terça-feira, 31 de janeiro de 2012



Do negro irrompe de súbito "Muerte de un ciclista", maravilhoso Juan Antonio Bardem de 1955. Uma estreita estrada ladeada por duas pequenas encostas e algum arvoredo. Ambiente cerrado e perto do místico tudo nos prepara para desejantes aventuras e imersões esotéricas e opacas. Mas de repente muito de repente passa um homem de bicicleta que de uma vez justifica o título da obra, lança a ambígua tragédia que se irá explanar e o tom outro que irá talvez do terror à suprema libertação mesmo que pela via última a da morte. Um atropelamento brutal elidido na profundidade de campo. Dois rostos trementes, almas apreensivas, instintos de orgulho e de fuga. Indescritível langor em tão fantástico lugar. Tal cenário descrito aguarda-nos e iremos lá implacavelmente voltar.

Lá para o meio do filme a frase proferida pelo elemento feminino do par caído em desgraça que o articula e o assombra: "parece que toda a gente sabe, que todos olham para nós".

A partir do fugaz e no entanto tão irrespirável pesado inicio e sucedâneas promessas mútuas com cigarros e faces ao vento, onde vamos cair é na posta em cena da paranóia.

Através de uma lógica de montagem e desmontagem que impiedosamente aniquila e põe em elipse e na dúvida olhares, reacções, movimentos, pensamentos. Raccords que trucidam, juntam, iludem, surpreendem, assustam. Que afastam, culpam, salvam, ferem, compreendem, se comovem. Fumos que transitam de um quadro ao outro, beijos que se roubam nesse transporte impossível e tempos que se sobrepõe e entrecruzam. Suores que escorrem e destilam nesse embate de telas e de almas.

Paranóia que tudo liga e hiperboliza. Que transforma os mapas da existência, dos percursos e dos afectos do par em doença alastradora que constantemente ameaça e inferniza.

Mas dito isto importa exprimir que Juan Antonio Bardem jamais é gratuitamente formalista mesmo que de génio. Nada nessa lógica que não jogo se passa em virtuosismo antes numa possível tradução do afunilamento e da síncope eminente.

A grandeza do cineasta espanhol e do seu fresco ao pecado que assola é fazer esse desmultiplicante mosaico de perturbações e relações acontecer e estourar sempre no centro e na gravidade fulcral e sensível da tela, ainda que sobre espaços tempos não coincidentes. Como nas grandes pinturas e nas grandes sinfonias da desgraça em que tudo isso é centro no centro e das bordas só mais escorregamos para ele. Uma arte verdadeiramente agressiva, concêntrica e abstracta de uma só vez. Pronta para se libertar e fluir em inaudito epílogo.

Paranóia...a figura grotesca, irritável e acriançada de Rafa, o pequeno homem ciumento e afectado que brinca com o fogo em jogos de chantagem perigosos é ali o elemento principal e aterrador de uma espécie de coro à maneira grega que acusa e subjuga constantemente, que os rebaixa e os calca. Os diminui e aflige.

Coro que se vai desmultiplicando e aumentando a temperatura do fogueiro que para eles aquele mundinho se tornou e que atinge cumes nervosos fatais na sequência das sevilhanas, essa dança medonha. Coro aí levado ao máximo expoente e antecâmara da tragédia. Vozes of que comentam mudas pela mascarada...olhares predadores...volúpias em grandes planos cândidos e lúgubres... mise en scène como coreografia aglutinadora de tudo e de todos que até aí espalhou...algo tinha que rebentar e arrebentou mesmo...

O filme a partir daí muda, o par sente-se falsamente seguro ou momentaneamente seguro e vai descobrir a essencialidade da verdade...o amante e professor revê-se em inocências passadas...a amante extraordinária presença buñueliana chamada Lucia Bosé deixa o olhar e a tez inundar-se de sombras e fatalidade...

A decupage torna-se clássica, inteira – salvo num contra-campo já impossível de reconciliação ao marido dela e ao mundo, salvo estilhaçamentos alastradores – límpida e lírica. Lírica porque assenta no tempo que não dura como junto à fogueira sentados e deitados essa beleza que já é mortal.

Composições fogosas e arrebatantes, de tempo contado e solitárias. Erotismo consumido. Erotismo quimérico.

A Câmara torna-se serena e impassível como nas calmas que precedem as tragédias, horríveis pronúncias surdos. Movimentos solenes quase orações.

Os dois iludem-se e decidem entregar-se ou decidem fugir e emancipar-se… Descobre-se o que tantas vezes se descobre em finais de vida: "quando tive tempo não vivi, quando tinha ganas de viver, morri".

