quarta-feira, 30 de janeiro de 2019


Creed II, Steven Caple Jr., 2018


Para Phylicia Rashad, com admiração.
 
A “Creed II”, como à maioria dos filmes, podem ser apontados vários defeitos e excessos, conforme a compreensão e disposição de cada um. No caso, desde a estrutura narrativa emulada de todos os outros episódios até à glorificação sentimental básica, da recapitulação da guerra fria e da guerra cobarde entre os Estados Unidos da América e a Federação Russa, até a um patriotismo exacerbado que falseia algumas regras do jogo e torce o realismo. Porém, para quem estiver disposto a abandonar os tópicos críticos e cerebrais, pode-lhe ser devolvida uma reserva de emoção à muito enterrada do que foi o cinema universal.
 
Para começar, esse início silencioso, um pai e um filho que não possuem verbo comum, comunicantes pelo ódio. O cinzentismo emocional de quem está morto pela não-aceitação do que a vida, e talvez a justiça, trouxe no seu curso natural ou forçado, a ser projectado no meio ambiente, num começo feio e triste. Ivan Drago, um morto-vivo, está conservado na bílis azeda da vingança.
 
Passado o genérico, entram do fundo da cave as palavras fantasmáticas de Rocky Balboa, um vencedor sem coroa, ainda e sempre com o bamboleante e meio tonto boné Chaplinesco, respeitando os becos escuros, com as chagas também caladas. Guturalmente, dirige-se ao miúdo que continua a tratar por igual, e conta-lhe dos três exíguos passos que conduzem a um ringue poderem parecer uma montanha, fala-lhe da solidão que pode tomar conta de tudo quando alguém nos quer derrotar face ao mundo inteiro.
 
No meio, a coisa mais bonita porque mais discreta de todas: a Mãe de Adonis Creed, viúva de Apollo, Mary Anne Creed chamada. É essa presença inteira, Alma mater cristalina, que tudo adivinha pelo olhar, pela intuição, sempre no seu canto, assim salvífica. É uma das grandes Mães do cinema americano, na mesma mesa e no mesmo altar da Jo Van Fleet de Elia Kazan, da Jane Darwell de John Ford, das endiabradas de Spike Lee.
 
Após a derrota de Adonis, Balboa, encarcerado pelos seus espectros, no seu ringue privado, é derrotado mais uma vez pelo imbatível adversário do tempo, da solidão, percebendo a única saída. Próximo plano.
 
O regresso ao western como quem regressa à cidadela, deserto onde só se encontram os magoados.
 
A roda do destino ou a roda de Chronos vira, gira, ou simplesmente faz o seu impassível percurso, e percebemos que o importante ainda é o embate entre Ivan e Balboa, entre o ódio e o amor armazenados (some stuff in the basement...), entre os gritos do gigante para a cria e os sussurros à beira do berço para o adoptado, combate resolvido pela toalha ao chão de Ivan que transforma o ressabiamento em dádiva sublime. A partir daí talvez o nó do passado fique mais lasso e o colosso da juventude possa abraçar tudo. Dizem que o ódio pode ser tão forte como o amor, mas o desempoeirado realizador Steven Caple Jr., acompanhado pela memória e prática de Sylvester Stallone, vão ainda a um combate final entre essas duas fontes jorrantes e primordiais.
 
É esse breve plano, quase um insert, do pai e do filho derrotados mas transformados já na terra natal, a correrem lado a lado, muito mais leves do que no começo, que funde a visita de Adonis à campa do pai e o bater de Balboa à porta do filho e do neto, tudo primeiras vezes, para os velhos e para os novos. Breve plano, quase nada, que funde a montagem paralela* e funde ainda a vida e a morte, os lamentos e toda a energia faiscante dos corpos, do hip-hop, da inocência companheira e guerreira de Bianca, próxima Mãe das Mães. Quem sabe um dia a menina deles e o neto de Balboa se encontrem, num filme espiritual, sem expectativas.
 
