O Movimento das Coisas, concretizado entre 1978 e 1985, nunca chegou a
estrear comercialmente em Portugal. Manuela Serra, a realizadora, faz parte de
um grupo muito estrito no mundo do cinema, ao lado de nomes como Charles
Laughton, Barbara Loden, Peter Lorre ou Marlon Brando, entre outros muito
raros, por demais corajosos. Ou seja, assinou só um filme, mas tocou em tudo o
que importa no Cinema como na Vida, matéria e espírito – «um filme que vale
por muitas vidas e múltiplos filmes» disse recentemente uma jovem
admiradora a Manuela Serra na sessão de apresentação da cópia restaurada na
Cinemateca Portuguesa. A história é conhecida por alguns: depois do 25 de Abril
e na febre de liberdade e de cooperativas que pudessem alcançar e manejar tal
sede, Manuela Serra, sempre valente, meteu-se num automóvel e, depois de tentar
o Sul, os Centros e outras latitudes, foi parar ao Norte a conselho de uma sua
conhecida antropóloga chamada Carol, encontrando o seu Paraíso numa pequena
terra encravada entre Braga, Ponte de Lima e Viana do Castelo.
Lanheses, assim se
chama esse Paraíso Perdido em relação ao caos do nosso dia-a-dia que aprendemos
a abraçar como habitual, encerra ainda hoje uma beleza original que parece
conservada desde os inícios da criação, e Manuela obteve-a imediatamente e em
estado de graça por uma limpidez de aproximação e de olhar que todos os
segredos e essências lhe retribuiu. Lanheses aparece na tela como lugar de
beleza desmesurada, carregada de tempo sem tempo, espaço para todos os
encantamentos e harmonias, numa abstração sem idade. Toda a inocência, as
brumas e as águas densas e claras, os sentimentos e sentidos belos que inundam
o filme, não são criação e forçamento da maquinaria, imaginação ou da técnica
do cinema, mas estão lá, de raiz, emergindo em abundância numa única e
fulgurante comunhão entre o que se filma e como se filma, quem representa e
quem apreende, natureza e intenção. Para quem, como eu, nasceu e cresceu nessa
zona, a experiência é de absoluta fidelidade e novidade, as coisas vistas e
escutadas de muito perto ou de muito longe, olhadas como eu as conheço e como
nunca as vi, tão nítidas ou finalmente libertas das ideias feitas ou do
fenómeno das coisas. Lembro-me de a minha mãe cantar a música popular A
Chibinha na cozinha ou a cortar feno, mas quando ela aparece no filme tudo
se volve união estelar, transfiguração e catarse.
De onde não faz qualquer sentido as imemoriais e gastas fórmulas que
separam documentos e ficção, quem manda e quem obedece, o ponto de vista e a
ontologia. Existem e até abundam os chamados zooms, que jamais são
facilitismo ou figura de estilo televisiva, mas antes lenta aproximação e
confluência ao coração das coisas e dos seres, num maravilhamento mútuo. Temos
a sedutora flauta de José Mário Branco, mas esta nunca embala aleatoriamente
movimentações ou efeitos básicos à maneira de muitos videoclipes
posteriores que se fizeram passar por documentários puros, antes faz corpo com
o que medra e floresce. Medra, nasce, respira, assim mesmo, num movimento
criador, recém-nascido, bruto, quase monstruoso e por vezes monstruoso mesmo –
eis a mise en scène que esteve lá sempre antes do Cinema.
Consanguinidade e reconhecimento – a câmara estará sempre onde deve estar, a
lente a ínfimos centímetros da coisa amada ou a quinhentos metros do degredo, o
passarinho cantará no momento devido, a Mulher embalará o bebé ao som ancestral
da desfolhada.
Movimento e tempo, é isto que vai desde a presença no ventre até à infinita
eternidade - O Movimento das Coisas é composto por três dias, e
acompanha outras tantas famílias em comunhão e em trabalho, mas todas as
auroras e crepúsculos, pequenos-almoços e deitares, uniões e contendas,
atrações e estertores, só estão assentes no presente e a ele apelam. Presente
finalmente absoluto e puro, contendo todo o espectro. Contemplação, mas não
essa do “documentário pelo documentário” que cede ao vácuo ou à simples
curiosidade, antes contemplação que se admira e extasia no constante irromper e
surpresa das coisas aparentes e ocultas. Muitos, entre os quais João Bénard da
Costa – o maior entre os maiores e um dos poucos que separou imediatamente o
trigo do joio – comparam o filme de Manuel Serra a António Reis e Margarida
Cordeiro, outros aproximaram-no a António Campos, mas todas estas explosões e
acalmias cósmicas que se centram, descentram, ordenam e reordenam estão tão
longe do hieratismo místico e sacro de Reis/Cordeiro como da etnografia
profunda de Campos, comunicando com eles numa postura ética que jamais olha os
seres e o mundo superiormente, bela ilha humanista iluminada pelo mesmo sol de
todos os superiores criadores.
