"The Last Day of Leonard Cohen in Hydra", Mário Fernandes, 2018
E
aqui está mais uma estreia de um filme de Mário Fernandes na
Cinemateca Portuguesa, o que tem significado, quase sempre, uma
oportunidade única para os ver – one shot. Esperemos que
desta vez alguém atento e merecedor consiga convencer o realizador a
levar este filme longínquo para outras paragens. Muitos ainda nos
lembramos do seu magnum opus que estreou nesta catedral em
2011 e que voltou a passar recentemente num ciclo dedicado aos
“novos” do cinema Português, Lost West. É um western
de quase três horas que de uma só vez abarca todas as
variações desse género pioneiro – dos clássicos americanos de
John Ford até ao estertor de Sam Peckinpah passando pelos spaghetti
e seus sucedâneos - sendo na mesma medida uma radiografia à
passagem devastadora de uma grande corporativa pelas minas da região
do Fundão e mais abrangentemente da Beira Baixa, com uma clareza
documental impressionante, carta de amor a essa terra que é a sua e
um filme de amigos. Amigos que continuariam a trabalhar nos filmes
seguintes, atrás e à frente da câmara, nos argumentos ou na
montagem. O Debate da Loucura e do Amor, de 2012, partiu de
Louise Labé para se tornar numa luta entre a imagem, o som, e o
movimento confinado dos corpos num espaço bem definido, desafiando
todas as durações e sincronias. Logo no ano seguinte, mais um gesto
passional, desta feita ao Bob Dylan das Beiras, em Jerónimo, como
é que vais?, outra vez um cowboy, livre e inadaptado,
fiel demais, numa obra que volta a violentar todos os géneros e
formatos – misturando a biografia, o musical, o road-movie, o
digital, vhs, ecrãs panorâmicos e caseiros, etc. - com um único
alvo: a emoção e a verdade daquele ser. Mais recentemente, já em
2016, colocou um recepcionista anárquico e obcecado pelo escritor
inglês do século XVIII Henry Fielding num hostel lisboeta de baixo
custo para meter na linha quem o merece e favorecer os
desfavorecidos, a preto e branco e com um tipo de humor mais negro e
logo realista do que os cedros do cemitério para onde o Pastor da
Noite se dirige nas suas folgas. Feito o apanhado, e descontando
as suas co-realizações, vamos ver The Last Day of Leonard Cohen
in Hydra, que novamente não vai corresponder ao esperado nem às
expectativas, numa atitude e num trabalho que é menos experimental –
modelo já completamente viciado e académico e que hoje em dia vai
correspondendo ao anunciado nas sinopses e na imprensa – e que tem
tudo a ver com a aventura, com o desbravar terreno, neste caso,
captar, perseguir, transfigurar, reter a luz em questão.
Dedicado
a Leonard Cohen e a Marianne Ihlen, logo tudo nos remete para o
conhecido tempo em que o cantor e poeta viveu na ilha de Hidra, na
Grécia, com a sua companheira, uma vida de outrora ainda não
esquecida, amada, que vive na espinha, a amante e uma criança, os
dias de ternura, as lágrimas e a nostalgia... coisas que são ditas
pela própria voz de Cohen, num genérico a negro mas já cheio de
imagens e de sentidos, poéticos e concretos, que serve igualmente
para traçar os mais diversos caminhos, abrindo secretas fendas no
solo conhecido dos filmes (ou no modernismo) e cavando narrativas que
vão aglutinar ou conciliar, por exemplo, versos de Paul Valéry, a
voz de Ray Charles, de Marta Ramos e de Loukia Batsi, a mitologia
Helénica e as subtis referências à nossa cultura e envergadura
tuga.