* Revendo agora essa sequência revolucionária - espécie de Eisenstein da ralé- o Stallone é o maior herói operário da história do cinema. (email de 2015 de Mário Fernandes a propósito das escadarias da saga Rocky)

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019


The Crooked Way, Robert Florey , 1949


Passada uma grande guerra mundial, o John Payne que ainda a vive aplacado em muitas paredes, longe do mundo exterior e da sociedade, descobre-se com um pedaço de metal alojado no cérebro. Vários anos depois. Quando decide atirar-se ao abismo da sua amnésia dispensa a rede. Entrega-se à luz cegante sem nada, sem provas da doença, sem condições, sem atenuantes, sem provas. Mal sai para a saudável luz do dia descobre o seu antes em guerra com o depois. O que era antes da guerra e a impossibilidade de recomeço. Da fenda orgânica que cientificamente não lhe permite recuperar a memória, só o passado lhe traçará todas as coordenadas. Para presenciar in loco a outra indesculpável, incomensurável e incurável fenda colectiva. Fenda psicológica que contradizendo os dizeres médicos é imemorial, portanto, sem cura. O corpo e o semblante fechados de Payne, a ausência de emoção, o cancro e a gangrena da solidão, são a exacta radiografia de um pós-guerra. Payne é um país perdedor e toda essa tragédia de carregar uma marca. Um nazi e um vencedor.
 
Passada uma grande guerra mundial, o lado bom do recomeço não prossegue pela desconfiança, pela fama. “The Crooked Way” é um palco de radiografias, luzes enterradas, perfis vacilantes, naturezas condenadas. O trabalho do clínico realizador Robert Florey e do demencial cirurgião John Alton consiste em acender fósforos no negrume da noite total dos escombros que restaram em busca da quimera do acreditar. Uma obra em branco total e em preto total contrastados por lume de temperatura incalculável em superfícies cremadas. No final do mundo e no pós-apocalipse só a memória poderá salvar, os afectos viventes ou jazentes na sombra das sombras. Memória - reconhecimento - - confiança. Jamais a história oficiosa de quem tem a caneta, o papel e o carimbo em mãos.
 
Payne e as formas do filme resistiram ao inverno e às falsas primaveras, à fuga fácil e ao recomeço longínquo. Aceitando o embate mais violento e ferrado com o medo ciclicamente impingido ao Ser Humano. O totalitarismo será sempre esse veneno retroactivo que vai infectando o embrião de um Payne gestado em guerra. Invernos e primaveras trocadas. A grande guerra mundial calada nos passeios e bairros do dia-a-dia.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019



Hell or High Water, David Mackenzie, 2016


A pequena história no Oeste do Texas ainda continua a ser a mesma do antigamente, com outro tipo de verniz e de fatiota. Continuam-se a saltear os bancos de rompante e com o mesmo tipo de estratégia das brincadeiras marotas das crianças. Os ancestrais tiveram de se adaptar e de não fazer grande escarcel perante a altivez de quem se acha dono daquilo tudo desde o princípio. Os que saltaram do outro lado da fronteira terão literalmente de engolir isso até ao fim dos dias. Os chapéus de abas duras dos cowboys roubam qualquer tipo de protagonismo ou vida à pele tisnada e às tranças. Os índios permanecem um sussurro longínquo, um vento por entre as ervas do deserto que permanecerá. Na mitologia do velho território americano no qual se aprendeu que vale tudo e os petizes estão à sombra da forca desde o berço, estupefactos e assombrados, o que foi há muito posto em marcha jamais será apagado, para o bem e para o mal. A memória e a culpa persistem, o ódio e a violência de igual modo.

A inteligência e a constatação do “Hell or High Water” de 2016 começou no argumentista Taylor Sheridan, o mesmo que descreveu a grande história da guerra presente, portanto, a oficial dos cartéis de drogas na saga “Sicario”. Sheridan percebeu que no meio do inferno mediático, ou nascente dele, prevalece na sombra e nos cantos esconsos a faca e alguidar dos ajustes de contas, da ganância mesquinha, desse terreno que o tradutor e escritor português Paulo Faria descreveu como «uma feira de diversões, um lugar mágico e sem freio onde quase tudo se torna possível e do chão tanto brotam sonhos mutilados como petróleo.» Emboscadas ao topo dos montes e esperas de caçadeira na mão. Um frente a frente e a dignidade do mais fraco no cenário de papelão do casino que deriva directamente das catedrais de “Cheyenne Autumn” de Ford.