E de súbito tão súbito como quanto tudo começou já estamos em paisagem reconhecíveis e prometidas. Paisagens de vidas passadas perduramentos vinganças sabidas. Ali, tão desiludidos nessa impossível beleza zurliniana de céus muitos cinzentos a perder de vista, solos rasos agrestes e desolados e o homem lá para o meio a debater-se a existir a perder-se. Silhuetas cabelos admirares ao vento sobre terminal luz banhados.

Das composições e enquadramentos duros mesmo que obscuros da outra vez que lá estivemos, agora aflitos e desvanecentes como aflita e desvanecente vai ser ela a mulher que perde a cabeça tudo precipita e arrasta. Daqueles assombros iniciáticos tudo só poderia e prometia acabar mal. Há coisas a que se calhar não se escapa nem com o amor nem com todas as fulgurâncias condensadas num todo. Bardem é nesses momentos atroz e acaba com uma imagem bárbara e grotesca de filme b. Terrível transgressão.

sábado, 28 de janeiro de 2012

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012


"Berg – Ejvind Och Hans Hustru" é na filmografia de Victor Sjöström quase posterior a “Terje Vigen”, prosseguindo assim o fulgor panteísta, trágico e apaixonado. Não um panteísmo relacionado com dependências económicas ou grandes exaltações discursivas sobre a terra como propriedade ou glória, antes questão convivencial, dependente, de vida ou de morte em última instância.

Se os movimentos e as variações temporais, geográficas e pictóricas detêm na sua construção uma feroz lógica intrínseca, a relação entre homem e mundo é sempre total, intensa e por isso emotiva.

O primeiro movimento ou andamento, depois da paisagem se mostrar grandiosa e imperturbável, é o do fechamento, o dentro. Aí, na história do fora da lei Berg-Ejvind (outra vez como actor tão imenso o imenso cineasta) que vem de longe e cai de amores por uma forte mulher de abastados recursos que o salva, vamos ter silhuetas voluptuosas envoltas em negro e que do negro são cinzeladas e se impõe, cheias, matéria espessa a remeter para os óleos dos retratos de Rembrandt. Aqui no baixo e no muito dentro, pinturas esculpidas pela câmara à luz que escassa.

O segundo movimento, ainda mais musical e agora tão mais disperso e abstracto. A câmara solta-se, entrega-se aos ares. A fuga dos amantes lá para os cimos, para as montanhas imponentes, que metem medo e gelam espírito e espinha. Cinco anos de felicidade, uma filha dada à vida e um forasteiro de outras vidas com questões passionais muito mal resolvidas. Almas perdidas ao vento, esse elemento fundamental e personificado do cinema de Sjöström. Os cimos e os céus abertos. Figuras na imensidão da paisagem esse romantismo. Frágeis, provisórias, diminuídas. Fugitivos. Proscritos.

Terceira e capitular construção é a do cerramento. Cerramento brutalíssimo e obviamente nada pacificado nos picos e nos dentros, junção e síntese impossível do que está para trás. Os esforços descomunais e a forçosa alienação só para a sobrevivência, os avisos e vociferações da natureza em estado puro e selvagem e os ódios mútuos do casal que emerge no irreconciliável. Uma luta de proporções épicas e de resvalamentos catastróficos.

A dissolução do casal e então o resultado: no gelo mais gélido imaginado, dois corpos para sempre unos e conservados. Neve sem fim. Grandes planos terminais. O vazio. Fim.

“Almighty God”…”Death gave them forgiveness…”… “Their only law was their love.”

Para Victor Sjöström o desespero não nasce de linhas e perspectivas, volumes ou etéreos pronunciados, que lá para a frente preocupariam os chamados modernos pelos “especialistas”. Tudo nesta nossa terra conhecida é uma massa forme capaz de abarcar e de absorver cada partícula, cada ínfimo corpo, cada resquício mínimo da natureza e da civilização, do vivo e do morto, conhecido e não conhecido. Um grande corpo vivo/vivificante/generoso/orgânico/devorador/esfomeado/ cortante/sensual/perigoso. A mestria das pinceladas espessas e complexas. Totais e no entanto tantas vezes de solidão tocante, esses relacionamentos desconcertantes...

Lucidez, mas também poesia, lírica, subjectiva e convulsa.

Mais intertítulos de sentidos delirantes/ardentes/ultra eróticos (de memória): “...como num conto de fadas, Kari estava perdido...pensava que não mais via o sol...até avistar castelos e princesas”; “...a erva tremia, por debaixo da neve”; “...queria como fazer amor com os sonhos”; “...dava o meu peito ao teu punhal e imaginava que amamentava”.

