sexta-feira, 18 de janeiro de 2019



Hell or High Water, David Mackenzie, 2016


A pequena história no Oeste do Texas ainda continua a ser a mesma do antigamente, com outro tipo de verniz e de fatiota. Continuam-se a saltear os bancos de rompante e com o mesmo tipo de estratégia das brincadeiras marotas das crianças. Os ancestrais tiveram de se adaptar e de não fazer grande escarcel perante a altivez de quem se acha dono daquilo tudo desde o princípio. Os que saltaram do outro lado da fronteira terão literalmente de engolir isso até ao fim dos dias. Os chapéus de abas duras dos cowboys roubam qualquer tipo de protagonismo ou vida à pele tisnada e às tranças. Os índios permanecem um sussurro longínquo, um vento por entre as ervas do deserto que permanecerá. Na mitologia do velho território americano no qual se aprendeu que vale tudo e os petizes estão à sombra da forca desde o berço, estupefactos e assombrados, o que foi há muito posto em marcha jamais será apagado, para o bem e para o mal. A memória e a culpa persistem, o ódio e a violência de igual modo.

A inteligência e a constatação do “Hell or High Water” de 2016 começou no argumentista Taylor Sheridan, o mesmo que descreveu a grande história da guerra presente, portanto, a oficial dos cartéis de drogas na saga “Sicario”. Sheridan percebeu que no meio do inferno mediático, ou nascente dele, prevalece na sombra e nos cantos esconsos a faca e alguidar dos ajustes de contas, da ganância mesquinha, desse terreno que o tradutor e escritor português Paulo Faria descreveu como «uma feira de diversões, um lugar mágico e sem freio onde quase tudo se torna possível e do chão tanto brotam sonhos mutilados como petróleo.» Emboscadas ao topo dos montes e esperas de caçadeira na mão. Um frente a frente e a dignidade do mais fraco no cenário de papelão do casino que deriva directamente das catedrais de “Cheyenne Autumn” de Ford.

O grande e o pequeno, dependentes, numa América que não vai percebendo a necessidade de insistir na cura da ferida original. Aqui temos o irmão mau e o irmão bom, aquele que percebe que a sua natureza é para ser respeitada a ferro e fogo e o que procura a redenção. O vislumbre do nada na personagem do xerife de Jeff Bridges. A família e a solidão. Todo o emaranhado destas relações nos provam da fundura da patologia. Para se acabar com a grande guerra tem de se começar na porta do vizinho.

Pequenas histórias, que o realizador teve a ousadia, e também a sensibilidade partilhada com Sheridan, de tratar com a pequena forma. O plano de abertura é sintomático, troca o gratuito pelo lógico, a câmara a vogar mede a temperatura e a tensão do caso, para se ficar a perceber sem margem para dúvidas da natureza animalesca dos protagonistas, actuando conforme. Aqueles miúdos são os mesmos que empurram o escorpião para as formigas na introdução de “The Wild Bunch”, numa culpa ou numa relativização dela que os precede e os diluí naquele cosmos. A partir daí os planos belíssimos e ameaçados de David Mackenzie formam-se por esse rastro, esse rastilho perigoso que se acendeu mais uma vez no oeste do Texas e que chega até qualquer lugar do país e do mundo.

Tudo convergirá naturalmente para a redenção impossível, utópica, os sonhos e o seu mutilamento. A personagem do irmão mais novo é para onde todas as contradições e energias concorrem, um homem que fez o que parece ser o certo, garantiu o futuro aos filhos e à ex-mulher, mas para sempre encalacrado entre as brincadeiras a sério e as brincadeiras condenadas com o irmão que presenciamos ao longo do filme – por lá ainda podemos detectar a semente do futuro, como a empregada que namoriscou e safou o irmão bom, o filho deste que com certeza entrará na universidade e jogará muito futebol, o amor não dito entre os dois agentes da lei. No final assume-se, obrigatoriamente, a geometria do western, e Mackenzie enquadra o velho e o novo na posição de duelo, prometendo um próximo capítulo. Perpétua inconclusão. A pequena forma, o terrível que se tornou banal, ali na casa ao lado, it will go on and on…

“Hell or High Water” é o western clássico, o estilhaçado e os nossos dias em corpo presente.

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