O grande e o pequeno, dependentes, numa América que não vai percebendo a necessidade de insistir na cura da ferida original. Aqui temos o irmão mau e o irmão bom, aquele que percebe que a sua natureza é para ser respeitada a ferro e fogo e o que procura a redenção. O vislumbre do nada na personagem do xerife de Jeff Bridges. A família e a solidão. Todo o emaranhado destas relações nos provam da fundura da patologia. Para se acabar com a grande guerra tem de se começar na porta do vizinho.

Pequenas histórias, que o realizador teve a ousadia, e também a sensibilidade partilhada com Sheridan, de tratar com a pequena forma. O plano de abertura é sintomático, troca o gratuito pelo lógico, a câmara a vogar mede a temperatura e a tensão do caso, para se ficar a perceber sem margem para dúvidas da natureza animalesca dos protagonistas, actuando conforme. Aqueles miúdos são os mesmos que empurram o escorpião para as formigas na introdução de “The Wild Bunch”, numa culpa ou numa relativização dela que os precede e os diluí naquele cosmos. A partir daí os planos belíssimos e ameaçados de David Mackenzie formam-se por esse rastro, esse rastilho perigoso que se acendeu mais uma vez no oeste do Texas e que chega até qualquer lugar do país e do mundo.

Tudo convergirá naturalmente para a redenção impossível, utópica, os sonhos e o seu mutilamento. A personagem do irmão mais novo é para onde todas as contradições e energias concorrem, um homem que fez o que parece ser o certo, garantiu o futuro aos filhos e à ex-mulher, mas para sempre encalacrado entre as brincadeiras a sério e as brincadeiras condenadas com o irmão que presenciamos ao longo do filme – por lá ainda podemos detectar a semente do futuro, como a empregada que namoriscou e safou o irmão bom, o filho deste que com certeza entrará na universidade e jogará muito futebol, o amor não dito entre os dois agentes da lei. No final assume-se, obrigatoriamente, a geometria do western, e Mackenzie enquadra o velho e o novo na posição de duelo, prometendo um próximo capítulo. Perpétua inconclusão. A pequena forma, o terrível que se tornou banal, ali na casa ao lado, it will go on and on…

“Hell or High Water” é o western clássico, o estilhaçado e os nossos dias em corpo presente.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019



Hammett, Wim Wenders, 1982


O estilo e o aperto da escrita de Samuel Dashiell Hammett percebem-se perfeitamente em qualquer das linhas de qualquer ficção sua, por exemplo, a última de “Red Harvest”, o primeiro romance escrito em 1929: «I might just as well have saved the labor and sweat I had put into trying to make my reports harmless. They didn't fool the Old Man. He gave me merry hell.» - quando se esperava a síntese proveitosa ou uma visão do mundo ampla, apenas o comezinho. Ou, e juntando já a concisão e a brevidade à sua moral e à sua ética, o desprendimento como no centro do abismo e da colheita sangrenta vai substituindo a noite de sono necessária pela dose de Gin adequada. Uma progressão e um modo de levar as coisas para a frente que mesmo no cinema clássico americano e na série-b da carestia nem sempre têm correspondência, uma secura e uma torção dos meios em benefício dos fins que de entre os mais conhecidos remeterá para um Anthony Mann ou talvez para um que outro Budd Boetticher; mesmo Sam Fuller, com os seus fogachos de lirismo desesperado, se afasta deste chão queimado, desta aparente infertilidade.

Se já na era passada da concentração e do right to the point de um certo cinema esta cadência era difícil de obter, pois impunha-se eliminar todo o tipo de rememoração e sentimentalismo das formas e do espírito, numa sensibilidade que se comportava essas distensões as mantinha intimamente elididas ou abafadas até ao âmago, no chamado cinema pós-clássico ou moderno já não haveria lugar para um tipo de violência que combina o niilismo existencial prático e filosófico com a cruz crística da expiação dos pecados, sem queixumes. Muitos terão desconfiado quando se anunciou ao mundo que Wim Wenders e Francis Ford Coppola iriam unir esforços para levar ao grande ecrã um pouco da vida privada de um homem que esteve na Guerra, em Hollywood, na prisão, nos becos mais negros da paisagem urbana e das entranhas da sociedade da sua época, entre mil e um mistérios que só se podem imaginar. A combinação da poesia dilatada e contemplativa de Wenders, sem bem que estamos antes de “Paris, Texas”, com o Coppola na ressaca do seu Vietname privado, não parecia ser a melhor escolha para a empreitada, mas o encontro com Joe Gores, um escritor e em certa medida detective de uma têmpera análoga aos personagens de carne e osso dos seus escritos foi a chave da questão. “Hammett”, de 1982, delirando mais ou menos com aquilo a que só pode sondar, faz jus à escansão Hammetiana.