Mais quadros de erotismo extremo e sem tempo, pois chegar ao que o mestre sueco chegou aqui...jamais: Berg-Ejvind ou Kari a aquecer a comida em águas escaldantes e por trás dele rios que correm à Da Vinci; O tal proscrito outro que regressa e o par de desejosos volve-se trio. Justiça e amor ou justiça no amor é o que ele deseja e o filme fica tenso e irrespirável no absolutamente árido, físico também às custas de pulsões recônditas, despontando as composições desequilibradas, no fio da navalha, a tombar aos precipícios. A um passo da queda. Soam alarmes outros de ciúmes e fomes e escancaram-se as portas à loucura. A sequência mais inusitada e insinuante, aberrante, escandalosa, excitante é aquelas em que Holla, a mulher para dois homens – essa mulher corpulenta e de sensualidade esbanjante e lúbrica – lava roupa de peito tão destapado aos sopros e a Arnes, o tal elemento intrusivo, que este se derrete e rasteja de desejos. Bem antes das pancas de Howard Huges. Perversão e provocação depois levadas aos limites paroxisticos do pedido do beijo, em que se desmultiplicam metáforas como o fálico objecto artesanal que ela tem em mãos e vai acariciando até à explosão hormonal dele e violenta recusa dela. A dúbia e horrenda perda do bebé em que fica a dúvida das culpas, dos motivos...das intenções e nobrezas de coração. E como não falar nos flashbacks...sejam os bucólicos nostálgicos de uma paixão a dois sempre em fuga para a frente, para cima ou para o poço...ou a criança sobre as águas a planar, coisa próxima do susto e do pesadelo suado.

Tragédia, sim. Mas que se diga que qualquer laivo de melodramatismo barato, de códigos, convenções ou normas de género como caderno de encargos a ser seguido, mesmo que com a caução de grande arte, é liminarmente afastado, porque Victor Sjöström fode isso e a natureza é sempre colosso estético que se impõe e que fala e corresponde com o artista num belo pacto. Sem sacralizações, a natureza aguda a foder também pressupostos e a desvelar atmosferas e a câmara em frente a olhar e a colher.

Um poeta...um trabalhador viandante...um homem livre.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012



Estava sob o sol e o peso agradável do vento.

É por isso que a relva estava tão teimosamente direita,

mas com flores do campo selvagens no meio.

Fim


Tal epígrafe fechada com a palavra fim poderia ser a conclusão feliz ou pacificada de uma qualquer narrativa de um qualquer livro ou filme ou outra coisa qualquer. Acontece ser o intertítulo último de um filme mudo sueco de 1917, que não por acaso é assinado por um dos maiores nomes de todo o cinema ou de toda a grande arte da luz e do movimento. Da vida, que é mesmíssima coisa. Victor Sjöström é simultaneamente quem pinta e orquestra o conto e quem brutalmente o interpreta como personagem principal. Conto que é muito simples e logo de uma gravidade inusitada, um dos segredos do mudo e dos grandes. Vale a pena, às vezes vale bem a pena contar: Terje Vigen, nome do protagonista e titulo da obra, é um homem dos mares e que aos mares consagrou a sua vida. Vamos apanhá-lo já velhinho e de cabelos brancos e de barba bem comprida, mais pelas agruras da vida do que pelo tempo que sempre passa inexorável. Encontrámo-lo assim numa casa escura de paredes grossas e cercada de tanto mar, nota-se o isolamento e a rendição de quem não espera nada da vida e só já espera a morte. E nota-se de rajada a grande arte de Sjöström, naquele engrandecimento e dignidade com que filma um corpo e uma alma grande; nas escalas e nas composições entre os corpos e o espaço – monumental o quadro no quadro que é a porta de casa e lá fora o desmedido mar que tudo ameaça devorar; e a luz que é aplicada e moldada sempre de modo a extrair e a deixar manifestar-se as grandes forças visíveis e invisíveis da natureza e de qualquer pulsão em causa, carnal, espiritual...seja o que for. Ali já não há dúvidas, ò poesia...

