segunda-feira, 17 de outubro de 2011

quarta-feira, 12 de outubro de 2011



Vi um filme calmo e incandescente. E por entre essas duas sensações, belo. Senti, entre quadros, ares e arrepios de frio. "Few of Us", como outros filmes de Sharunas Bartas, é uma experiência sensorial, física, mental. Poderia entrar em delírios, e entro, estamos perante um western? No princípio o vazio, comboios, planícies, espaço aberto e rasgado. Depois, uma mulher que vem de longe, não sabemos de onde, nem ela diz, ela e os outros nem falam – lembro-me de "O Homem sem Passado" de Aki Kaurismäki, o movimento é semelhante. Passado, toneladas de passado no lúgubre e taciturno semblante da quela mulher - Yekaterina Golubeva, uma das presenças mais indecifráveis que o cinema guardará memória. Naquele ambiente carregado, sombrio, despovoado, esfíngico, entre as deambulações e os descansos e estranhos bailados que irrompem, vão-se travar duelos, vão aparecer céus avermelhados e de horizonte mitológico como aqueles que sabemos, ela vai dar as costas a uma porta como em "The Searchers" e vai desvanecer-se de destino incerto. Mas poderá ser todo o contrário e Bartas vai recusando qualquer chave cinéfila pela frustração de expectativas, modos, desenlaces. Filme desgraçadamente perdido como as pobres almas que lá andam, que recusa a descoberta de teorias a cada momento, porque quando julgava a ausência de campos-contracampos, lá aparece um quase clássico. A coerência fílmica não existe tanto quanto aparenta e depois de um imenso plano geral, o seguinte pode ser um apertado. Entre o grande e o pequeno, uma fé no rosto que por vezes parece tocar a ordem do sagrado, quase da transcendência, na maneira como estes são filmados e postos em contacto com a desmesura da paisagem, um frente a frente, quase uma não distinção. O mesmo esmero, o mesmo encanto, o mesmo enfeitiçamento por parte de quem olha. Por baixo das caras estão os corpos e estes parecem estar, precisamente como o meio que os envolve, todos mortos, fantasmas de regresso a uma terra que já foi viva e que também parece já existir num qualquer pós apocalipse. Pós humanidade. Nada mexe, a carne está paralisada, o sangue estancou irreversivelmente, os olhares não tem direcção nem brilho. A suposta Sibéria é de cera, a terra, folhas, água, neve, as casas, tudo o resto, encontra-se ente a calcinação e o fóssil. Os animais e os velhos que a recortam também não respiram. Estátuas. O desejo por um corpo nu é frigido. Um tiro é disparado e alguém cai, não tenho certeza se se morre duas vezes. Todo monolítico, marmóreo, eterno. E assim um sopro que nada tem de desespero, sim de apaziguamento. As formas do cinema e o reconhecimento do homem e do mundo para lá de tudo. Porque tudo atrás pode estar errado e afinal estávamos no princípio. Antes do verbo e com uma emoção que não posso reproduzir. Mas emoção. E o sublime nos filmes de Bartas só se dá em plenitude porque tudo o que está nele é belo e dói, qualquer que seja o tempo e o estado.

...

Leos Carax sobre Bartas:

"Le cinéma de Sarunas Bartas a toujours existé, depuis que le monde est monde. Mais nous, où étions-nous passés ?

Le monde est triste, accablant. Les hommes se sabotent, errent et crèvent.

Mais le monde est beau parce qu'il survit, parce qu'il dure.

Oui, le monde est beau même là où rien ne pousse, pourvu que quelques-uns continuent de l'habiter et d'y semer, avec l'audace des désenchantés.

Pourvu qu'un homme et sa caméra soient là, qui le combattent et l'aiment, au-delà du raisonnable."


terça-feira, 11 de outubro de 2011



Ruiz tem esse olhar de inspiração clássica, mesmo que impregnado por algo que ele considera de extrema utilidade, o mau gosto! Ou seja, a vulgaridade, como sublinha. Recorda a de Fassbinder, Schroeter, ou a dos seus próprios filmes mais antigos: "Os meus filmes que estão mais perto do cinema experimental têm sempre elementps populares. O mau gosto é sempre imprescendivál no cinema. Tem de se ter uma atctitude de toureador."

Actual, Expresso

"Il fait de l`autodestruiction, pour filmer comme un cochon on ne peut pas fair mieux que lui. Dans "Nous ne vieillirons pas ensemble", on voit Yanne dans deux scènes qui sont les mêmes. Pialat a tourné les deux en pensant, je garderai la meilleure, et pour faire chier le monde il garde les deux qui sont absolument incompatibles puisque c`est la même action qui recommence. Dan "La Maison des bois", il le fait très souvent."