Mas Manuela Serra e a sua equipa dominam totalmente a técnica e não fogem
às grandes questões existenciais. A força telúrica e queimante dos
elementos em relação com uma montagem criadora de significações e avisos ao
Homem e à evolução – basta referir, entre muitos outros momentos, a contenda
Cristã do pecado em alternância com as águas purificantes do rio; os motores
furiosos de carroçarias várias contra as vacas e as feiras antigas ou a maçã
podre dessa infernal Fábrica que tanto ameaça (e que nesta versão surge como cancro maligno fulminante, Caos e
Pandemónio e Inferno a alastrar ao Paraíso resguardado, num novo plano final
tão desesperado como lúcido que Manuela Serra foi resgatar às bobinas guardadas
em sua casa durante décadas) – alcança uma transfiguração
superior, de onde a Poesia sem amarras enlaça com as amarras da nossa ambição.
Uma montagem fortemente poética e fortemente política seguindo todas as lições
de Eisenstein mas não se rebaixando a nada.
Poesia, emoção derradeira e a única que pode caber na extrema simplicidade
e complexidade desta obra total, indefinição para lá de todas as considerações
ou análises exatas. Total e a todo o momento possuidora da fragilidade e da
sensibilidade mais imediata ou subterrânea a cada um de nós. Renascimentos,
ciclos, mutações, rotações, translações, medo, o efémero junto com o
inabalável, é o movimento das coisas, sem trocadilho ou ironia. Se somos
lavados e purificados por uma brisa inaudita, também sentimos perigos e ameaças
de que convém desconfiar, sem legendas ou gritos mas ao canto do olho – é esta
subtileza e inteligência que distingue esta obra dos seus semelhantes das
cooperativas de cinema. Manuela Serra jamais espetaria uma voz-off por cima de
um camponês sem voz a tecer considerandos sobre taxas de alfabetização ou de
doenças mentais como num filme cooperativista desses anos que felizmente me
escapa o título.
O Movimento das Coisas, nunca estreado em Portugal e com poucas mas
assinaláveis projeções lá fora, nunca teve grandes hipóteses por tal convocação
e presença de Cosmos, tamanha ousadia de uma jovem cineasta que tanto dialogou
com ordens e leis naturais absolutas como apagou todas as demagogias que a
liberdade pós 25 de Abril permitiu a artistas e intelectuais. Se nenhum dos
cineastas dessa época, da seguinte ou da de agora, ultrapassou o que aqui se
alcançou de graça na feitura – milagre da dádiva e da recompensa das mãos
vazias e humildes – para se pagar inumanamente depois – tanta beleza e
genuinidade cegou e trouxe ao de cima o pior da raça, o nojo da vaidade e da
dor de cotovelo, a cobardia de quem teve de travar de modo fascista essas
constelações que bailam e cintilam além cinema – Manuela Serra relembrou na já
referida sessão da cinemateca o comentário final de um dos responsáveis do
centro de cinema da época que ditou a não exibição comercial do filme: «se a
RTP compra tanta merda pode ser que também compre isto» - caso fechado
por um dos Homens do poder espezinhante à época.
Percebendo que o génio essencial está na natureza, esse corpo orgânico e vertebrador
contra o qual nada podemos, e no qual metafísicas e religioso fazem parte
indestrinçável, Manuel Serra usou os seus meios com a serenidade e intensidade
de David W. Griffith ou Robert Flaherty, erigindo um cosmos cinematográfico a
partir de um cosmos natural, uma catedral ao meio onde cada cintilação comporta
o toque criador, uma possibilidade e demonstração prática da harmonia com o
humano, eletricidade em diálogo com o fogo, seiva a corrigir os fumos. Génio da
natura, não pretensão de artista. Outono Peckinpahniano (as folhas
vermelhas e amarelas e caducas, a palha e o Trigo (milho, castanhas, leite)
líricos de fim de estação) unido ao mundo inaugural de How Green Was My
Valley (neblinas e águas espelhadas, as danças circulares e gravíticas das
celebrações primordiais, a organização familiar na mesa do pão e do vinho
sagrados), tudo se une e reúne, fim e começo, passando-se pelo
mundo e pelas coisas e deixando testemunho do que foi e do que já não é ou pode
deixar de ser brevemente. A revelação e a morte, a morte e a revelação, em
ciclos anelares naturais, que não são cinefilia mas visão do mundo e poesia
heroica livre.
