sexta-feira, 11 de maio de 2018



«A screaming comes across the sky. It has happened before, but there is nothing to compare it to now.», Gravity's Rainbow, 1973

“Brewster McCloud” é um filme (um bólide, um naco de solidão purificadora) que combate a realidade virtual. Que combate essa imersão num suposto universo absoluto que tanto simula (e dispensa fisicamente, e ridiculariza) o sexo como as Cataratas do Niágara. Brewster McCloud, o miúdo que sonha construir umas asas para voar, não conhece o sexo nem o medo da morte, por isso só quando cai no abismo deles é que concretiza o tal sonho dos sonhos. Todo este cosmos é mecânico, analógico, mítico, pó, sendo Brewster McCloud um Ícaro nessa verdade suja e crua dos filmes para pegar ou largar de Altman; sendo ainda um novo Jesus Cristo que ignora o petróleo no Texas, cordeiro sem pecado, marioneta sem controle da gravidade e do próximo passo. E como não conhece o pecado, não hesita em fazer pactos com anjos e demónios de uma Galileia longínqua em forma de mulher fatal; não hesita em estrangular quem pouco mais merece do que isso; nem em rodear-se de ecos dos loucos que antes dele se perderam pelo sonho dos sonhos.

Quem entra numa qualquer Fnac num qualquer centro comercial do Texas ou de Lisboa é comido por toda a gama de tentações e de abutres que vão substituir uma ida à lua ou um banho no Rio Amazonas (via um Gear SM-R325 + comando por 99,99 € na promoção de Maio 2018); também Brewster McCloud, em plenos anos de Vietname, de Cassius Clay ou de Thomas Pynchon, de paranóias difusas e de desejos de libertação puramente americanos, teve no seu raio de acção e na sua respiração todas as figuras demenciais que iriam parar aos caldeirões infernais de Dante ou seriam trituradas nas bandas-desenhadas do Capitão América; mas como não tinha acesso permitido ao reino das sombras, não conseguia agarrar a luz divina dos céus que vislumbrava no sono. E foi preciso sair do Éden, ignorá-lo, foder, morrer, usar das cagadelas dos mil pássaros que por ali passam, para atingir o Olimpo.

Quando se entregou nu à carne e a sua sublime figura de castração bazou desse jardim de aço tão belo como infecto do estádio de basebol ou do circo – a saída de Sally Kellerman do sódio artificial para o sol natural que queima lá fora na sua última aparição é o cúmulo da arte de Altman que combina o café rasca do uncle sam e os polémicos de saborosos donuts com o plano-sequência parente de Ingmar Bergman que aglutina tudo, degredo e pureza seja onde for e como for – conseguiu voar; olhou para uma ave rara mas já comida e corrompida pelo social - Shelley Duvall já pronta para o bisturi de Stanley Kubrick – e mergulhou de cabeça para fora da prisão na qual certos humanos estão condenados e sossegados permanentemente.

No início, o verbo, e Goethe: «Como ansiei atirar-me no espaço infinito e flutuar sobre o terrível abismo.» Na saída, as vísceras, e poderia ser R. Kelly, I believe I can fly, Ícaro da pop, da pulp, ou da NBA dos voos potáveis e suicidas. O que Brewster McCloud e a má educação ou limpeza (ampliação) de Altman nos prometem, ou nos fornecem o atalho, o short-cut, é a verdadeira imersão na experiência derradeira, em que todo o caminho conta, as coisas correm sempre da maneira como correm e não suspensas no simulacro, unindo os fios e os estilhaços dos percursos, dos espaços e dos tempos díspares, perdendo as trevas a almejada veste a evitar e a pureza o bem primário; o que todo este freak show aponta e entrega, escancara generosamente, é ao ridículo do temor da única coisa prometida à condição humana, passados séculos e séculos do Ámen; aponta ainda o dedo à vergonha e culpa da entrega ao desconhecido, que são os sonhos, e a assunção (transgressão) do impossível.

Altman, no seu melhor e no seu pior, é um cineasta ridículo por isso mesmo, e tão claro como descritivo – tudo se pode ficar a conhecer de uma Houston dos foguetões e de uma América embrutecida nesta amálgama pastosa como pepsi, tudo pode ser desconstruído, inclusive o heroísmo do lendário detective Frank Shaft; mesmo o carinho pode aparecer da loucura - como ainda universal e minúsculo: é só um filme sobre um desejo infantil apátrida cumprido depois de se atravessar e desafiar o vale de todas as sombras. Um filme para rebentar com os leds 4k ou os S9 das ditas experiências totais e totalitárias (2018, neste momento já desactualizadas) que dispensam o sexo e nos mostram a morte panorâmica em Ultra-Resolução.

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