Jean Eustache

"Malina", Werner Schroeter, 1991

História simples na sua teia absolutamente complexa e oblíqua que só os espelhos finais e as refracções me fazem vacilar. A mulher, estonteante Isabelle Huppert, não sabe se existe. Parece preferir não existir. Procura espelhos para obliterar esse estado. Procura histerias ou absurdos diálogos. Põe-se em perigo. Lança-se ao primeiro abismo que a tenta. Cede aos mais fáceis delírios. Impulsos irreprimíveis. Desdobra-se. Reencarna personalidades outras. Amarra-se em labirintos mentais. Ao presente supostamente imediato submete-se a regressos e avanços. Máquinas do tempo. Fugas e voltas na sua realidade. Tempo suspenso. Só o instante. Uma mulher? Quantas mulheres? Nesse estado, suores frios e infernais. Vómitos. Desmaios. Tonturas. Desfasamentos Demências inexplicáveis. Visões alteradas, duplas, triplas. Imaginação fértil. Desejos vertidos e revertidos. Fronteiras fastasma. Cigarros catarse. Cigarros testemunha. Bofetadas estridentes. Hemorragias a vermelho carregado. Sacrificios. Mutilações interiores. Mutilações exteriores. Ligaduras. Queimaduras. Peles que arrepiam. Entregas ao outro e impossibilidade. Vertigens. Espirais. Loucas profecias. Diabo no corpo e na alma. Anjo ternurento. Dentro do mundo e fora do mundo.

 "Com a minha mão queimada eu escrevo sobre a natureza do fogo." Flaubert, Huppert, Schroeter

Gosto cada vez mais de cineastas porcos. Badalhocos. Que filmem dessa forma. Que captem som dessa forma. Que montem dessa forma. Que modelem a luz dessa forma. Que enquadrem dessa forma. Que façam os actores atravessarem o enquadramento dessa forma. Que cheire mal. Que façam os profissionais da técnica, os professores e todo o género de académicos dizerem que assim é de amador. Que não respeitam os padrões mínimos e seguros de qualidade. Que está uma grande merda. Que haviam de ir para a escola de cinema. Gosto que Schroeter filme à porco. O Fassbinder. Ruiz. Argento. Eustache. Pialat. Carax. Stroheim. Ferrara. Bava. Fulci. Candeias. Todos os restantes irmãos. Proscritos. Dissidentes. Vencidos. Atenção, não falo de porcos como Lars Von Trier ou Desplechin. Nada a ver com o moralmente ofensivo. Prossigo. Contra a higienização imagem/som. Desmascaramento dos supostos radicais de pós-produção.

Equilibristas doentios. Heróis. Contra todos.

Que tudo estilhaçam, mas que tudo fazem vibrar de inauditas visões.
Ao lado do que filma. Justiça poética.

O princípio de "La ville des pirates", o cigarro colado à lente, o plano subjectivo de dentro da boca sobre a dentadura. Assim sucessivamente. Fassbinder e o vulcão essa sede de vulgaridade e melodrama e corpos e tudo. Carax e as danças bélicas e de sexo. Pialat e a câmara que arrasta pelo cenário milhões de quilos de violência. Schroeter, fiquemo-nos no sumptuoso e suicidário "Malina". Filmar com a mão queimada a natureza do fogo. Filmar temperaturas imedíveis. Do além qualquer. Impregnar e perturbar de símbolos e de barroquismos aterradores. Rosas. Velas. Caveiras. Chamas atrás de chamas. Sangue. Sagrado e ultra profano. Distorções ópticas. Escalas devoradoras. Embates fatais. Vermelhos. Amarelos. Azuis. Verdes. Cinzas. Negro. Buracos. Cores quentes. Cores Frias. Tudo misturado. Contra luz que define e extingue. Sons que se atraem. Repelem. Combatem. Confinam. Dilatam. Explodem magnificamente. Libertações operáticas. Trivialidades. Espectros na penumbra. Cadáveres expostos. Vice-versa. Bonecos de fios cortados. Movimentos sedutores e harmónicos. Luxúria. Lasciva. Sexo bruto. Carnalidade. Desejo. Rainhas e putas. Cinemas de bordel e passagem para o outro lado. Bailarinas e pequenos teatros. Crianças ameaçadoras. Na profundidade de campo e a embarrar na câmara. Fendas nos tectos. Escadas cortantes. Quedas eminentes. Céus e horizontes bizarramente pintados. Escalas de planos sem vocabulário. Movimentações de câmara como as deambulações sem rumo. Montagem risco. Essa plasticidade artesanal. Citando Eustache novamente: manifesto pessoal, manifesto individual. O filme é para ele. Tudo faz sentido.

E talvez por isto, pelo amor e pela guerra, "Malina" é sumptuoso e um furioso golpe de revolta.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011


"Nós sempre fazemos o que consideram impossível.
Vamos continuar!"

