filho que lute pelos sonhos (mesmo chorando) como a esposa aceita a sede do marido pela guerra e pela justiça e fica ela a travar outra guerra e outra justiça ainda mais violentas. Nos filmes de Ford cita-se Shakespeare no cabo do mundo e um bêbado é a testemunha mais séria num tribunal de eruditos. Aprendemos, ou tentamos aprender, tudo de cinema com Ford e, no sentido referido, aprendemos que um filme pode ter todos os registos e aparentes contradições, pois filmando com a distância e fidelidade justas todas essas contradições são justamente o carácter flutuante e complexo da vida. Claro que Roberto não é John Wayne, nem sequer um cowboy moderno, nem na realização ambicionamos os seus famosos planos contrapicados que agigantavam os personagens heroicamente. Não procuramos sucedâneos do Monument Valley ou hinos a evocar o nascimento de uma nação. Claro que as pessoas que Roberto não gosta, ou pretende não gostar para não se magoar, não são evocações de índios nem soldados rivais. Mas o que Ford nos ensinou a todos é que as regras do cinema, as convenções, as modas, as armadilhas dos argumentos e da montagem, jamais devem delimitar o puro humanismo, as diferenças de cada ser, de cada situação, de cada festa ou funeral. Pode-se meter todo um mundo díspar no papel e depois filmá-lo e montá-lo frontalmente e com toda a sensibilidade, sem receios de não parecer bem segundo os cânones do bom gosto; deixar transbordar as bordas, o excesso, o excesso de diferença, de alteridade, de humanismo, pode ser o correto.
Eu sei que em Lisboa (por exemplo, pois assisti a algumas sessões lá) algumas pessoas se riram dos sotaques excêntricos, das grosserias das falas, daquilo a que no mundo dito civilizado e progressista se chama de “parolismo”, e isso definiu o filme como retrógrado ou parado no tempo ou simplesmente “inaceitável” num cinema e numa sociedade que se querem normalizadas e apelativas. Vi que muitos críticos disseram que no filme nada se passa e o argumento não tem interesse, não tem plots bem construídos, nem sequer um fio narrativo com princípio, meio e fim. Disseram ainda que os personagens são caricaturas e não existem na vida chamada “real”. Uma espetadora disse-me numa conversa na porta da sala que tinha gostado mas que tinha dúvidas que o filme fosse relevante para o país por se passar numa cidade não muito conhecida nem central. E são estas coisas que se devem combater, estes comentários perigosos porque redutores e intolerantes. Não se trata de gostar ou não do filme, nem dos personagens, ou situações. O que se passa é que vezes demais se julgam os filmes, como se julgam as pessoas e certas nações, pelas diferenças em relação ao nosso contentamento e comodidade, conforto, gosto. «Não tens o direito de te desinteressares» diz um Deuteronômio bíblico.
Portanto, saio em defesa de todos os filmes, livros, pinturas, poesia, pessoas, que saiam dos grandes meios, metrópoles, zonas de bem-estar, aburguesamento, para procurarem aquilo a que João Bénard da Costa chamou de irracionalidade do amor, a propósito de Minnelli: «Há cineastas, como há pessoas, que procedem por silogismos e assim destroem tudo e se destroem a si próprias. Há cineastas, como há pessoas, que estão para além de qualquer lógica e transfiguram tudo o que tocam em oração e oblação. Nessa delirante irracionalidade do amor, apanágio de tão raros.» Voltando a John Ford, obrigado a ele por durante a feitura dos seus filmes ter rasgado páginas aleatoriamente ao seu guião perfeito que segundo os especialistas fariam o filme excelente e equilibradíssimo, ter convocado familiares e bêbados para cenas tão importantes como o desfecho, por ter filmado um plano fixo de diálogo entre duas personagens demorando vários minutos muito antes do chamado cinema moderno destruir regras, enfim, por nos ter ajudado a compreender os Estados Unidos da América de maneira tão simples e significativa como nenhum documentário ou livro de história o conseguiu melhor.
Fico muito feliz que “Os Conselhos da Noite” possa ser visto no Brasil pois algum do cinema mais selvagem e primitivo que alguma vez me entrou pelos olhos adentro veio dessa nação ainda com tudo para nos dar. Glauber Rocha, Rogério Sganzerla, Mário Peixoto, José Mojica Marins, ou esse inexcedível humanista que foi Andrea Tonacci — que um dia me disse para perder todos os medos e ser irresponsável — foram o Brasil dos Príncipes e da abundância. Bem-haja a todos vocês!
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Agosto de 2021
*”Os Conselhos da Noite” também está disponível para o restante da América Latina, nas plataformas KLIC, TOTAL PLAY, GOOGLE PLAY ITUNES e MICROSOFT
Artigo originalmente publicado aqui: https://estadodaarte.estadao.com.br/jose-oliveira-conselhos-noite/?fbclid=IwAR2eeNif5eyJ69p3bvoOS9jqMMOZRGkb_94AWQ6YASS8QjocyzyouMkzDWs