Uma
narrativa detectivesca de um Philip Marlowe apátrida obcecado com o
retrato de alguém que um dia lhe calhou em sorte num caso talvez
indesvendável que o levou aos confins de um mundo? A claridade e
essa luz diáfana de um país em que cada coisa é trazida à luz
/ trazida à liberdade da luz / trazida ao espanto da luz,
segundo Sophia de Mello Breyner? Assim, esse homem destroçado
encarnado por Rui Pelejão – também não muito longe do cowboy
no fim da linha de Lost West e dessas deambulações eternas –
vai perguntando a uma fotografia, a uma imagem fixa, Quem és tu?,
afirmando e suplicando Vim à tua procura, apaixonando-se por
ela, pedaço inanimado e inorgânico em lenta combustão que irá
ressuscitar precisamente através da luz e das sombras, do sol e do
ar límpidos e únicos que puxaram esse corpo vestido com calções
portugueses e de feitios próximos à literatura e ao universo pulp
para o cosmos estatuário e mítico de um absoluto em que esse
milagre se torna possível. Quando a imagem se torna movente, nesses
belíssimos quadros em que é preciso pedras para a segurar das
forças intempestivas do vento e do fogo solar, ou em que ela surge
emoldurada e numa comunhão, fazendo mesmo corpo com os malmequeres
amarelos (também remotamente conhecidos como flor-das-almas) que são
como estrelas num céu, flores prestes a devorar a noite, começa a
ser possível deixar partir para sempre essa memória, uma memória,
um inaudível murmúrio que talvez tenha sido tudo – Amo-te,
amo-te – que talvez tenha sido a ilusão das ilusões, a
assunção de uma natureza condenada a errar, como na letra de Ray
Charles ou como o plano final, todo o mar, toda a terra e todo o
firmamento abertos.
Entre
mulheres suas semelhantes que escrevem cartas em penedos nas águas
celestes da ilha e mulheres que utilizam essa claridade também lunar
e cegante para ler, passando por rituais mágicos e jogos de azar e
sorte, duelos contra o vento e contra si mesmo em arenas despovoadas
aonde todos os ecos são possíveis, sobretudo os da alma, talvez a
opção de não utilização de som-directo em preferência por uma
voz-off de diálogo interior – para lá do óbvio monólogo,
diálogo com todas as coisas que o cercam e díspares – surja como
natural. A questão da esfinge, da miragem e da quimera, de um
paraíso possível e perfeito sempre fugidio como a medida e condição
do horizonte, bem como as tangentes a esse paracinema e a uma
metafísica funesta da imagem e da memória que uma certa Hollywood
meteu em primeiro plano (Laura, de Otto Preminger e seus
derivados) reenvia-nos muitas vezes à potência do cinema mudo, da
hiperbolização da imagem e da sua composição, das passagens
ambíguas entre a treva e o dia, do primado da imaginação, da
fantasia, da feérie, ao invés da descrição e do sublinhado
que o som “normal” pode trazer como armadilha. Na primeira vez
que o detective (talvez seja óbvio que ele é um escritor, mas nos
bons e velhos tempos todos os grandes escritores eram detectives, à
maneira de Truman Capote ou de Samuel Fuller) se senta a uma mesa
para escrever à máquina e para beber whisky, não é imediatamente
que o notamos lá fora na janela e no negro da noite, antes vai-nos
sendo revelado pelo lume de uma vela, dessas velas que descarnam a
noite num filme ou iluminado por elas ou pelo sistema solar, pelo
branco da camisa que tenta que o corpo não desapareça e pelo
cigarro. A entrada em cena é assim modulada em minúsculas gradações
que recuperam uma certa hipnose puramente cinematográfica que o
digital tem vindo a limpar e a higienizar.
Tudo
se parece passar realmente num único dia, como nos diz o título, no
último dia. E numa luta e numa tensão primordiais. Uma luta entre a
incandescência e o fogo com a claridade e a água. Nunca se sabendo
quais destes representa o negro, a consumição. Não é seguro que
seja o fogo a devorar o que há para devorar e que o branco
signifique a alvorada e o recomeço. Estamos no princípio da tensão.
Nada é preto no branco e o entrelaçamento, a comunhão e a ruptura
são a matéria principal e em causa deste abismo; que tal como a
voz-off e toda a musicalidade intrínseca, a partir de um
certo ponto, algures naquela floresta de símbolos, se volve
sonoridade concreta, parecendo, como por golpes mágicos ou naturais,
pertencer à imagem e à sua envolvência, cinema puramente sonoro. O
resto é um mistério, ou sem história ou com as histórias de todos
os seres que amaram e destroçaram algo por uma educação no mundo,
é a impossível combinação do policial sem pais nem filhos do
Professione: reporter de Michelangelo Antonioni com o lento
cerimonial de Sergio Leone aparentemente contradicto pela lembrança
de F.W. Murnau. Mais uma vez, vamos estar aonde nunca pensamos.
Mudo... Sou o mesmo... Mudo... Sou o mesmo...
José Oliveira
[folha de sala para a ante-estreia do filme na Cinemateca Portuguesa, 23/05/2018]
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