Do negro irrompe de súbito "Muerte de un ciclista", maravilhoso Juan Antonio Bardem de 1955. Uma estreita estrada ladeada por duas pequenas encostas e algum arvoredo. Ambiente cerrado e perto do místico tudo nos prepara para desejantes aventuras e imersões esotéricas e opacas. Mas de repente muito de repente passa um homem de bicicleta que de uma vez justifica o título da obra, lança a ambígua tragédia que se irá explanar e o tom outro que irá talvez do terror à suprema libertação mesmo que pela via última a da morte. Um atropelamento brutal elidido na profundidade de campo. Dois rostos trementes, almas apreensivas, instintos de orgulho e de fuga. Indescritível langor em tão fantástico lugar. Tal cenário descrito aguarda-nos e iremos lá implacavelmente voltar.
Lá para o meio do filme a frase proferida pelo elemento feminino do par caído em desgraça que o articula e o assombra: "parece que toda a gente sabe, que todos olham para nós".
A partir do fugaz e no entanto tão irrespirável pesado inicio e sucedâneas promessas mútuas com cigarros e faces ao vento, onde vamos cair é na posta em cena da paranóia.
Através de uma lógica de montagem e desmontagem que impiedosamente aniquila e põe em elipse e na dúvida olhares, reacções, movimentos, pensamentos. Raccords que trucidam, juntam, iludem, surpreendem, assustam. Que afastam, culpam, salvam, ferem, compreendem, se comovem. Fumos que transitam de um quadro ao outro, beijos que se roubam nesse transporte impossível e tempos que se sobrepõe e entrecruzam. Suores que escorrem e destilam nesse embate de telas e de almas.
Paranóia que tudo liga e hiperboliza. Que transforma os mapas da existência, dos percursos e dos afectos do par em doença alastradora que constantemente ameaça e inferniza.
Mas dito isto importa exprimir que Juan Antonio Bardem jamais é gratuitamente formalista mesmo que de génio. Nada nessa lógica que não jogo se passa em virtuosismo antes numa possível tradução do afunilamento e da síncope eminente.
A grandeza do cineasta espanhol e do seu fresco ao pecado que assola é fazer esse desmultiplicante mosaico de perturbações e relações acontecer e estourar sempre no centro e na gravidade fulcral e sensível da tela, ainda que sobre espaços tempos não coincidentes. Como nas grandes pinturas e nas grandes sinfonias da desgraça em que tudo isso é centro no centro e das bordas só mais escorregamos para ele. Uma arte verdadeiramente agressiva, concêntrica e abstracta de uma só vez. Pronta para se libertar e fluir em inaudito epílogo.
Paranóia...a figura grotesca, irritável e acriançada de Rafa, o pequeno homem ciumento e afectado que brinca com o fogo em jogos de chantagem perigosos é ali o elemento principal e aterrador de uma espécie de coro à maneira grega que acusa e subjuga constantemente, que os rebaixa e os calca. Os diminui e aflige.
Coro que se vai desmultiplicando e aumentando a temperatura do fogueiro que para eles aquele mundinho se tornou e que atinge cumes nervosos fatais na sequência das sevilhanas, essa dança medonha. Coro aí levado ao máximo expoente e antecâmara da tragédia. Vozes of que comentam mudas pela mascarada...olhares predadores...volúpias em grandes planos cândidos e lúgubres... mise en scène como coreografia aglutinadora de tudo e de todos que até aí espalhou...algo tinha que rebentar e arrebentou mesmo...
O filme a partir daí muda, o par sente-se falsamente seguro ou momentaneamente seguro e vai descobrir a essencialidade da verdade...o amante e professor revê-se em inocências passadas...a amante extraordinária presença buñueliana chamada Lucia Bosé deixa o olhar e a tez inundar-se de sombras e fatalidade...
A decupage torna-se clássica, inteira – salvo num contra-campo já impossível de reconciliação ao marido dela e ao mundo, salvo estilhaçamentos alastradores – límpida e lírica. Lírica porque assenta no tempo que não dura como junto à fogueira sentados e deitados essa beleza que já é mortal.
Composições fogosas e arrebatantes, de tempo contado e solitárias. Erotismo consumido. Erotismo quimérico.
A Câmara torna-se serena e impassível como nas calmas que precedem as tragédias, horríveis pronúncias surdos. Movimentos solenes quase orações.
Os dois iludem-se e decidem entregar-se ou decidem fugir e emancipar-se… Descobre-se o que tantas vezes se descobre em finais de vida: "quando tive tempo não vivi, quando tinha ganas de viver, morri".
E de súbito tão súbito como quanto tudo começou já estamos em paisagem reconhecíveis e prometidas. Paisagens de vidas passadas perduramentos vinganças sabidas. Ali, tão desiludidos nessa impossível beleza zurliniana de céus muitos cinzentos a perder de vista, solos rasos agrestes e desolados e o homem lá para o meio a debater-se a existir a perder-se. Silhuetas cabelos admirares ao vento sobre terminal luz banhados.
Das composições e enquadramentos duros mesmo que obscuros da outra vez que lá estivemos, agora aflitos e desvanecentes como aflita e desvanecente vai ser ela a mulher que perde a cabeça tudo precipita e arrasta. Daqueles assombros iniciáticos tudo só poderia e prometia acabar mal. Há coisas a que se calhar não se escapa nem com o amor nem com todas as fulgurâncias condensadas num todo. Bardem é nesses momentos atroz e acaba com uma imagem bárbara e grotesca de filme b. Terrível transgressão.