Hollywood,
2019.
O que importa da reconstituição de Quentin Tarantino em Once
Upon a Time... in Hollywood acontece
no rolar langoroso e irresistível do caddy
de Brad Pitt pelas vias-rápidas ensolaradas de Los Angeles, nos
seus
bairros esconsos e achatados e em
anacrónicos ranchos magicamente concessionados. Como se os espectros
e os assombramentos de idades antigas de uma Mulholland Drive
descessem à urbe maquinada e pairassem no betão e nas maquetas
desmultiplicadas da meca do cinema. Um sentimento extasiante de
ameaça e de pulsões vitais onde o cineasta plana e gere a seu bel
prazer, e junto a isso os actores à beira do falhanço, os duplos,
as
estrelas caducadas e esquecidas, as inclassificáveis novas raças,
enfim, aquilo para que nasceu, que tem que ver com os resquícios, a
excepção e os detritos e não os grandes temas que tocou nos últimos
filmes. A melhor definição do filme de QT lia-a de alguém a
afirmar que parece um filme de Andy Wharol, e
é perfeita pois nesses momentos onde nada se parece passar perpassa
toda uma época, dos néons ao sexo. Se esse rolar e desenrolar perto
do crepúsculo durasse para sempre, elidindo desse modo a catástrofe,
isso sim era a maravilha última.
Hollywood,
1969. Joan Didion. Frank Perry. Anthony Perkins. E sobretudo,
sobretudo, Tuesday Weld. O tempo deferido de Tarantino liberta uma
nostalgia que tudo cobre e possivelmente amansa, e que está
completamente ausente do tempo bruto e presente de Play
It As It Lays.
Desde Jackie
Brown que
não tínhamos no seu planeta
personagens tão humanas e complexas, mas é impossível a Leonardo
DiCaprio e ao seu anjo Brad Pitt escaparem da autoconsciência de uma
época de perfeição, de transição e de tragédia. No filme de
Frank Perry tudo está justo, frágil, documental, esquizofrénico,
pois cada elemento conflui para esse espelho estilhaçado e para essa
paisagem calcinada que é o mundo dos simulacros do berço
aterrorizado do cinema em confronto consigo e com as suas crias. A
vida chã e corriqueira num quotidiano que é ele mesmo um filme, o
paradoxo, a normalização.
Tuesday
Weld, no seu rosto belo e desamparado, estão as tentativas de
suicídios precoces, as violações escondidas, a bebida e a droga
trocadas
pelo leite materno, o incesto praticado pela terra mãe. Anthony
Perkins, que viu os cadáveres empalhados e os cadáveres ambulantes
de carne e osso da Hollywood dourada de que fez parte Psycho,
que vislumbrou e seguidamente tocou nas matérias proibidas dos
quartos e dos motéis de
segredos indecifráveis de
visões insuportáveis,
Hamlet estupefacto dos desertos americanos, essa casualidade de good
looking boy
atirado aos túmulos sem mapa da meca, casualidade não premeditada
que admirava a monumentalidade e a errância de Orson Welles e que
sofreu por não lhe ter dedicado um livro. Joan Didion, e a descrição
abstracta e exacta das linhas cruzadas da cidade dos anjos. Frank
Perry e a total exposição ao mundo e ao assunto, sem pensar no seu
prestigio nem no legado dos tantos film
on film.
A
atracção entre Tuesday e Perkins datava dos desejos ilegais da
infância e de afastamentos conscienciosos,
e assim vai alastrar a toda a narrativa, culminando numa pietà
ensonada e atordoada pelo desfasamento lento, muito lento, das
expectativas e dos sonhos da indústria do cinema; e também poético,
ao nível dos home-movies,
desta vez fotografados pelo grande Jordan Cronenweth que futuramente
aplicaria degradações de calibre idêntico ao tempo avançado mas
também corrompido de Blade
Runner;
aquelas passeatas entre os dois à beira do mar, ao declinar do dia,
dispensaram o século da máquina oleada das ilusões, para tudo ser
intimamente muito mais ilusório na sua serenidade e plenitude
provisórias.
Frank
Perry, constantemente ignorado e enxovalhado pelos seus
contemporâneos e pela História, usa todas as ferramentas exclusivas
dos processos miríficos e hipnóticos do cinema original – a
voz-off
deste
ou do outro lado do espelho,
a montagem paralela e
inatingível,
as perfurações várias, a parábola, a possível
confluência
de todos os tempos, o estrangulamento cronológico e espacial, o
desfasamento entre a imagem, o som, os sentidos e os significados, os
ralos narrativos e literais – para aglutinar e confluir a serpente
bíblica (e as serpentes bem terrenas que dão festas em mansões)
que tenta Eva ou que é o demónio ele mesmo, e os tiros que essa Eva
moderna ou essa
cowgirl drogada
pela espera do sucesso
dispara
ao calhas no terreno árido das odisseias de outrora; aglutinar e
confluir, extravasar ou exorcizar os fetos atirados para o caixote do
lixo em nome do ouro dos óscares e as voltas nos labirintos dos
jardins dessa Maria
in Wonderland ou
nas serpenteantes vias citadinas sem rei nem roque… A espera, a
espera é o pior de tudo naquela terra, como na de cada qual, como na
nossa, a
espera que mata, a espera antes do “acção”,
a espera em nome de um possível nada. Quentin Tarantino obviamente
tem uma cópia em película de Play
It As It Lays e
assim desacelerou os seus ritmos explosivos para tornar tudo mais
rápido do que o mundo em espera pelo desenlace atómico.
O
desenlace de Once
Upon a Time... in Hollywood pode
ser duas coisas: ou maravilhosamente justiceiro, como que a
rejustificar
a invenção da nova arte que suporta o milagre; ou perverso,
grotesco, essa máquina artística
monumental que projecta a ser espezinhada pela vida real, que, ao
contrário do que Quentin também pode dizer, é bem mais real do que
as telas. As últimas palavras, e sentenças, de Play
It As It Lays, ditas
pela irresponsável e suicida Tuesday Weld: «I
know what "nothing" means, and keep on playing. Why, BZ
would say. Why not, I say.»
A planarem no nada, uns matam-se, como Perkins, outros ou brincam com
o fogo ou redimem tudo, caso de Quentin, outros ainda continuam a
jogo, jogando
até com a morte olhos nos olhos,
caso do rosto mais belo e desamparado desse tempo, Tuesday Weld
rodeada de veneno e de seus belos
semelhantes, fazendo da consumição o baralho fornecido pelo
destino, again,
and again, and again… lado
a lado com a Wanda
de
Barbara Loden e a Shirley Knight de The
Rain People,
imensamente mais estoicas do que Fast Eddie Nelson. O sublime, preso
por invisíveis liames. Não
se pode passar impune por aquilo que não se é, mesmo que o brilho
seja soporífero e irresistível.