Em 2014, num regresso a Lanheses de Manuela Serra 35 anos depois de lá ter
acabado as filmagens, quem a acompanhou percebeu imediatamente que esse mundo a
que alguns chamam rural (prefiro ancestral) poderia ter sido mantido e
expandido apesar da dita Evolução e que essa evidência impressa no filme é o
reflexo da grandeza do homem para com as verdades primeiras. Grandeza igual à
das grandes Mães e Avós, nossas ou de John Ford ou António Reis e Margarida
Cordeiro, Mães que nos transmitiram de forma simples, genuína e generosa as
lições dos livros épicos ou bíblicos, objetos artísticos e afins. Dureza e
carinho, toda a ternura como toda a severidade, não existindo uma sem a outra,
correspondências exatas onde um beijo ou um berro querem dizer rigorosamente a
mesma coisa. Manuela Serra percebeu e captou todo o movimento das coisas rurais
e universais. As coisas, movimentos ou temperaturas, como as pessoas, ou são ou
não são, e no final da exibição de O Movimento das Coisas para o povo de
Lanheses, 35 anos depois, as crianças e alguns jovens continuavam vivos, outros
mais antigos já apenas o estavam em espírito, e mal se acenderam as luzes uma
mulher que no filme era uma criança chegou-se ao pé da realizadora e disse-lhe:
«Obrigado por me ter mostrado que afinal tive uma infância feliz». Esta
frase dilacerante dita pela menina que no filme brinca e rebola na terra, 35
anos antes, sintetiza o milagre do cinema quando disponível para abarcar todo o
tempo e toda a memória, máquina de registo, de ressurreição e de felicidade.
Grandeza de uma cineasta que se tornou um deles, retirando não representações
de atores mas essa nobreza de quem continua a trabalhar e a viver plenamente e
sem ilusões apesar do aparato efémero do cinema.
O tempo passa e em passar consiste, escreveu Ruy Belo, e Manuela Serra não
teve direito a uma carreira no cinema porque quem mandava lhe cortou as pernas
e a vontade. Mas tal como os toureadores de Andaluzia se mantêm toda a vida
toureadores mesmo que só o façam uma só vez ou estejam reformados, tal como
certos pescadores o são mesmo que o mar tenha secado, Manuela Serra é Cinema,
mesmo antes de ser realizadora profissional, e na correção de cor digital feita
agora lembrou-se de cada cor específica do rolo original, de cada temperatura
de cor, de cada som enterrado, de cada grão de areia, dos cortes exatos e não
exatos, dos agudos da música do Zé Mário na banda-sonora que foram discutidos
com a Marta Ramos em pleno ato de reinvenção, de tudo. Já depois do processo
estar concluído telefonou para os estúdios pois lembrou-se que ao entrarmos na
igreja existia um tom azulado que na altura não deu para ser corrigido mas que
agora seria possível, e foi. O Movimento das Coisas foi tudo para uma
realizadora, questão de vida ou de morte onde ela perdeu uma carreira mas
ganhou a eternidade, e hoje em dia cinéfilos e gente simples de todo o mundo
descobre estupefata o filme e escreve-lhe cartas, vencendo o azedume e
estupidez da sua época.
E de certeza que a mais delicada e bonita jovem deste filme para sempre jovem e prevenido, essa Isabel que a dado momento do filme se junta às grandes Vênus e Maddonas da pintura renascentista na limpeza de joelhos do chão de casa, que morreu na conclusão do projeto (uma das causas para que o filme demorasse 35 anos a lá voltar pronto), e que de lá de cima, do Reino dos Céus, morada de Deuses, está com certeza a esboçar o mais cristalino dos sorrisos. Que se continue a descobrir e a redescobrir O Movimento das Coisas, a rever e a experimentar iniciaticamente, confortado e virgem, esta obra, verdadeiramente infinita e, finalmente, sublime, prolongando o Paraíso. Que chegue aos recônditos cineclubes que durante anos pediram uma cópia para exibição depois de terem ficado extasiados com a pobre amostra que estava no Youtube, que flutue nas aldeias sedentas de filmes novíssimos. E que regresse o tempo em que se façam sopas com tempo e se as comam com toda a disponibilidade, trazidas à bomba da gasolina pela amada com a bênção do padre ou à mesa familiar em tom humanista e picaresco. Tudo faz parte de tudo, do infinitamente pequeno ao infinitamente grande.
José Oliveira
Co-realizador de 35 anos depois, O movimento das coisas
[Texto publicado no suplemento ípsilon do jornal Público no dia 18 de Junho de 2021:
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