Seguindo no trilho de Joe Gores, à semelhança da pesquisa demencial e apaixonada que Philippe Garnier encetava por essa altura sobre a vida de David Goodis, vamos encontrar Hammett já como escritor, passados os infernos da vida que lhe cedeu isso, e que saberemos pode ser um inferno de igual medida e temperatura. Um Hammett já um pouco mitificado pelos que o rodeiam, fascinados pelas teias que o envolvem, o trucidam mudamente, e pela escuridão que o tinge, não se sabendo o que nele é real ou fictício, corriqueiro ou místico. São esses dois universos, o da ficção e do fascínio do medo, cruzado ou diluído na dureza e no perigo da realidade e das manobras puramente humanas, a matéria e o portal para todas as dúvidas, ilusões e subconsciente no qual se debate o escritor-detective e por sua vez toda uma larga época. No meio de duas grandes guerras mundiais e da depressão económica americana, no hiato aonde vale tudo para alguém se safar, projectando-se uma equação longínqua, aquele Hammett digladia-se frente à ilusão de um passado como paraíso perdido ou cativante, desempoeira-se, ou mata-se por isso, da nuvem da memória e da nostalgia, do relicário do conforto, de uma infância fundadora que pode abrir para o bem ou para o mal conforme der jeito; mata-se por isto para tentar chegar e trabalhar em precisão, mover-se nos mecanismos da acção que fazem e perfazem o presente, para agir liberto, como um maquinismo. A luta contra as armadilhas da memória e do tempo perdido gritam pela verosimilhança que encontraremos em toda a obra posterior – daí a máquina de escrever e a sua ferragem terem tantas vezes direito ao grande-plano.

O passado é tão complexo como as galerias desconhecidas do cérebro, e essa divisão como espelho partido entre o que se tem direito de inventar e o quotidiano do qual depende isso, é a narrativa do filme de Wenders, levando para secundaríssimo plano o plot intrincado e a desmultiplicação de personagens. Sendo tudo fundamental para o brilho e a reconstituição fílmica, do Technicolor do Joseph F. Biroc de “It's a Wonderful Life” à fidelidade dos cenários de Dean Tavoularis ou à deliciosa presença de míticos actores em pequenos e maravilhosos papéis – o Elisha Cook Jr. de tanto filme noir, inclusive no “The Maltese Falcon”; o impagável Hank Worden de Ford e Hawks ou a bela e frágil Sylvia Sidney para sempre de Fritz Lang, além de Fuller como um shark rasca; para não falar do Frederic Forrest que merecia um ensaio – é o choque e o interpenetrar dos diversos tempos e as inflexões dessas camadas a servirem de asfalto para todos os derrapes e consequentemente para todas as incertezas, isto é, todos os limites ou segurança, a moral e a ética do viver. Que está no centro da criação, do cinema ou da literatura, do que seja que vá aos confins das questões. Em última análise o que conta é o viver a fundo ou não viver, por isso mesmo, no filme, Hammett troca tudo pelo manuscrito perdido, que equivale à sua perdição. Por isso este Hammett exibe alguns pormenores de afeição, sobretudo com as mulheres, que destroem algum do verniz da sua caneta, sendo isso a parte subjectiva de Gores e de Wenders, alinhando-se noutra magma questão da sua obra, por essas elipses e cortes a direito onde a nossa imaginação tem direito a tudo.