Vales, colinas e montanhas...alguns precipícios à espreita...o céu como guia, oxigénio, luz ou infinitude que tapa e destapa. A terra nos pés...inevitabilidade. Chuvas, ventos, despojos de toda a ordem, mosquitos que dão sangue ao rosto...pântanos pegajosos de águas sedentas...fogos de supremos desejos de destruição...o homem atravessa tudo e faz-se herói...galga íngremes passagens e realiza caminhadas inauditas com pernas partidas, suores nunca vistos, balas cravadas na carne, óbvias alterações e espírito reinventado. Em "Northwest Passage" o pelotão do Major Rogers tem de ir de um ponto a outro e nesse desconhecido hiato escapar-se aos horrores dos índios e dos inimigos franceses da jovem América. Pequenas pesadas canoas montanha acima como depois no Herzog... esforços sobre-humanos..cordões de homens banhados que tentam suprimir a potência avassaladora dos rios que violam...remadas exaustivas...fome de morte...demências e alucinações...desesperos e uivos...canibalismos e consequentes suicídios..Está claro, há ganhos e perdas, laivos de ternura e actos medonhos. Gestos iniciáticos, regressos de milésimos à infância e recordações de uma mulher...mas também vergonha das vergonhas, racismos e traições, fúrias incontidas, chacinas e holocaustos. Sorrisos e transportes sobre os ombros mas também cara fechada de disparos sem remorsos.

Complexas e ambiguas relações quando se está perante o que deve ser o inferno – vai-se de uma extremidade à outra e já não se sabe a diferença.

O homem também pode desistir e desiste e os que ultrapassam limites.
King Vidor vai ao todo e jamais separa os homens do meio que o envolve, o acaricia, o salva ou o come. O mais ténue suspiro ou um pelotão incontável faz sempre eco singular nas paredes do universo e é preciso sabê-lo, é preciso amarrá-lo. Um todo imenso e o incomensurável fogueiro de dependências, sentimentos, relações mutuas. De modo uno, Vidor jamais construiria e não constrói um único plano vazio, na imensidão deste cosmos que é a terra sempre lá nós presentes. Nem um plano de enfeito ou contemplação, mesmo as casas estão cheias de gente e criação, mesmo os escalpes nas árvores espetados são rastros não só físicos mas de ódio e de violência. Comunhão, aliança, organismo camaleónico - fontes de querelas. Com tamanha condensação, pressão, falta de ar no aparentemente aberto e logo a inteligência dialéctica de que temos o mundo todo e assim a eternidade e a beleza de cada coisa...plano a plano, som a som, movimento a movimento De uma só vez une-se a força humana, a força da natureza e a força da câmara de Vidor, sem separação. Maior elogio às forças telúricas e às forças do cinema é impossível.

Filme em plano sequência, não se corta como o olhar firme não dispersa. Não só de cinema é isto.

Oposto da contradição é que "Northwest Passage" é pois a mais contemplativa das obras e as metáforas enunciadas existem materialmente em cada aparição. Do mínimo que abana ao tremor irreparável tudo é centro ou segredo elíptico.

domingo, 9 de outubro de 2011

"Sangue do meu Sangue" é o pior filme de João Canijo em anos, depois da bruteza de "Mal Nascida", o seu melhor filme. As diferenças são óbvias, porque à câmara que naquele era intransigente e se colava às paredes, aos rostos e à fúria em latência e ebulição dos seus personagens rumo ao paroxismo e à catarse, aqui já é puro virtuosismo, declaração de talento, criatividade. Desapareceu a rugosidade e o visco, impossível não notar a suavidade aqui presente, mal-grado as tangentes dos grandes planos. O que é triste é que Canijo prefere pôr em relevo a sua técnica e mil ideias por plano em vez da habitual uma ou duas que sufocava - os foques e desfoques, o trabalho das lentes e dos zooms e dos carris, em suma, o plano sequência que atrofia o espaço – do que nos mostrar e nos deixar ficar verdadeiramente com os magníficos actores, pelo qual o filme, apesar de tudo, vale. Ou seja: não temos propriamente um gesto singular nem actos de generosidade, longe muito longe disso - como dizem os mais excitados críticos - sim um testemunho ou lição de gosto de como o cineasta conhece e trata por tu diversas geografias e modos de fazer como Hsiao-hsien Hou, Brillante Mendoza, Assayas, os cineastas de bairro e do of, Cassavetes, Leight...À preciosa distância desses anteriores filmes, uma inconsequente fascinação pelas superfícies, que podem ser passar por um corpo sem lhe sentir o pulso ou maravilhar-se com os brilhos e as transparências de certos materiais.


Portanto as nojentas cenas de sexo e de violação são apenas o culminar lógico do rolo compressor de uma mise en scène que engole tudo nos seus riquíssimos e sofisticadíssimos meios. Tanto barulho, como as supostas "cenas inovadoras de slogan" dos enquadramentos com mais do que uma cena a passar-se, para um pobre conclusão: tenta-se imitar e viver e captar a vida dos simples e o ego do artista passa por cima sem dó nem piedade. Faz falta a pobreza dos cineastas pobres sem vícios do social e da imitação. Fica a boca aberta da obstinação, como na publicidade que ainda outro dia passava na televisão ou antes da grande tela abrir.