Creed II, Steven Caple Jr., 2018
Para Phylicia Rashad, com admiração.
A “Creed II”, como à maioria dos filmes, podem ser apontados vários defeitos e
excessos, conforme a compreensão e disposição de cada um. No caso, desde a
estrutura narrativa emulada de todos os outros episódios até à
glorificação sentimental básica, da recapitulação da guerra fria
e da guerra cobarde entre os Estados Unidos da América e a Federação
Russa, até a um patriotismo exacerbado que falseia algumas regras do
jogo e torce o realismo. Porém, para quem estiver disposto a
abandonar os tópicos críticos e cerebrais, pode-lhe ser devolvida
uma reserva de emoção à muito enterrada do que foi o cinema
universal.
Para começar, esse início silencioso,
um pai e um filho que não possuem verbo comum, comunicantes pelo
ódio. O cinzentismo emocional de quem está morto pela não-aceitação
do que a vida, e talvez a justiça, trouxe no seu curso natural ou
forçado, a ser projectado no meio ambiente, num começo feio e
triste. Ivan Drago, um morto-vivo, está conservado na bílis azeda
da vingança.
Passado o genérico, entram do fundo da
cave as palavras fantasmáticas de Rocky Balboa, um vencedor sem
coroa, ainda e sempre com o bamboleante e meio tonto boné
Chaplinesco, respeitando os becos escuros, com as chagas também
caladas. Guturalmente, dirige-se ao miúdo que continua a tratar por
igual, e conta-lhe dos três exíguos passos que conduzem a um ringue
poderem parecer uma montanha, fala-lhe da solidão que pode tomar
conta de tudo quando alguém nos quer derrotar face ao mundo inteiro.
No meio, a coisa mais bonita porque
mais discreta de todas: a Mãe de Adonis Creed, viúva de Apollo, Mary
Anne Creed chamada. É essa presença inteira, Alma mater cristalina,
que tudo adivinha pelo olhar, pela intuição, sempre no seu canto,
assim salvífica. É uma das grandes Mães do cinema americano, na
mesma mesa e no mesmo altar da Jo Van Fleet de Elia Kazan, da Jane
Darwell de John Ford, das endiabradas de Spike Lee.
Após a derrota de Adonis, Balboa,
encarcerado pelos seus espectros, no seu ringue privado, é derrotado
mais uma vez pelo imbatível adversário do tempo, da solidão,
percebendo a única saída. Próximo plano.
O regresso ao western como quem
regressa à cidadela, deserto onde só se encontram os magoados.
A roda do destino ou a roda de Chronos
vira, gira, ou simplesmente faz o seu impassível percurso, e percebemos que o
importante ainda é o embate entre Ivan e Balboa, entre o ódio e o
amor armazenados (some stuff in the basement...), entre os
gritos do gigante para a cria e os sussurros à beira do berço para
o adoptado, combate resolvido pela toalha ao chão de Ivan que
transforma o ressabiamento em dádiva sublime. A partir daí talvez o
nó do passado fique mais lasso e o colosso da juventude possa
abraçar tudo. Dizem que o ódio pode ser tão forte como o amor, mas
o desempoeirado realizador Steven Caple Jr., acompanhado pela memória
e prática de Sylvester Stallone, vão ainda a um combate final entre
essas duas fontes jorrantes e primordiais.
É esse breve plano, quase um insert,
do pai e do filho derrotados mas transformados já na terra natal, a
correrem lado a lado, muito mais leves do que no começo, que funde a
visita de Adonis à campa do pai e o bater de Balboa à porta do
filho e do neto, tudo primeiras vezes, para os velhos e para os
novos. Breve plano, quase nada, que funde a montagem paralela* e
funde ainda a vida e a morte, os lamentos e toda a energia faiscante
dos corpos, do hip-hop, da inocência companheira e guerreira de
Bianca, próxima Mãe das Mães. Quem sabe um dia a menina deles e o
neto de Balboa se encontrem, num filme espiritual, sem expectativas.
* Revendo agora essa sequência
revolucionária - espécie de Eisenstein da ralé- o Stallone é o
maior herói operário da história do cinema. (email de 2015 de
Mário Fernandes a propósito das escadarias da saga Rocky)