A escrita de Wenders está toda naquele plano de estupefacção onde Hammett sobe uma rua de São Francisco, lentamente, até ao topo, com uma simplicidade total, do lixo dos passeios a um céu temperamental; ou nas incursões pelo submundo chinês que é o Dante contemporâneo possível. Do nada às entranhas. A dureza de atravessar o mundo, as regras, a época em vigor, e a brutalidade, a catarse, de presenciarmos esse despojamento sem juízo que não o nosso. Tipos duros, a imoralidade dos actos, a frieza dos objectivos, a engrenagem de uma eternidade.

sábado, 12 de janeiro de 2019



The Hired Hand, Peter Fonda, 1971


No começo dos anos mil novecentos e setenta Peter Fonda era o tipo mais cool do universo, mas também um fervoroso activista, vivendo por inteiro a contra-cultura nas suas mais variadas explosões e solidões, de Thomas Pynchon a Dennis Hopper. Filho do lendário Henry Fonda, cresceu na sombra da cepa da árvore do classicismo, talvez olhando estupefacto ou agradecido as experiências finais do pai, em filmes de Sergio Leone ou de John Leone. Os valores firmes e severos de John Ford e a humilhação política e humanista contra a guerra do Vietname, o mundo electrónico e a deriva sob o ritmo estupefaciente, em forças de acção / reacção primordiais, moldaram harmonicamente – ou nessa impossibilidade - a sua primeira e fabulosa experiência na realização com “The Hired Hand”.

No prelúdio – à Mozart intoxicado - temos três vagabundos, forasteiros mesmo nas terras onde nasceram ou se fizeram homens, fugindo sem saberem do quê e com sonhos de encontrarem o grande oceano da libertação última, mas vai ser a tristeza a sobrepor-se a um deles e a precipitar a tragédia. “The Hired Hand” é um filme sobre a tristeza de um tempo sem lar nem pátria, e Peter Fonda fez um Western ao invés de um “Apocalipse Now” ou de um “Five Easy Pieces”, expondo os movimentos e a tectónica das placas das fundações e do desenrolar da história americana, nesse vaguear sem causa nem justificação, sem meta nem ameaça definida, sempre na forja de uma nova odisseia para se continuar um espectáculo qualquer, assim mesmo capaz de provocar as mais terríveis altercações. E, sem justificação credível, o jovem morre, à imagem de milhares de jovens na guerra nova da nova altura, e ficam os dois mais velhos. Um deles teve um dia família e vai procurar a mulher e a filha. O outro, sem nada para fazer, acompanha-o.

Nam June Paik ou Stan Brakhage e Rembrandt, eis a ousadia e o triunfo de Peter Fonda. Passado o tempo do mito e dos grandes pistoleiros, sem sombra de um Gerônimo nem mesmo de um romântico Billy the Kid, em terrenos cravados de guerrilheiros incompetentes, de matéria solar esquisita, as sobreposições numéricas e os sinais eléctricos - como na maravilhosa composição doente e lírica de Fonda e Warren Oates a debaterem-se num céu esventrado a fogo crepuscular que os cospe das pinturas históricas – são os glóbulos que nos transportam o oxigénio, os gases, oferecendo-nos imunidades e os mais incompreensíveis anticorpos, uma química extasiante que paradoxalmente lembra e fala com os elementos naturais. Toda esta demência e desregra pictórica tenta encontrar um rumo e uma beleza possível em qualquer meio do nada, gravuras rupestres revistas pelo presente, aspiração a um êxtase místico no alucinógeno e venenoso caos circundante.

Tentado o resgate da lenda e do mito, no centro do pó, aguarda-os, nos confins do mundo, uma mulher e uma menina de braços abertos, num incognoscível reduto de pureza que somente os interiores, as velas, e a tinta (neste caso a película do deus Vilmos Zsigmond) transformada em luz diáfana de um Rembrandt ou de um Rubens, podem fazer aceder. Como nos velhos escritos, uma mulher abandonada pelo marido ainda é uma mulher impura, e toda a sua exposição e clamação ao amado só vai funcionar em instantes perfeitos que durarão breves momentos em roubos clandestinos à eternidade – o passado, a propensão e fatalidade erráticas e a guerra suja vão deitar a sua garra e apenas deixar vivo o mais estranho e imune de todos, Oates.