Flashback muito muito back...até à juventude e irreverência de Vigen, até quando as águas contavam para ele mais do que tudo e eram a sua força vital, até mais do que a mulher, até mais do que a filha bebé. É vê-lo a domar barcos como ninguém doma, a espalhar magia no vento, a subir aos mastros como quem sobe ao céu e a ser feliz e realizado assim mesmo com as coisas singelas. Mas à terra chega-se sempre porque tudo tem um fim e aí é a sua desilusão, parece não saber o que fazer, ao contrário dos seus colegas. Regressa a casa, espreita à janela e descobre a mulher e descobre a pequena criança que porventura não desconfiava, nunca saberemos. Por enigmas insondáveis ou simplesmente por amor volta a apaixonar-se e só já quer ficar no lar reencontrado. Já We can´t go home again ou não o que é certo é que essa plenitude é de pouca dura. Uma guerra com ingleses no meio explode e ele é obrigado a arriscar o pescoço para arranjar o pão de cada dia, mete-se num barquinho pequeno e por entre artimanhas várias deixa-se apanhar quase com objectivo cumprido. Morreu na praia e morreu esse Vigen recentemente renascido. È capturado e encarcerado muitos muitos anos e em sofrimentos desses o cabelo, as peles e o resto devem como que apodrecer. È liberto e já não é o mesmo homem, nem de perto nem de longe. Volta às origens e poucos o reconhecem. Espreita para a sua velha casa e já vê outros rostos. Desmaia e o plano seguinte já é o cemitério onde ele tira o chapéu aos seus, num dos cumes de lirismo e de atmosfera mais poderosos e carregados que já alguém me deu a ver – a vermelhos e cinzas velado.

Vigen já é outro, importa reforçar. É um animal ferido e acossado que se isola e deixa a raiva crescer dentro de si até ao ponto de alarme. Todos em redor o temem e acham que ele perdeu o juízo. Até que certo dia, num qualquer vento de qualquer ponto debaixo de um céu revolto e horrendo como a maré fatal, avista uma embarcação em perigo e lá dentro muita gente. Sem pensar e de instinto intacto vai lá ter de barquinho e para espanto de todos consegue domar esse diabo dos mares que os outros levariam para a morte, e por entre promessas de dinheiro e choros e gritos, Vigen reconhece que quem salva agora foi quem um dia o matou. Terrível descoberta. Vingança à espreita...animal interior que se presta a estrangular de vez. Num bote de salvação onde leva um casal parecido ao que um dia ele foi com os seus, está pronto para pôr fim a tudo e repor uma justiça sua. Mas a expressão daquela mulher e daquela filha e o seu bom coração fazem-lhe baixar as garras. Salva quem tem a salvar como genuíno lobo do mar. Apazigua-se, recompõe-se, volta a acreditar. Seguidamente já se pode entrar na casa dele e ver sorrisos e dádivas. Despede-se entre festas e comoções desses que lhe devolveram o sangue e o próximo plano é já outra vez o cemitério, desta vez só paisagem, solaridade e vento muito vento que amansa. Isso e as flores do campo da tal epígrafe. E o lirismo queimante à flor da pele. E todos os tempos no tempo daquele plano que é o tempo do cinema e de todas as vidas.


Milagre do olhar e do sensível como foram vários momentos ou todos os momentos ao longo do filme. Para jamais esquecer além dos citados e dos não citados:

- O deleite entre pai e filha no primeiro encontro. Às vezes a vida vira em segundos ou só com um olhar e foi o que aí aconteceu. Amor incondicional.

- A partida de Vigen à procura de comida, num plano de profundidade de campo, de sensibilidade pictórica e de duração sem par absolutamente algum. Um único plano que dura e dura...em que ele se despede da mulher, entra no barco e nos mares e desaparece no infinito, ficando a ecoar um peso de talvez predestinação...até à emoção pura e mística da existência do homem e do poder atractivo do cosmos.

- A fuga aos que o caçam, num prodígio de mise en scène e de arrojo que só depois Murnau atingiria em "Tabu” e nada mais. No tão grande o tão pequeno perdido homem e a sua garra igualmente incomensurável. O homem é aquilo e a maldade a que ele também pode chegar vai-se dar no hiato que durará até ele voltar à sua terra.

- Repito: a sofreguidão até aos ossos na prisão. Num único cenário concêntrico. E apesar de tudo...a alegria que ainda consegue brotar quando o soltam.

- O plano icónico do cinema de Victor Sjöström, com Vigen ao leme circular do barco que pretende salvar e a redescoberta da virtude máxima da sua vida que só tem semelhante com o imenso amor que ele provou poder dar.

- Todos os restantes frames, o som que se ouve malgrado chamarem-lhe mudo. O amor que brota de todos os poros e consequente tristeza. O movimento de alegria, fechamento, redescoberta e eterno descanso. O Homem e o Mundo em total comunhão, com tudo o que isso implica e se faz experiência inolvidável.

Victor Sjöström mais esquecido do que nunca é o olhar, o saber e o segredo que toda a grande arte logo também o cinema detiveram e podem deter, a luz e o tempo. A forma e o fundo. O circulo da vida. O eterno.