Nessa clandestinidade, nessas composições equilibradíssimas abarcadas pela luz de Deus, só se dizem verdades confirmadas pelos rostos, do desejo sexual por si só até às diferenças das perguntas feitas por um homem ou por uma mulher, pelo melhor amigo ou pela esposa, com as diferentes dores dissecadas, o diverso amor, uma ordem harmónica que se vai esculpindo na inscrição da tragédia. Em “The Hired Hand” podemos perceber o peso bruto da roda de uma carroça primitiva através da simples angulação correcta da câmara de filmar, verificar uma queimada em fogo real em contraposição à física desvanecida da moderníssima era Sex and drugs and rock and roll. Peter Fonda, ainda a refazer-se da experiência de “Easy Rider” e apadrinhado pelo Roger Corman de “The Trip”, no mesmo ano da calamidade derradeira que ainda é “The Last Movie”, puxou mais os limites e a pacificação deles, numa orquestração musical realmente de acompanhamento, momento a momento, de forma sensível e sem fórmula. No fim, no réquiem langoroso e estranhamente calmo, uma entrada em casa que não é somente a possível mas a superior, a escrita no destino ou nas estrelas. Ainda, depois de tudo, a herança. Ai de nós, sem guia.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

tops 2018


(na foto: Cormac MacCarthy, a jogar pool em El Paso, no Texas, há mais de cinquenta anos)

Deixo ficar as minhas preferências de cinema e não só do ano que passou. Desejando a todos um excelente 2019.
2018

Filmes

- The Last Day of Leonard Cohen in Hydra, Mário Fernandes

- The 15:17 to Paris, Clint Eastwood

(Um Mundo Perfeito. A máxima simplicidade, a máxima oração.)

- Phantom Thread, Paul Thomas Anderson

(O southern gothic da literatura Norte-Americana, Daphne du Maurier ou Shirley Jackson, os contos que devem atormentar ou certo dia atormentaram os Paul Thomas Anderson miúdos, antes dos ecrãs e ainda com as estrelas como testemunhas, tal como Camilo Castelo Branco em Portugal atormentou ou atormenta alguns perdidos, em reação com o experimentalismo não só de Robert Altman ou de Robert Downey Sr., mas na mesma medida com o porno Californiano que sempre torceu e suou os seus filmes desde “Sidney”. Doença realista.)

- First Reformed, Paul Schrader

- Columbus, Kogonada

(Geometria da emoção.)

- Western, Valeska Grisebach

(«Aquele homem que ali vês, veio de longe, ninguém sabe o que ele fez.» Escuta-se em qualquer aldeia do mundo.)

- Frantz, François Ozon

- Sicario: Day of the Soldado, Stefano Sollima

(O filho do grande Sergio Sollima a meter-se firme e hirto como um soldado numa terceira guerra mundial, guerra nem boa nem má, indescritível; chegando algures no meio do caminho ao velho conto do pai e do filho perdidos no fim do mundo.)

- Call Me by Your Name, Luca Guadagnino

(Ruy Belo… Joaquim Pinto…)

- L'amant d'un jour, Philippe Garrel

(Documentário seco e poesia estupefaciente à mesma luz atordoante dos sentimentos.)

Descobertas

- Black Midnight, Oscar Boetticher

(Cavalos, felinos, belos e treva a céu aberto no perpétuo western.)

- Polifonias, Pierre-Marie Goulet

- Baseball, Ken Burns

(Walt Whitman no pátio da nossa escola.)

Livro

- O Guarda do Pomar, Cormac McCarthy (2º tradução de Paulo Faria)

(O Guarda do Pomar é duro como um corno e uma prova de sobrevivência até ao carro do Marion Sylder avariar na ponte; a partir daí é emocionante e justiceiro para lá de qualquer adjectivação; o momento em que o rapaz devolve o dólar do gavião ao estado é inacreditável de secura, tristeza e verdade, o que vem depois da inocência... e o velho sábio no sanatório a meter o funcionariozinho na linha... o Sylder na prisa a tentar que o rapaz não faça o que ele sabe que tem o direito de fazer... o final no cemitério e o último parágrafo...)

Música

- Mechelas, Sam The Kid

(Cartas do quarto, a violência da doçura.)

Outros

- PEDRO COSTA: COMPANHIA, Serralves

(Sublime escuridão; Hawks e Hitchcock finalmente no digno altar.)

Nota: alguns filmes não têm apontamentos pois já escrevi sobre eles.