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The Smashing Machine: The Life and Times of Extreme Fighter Mark Kerr, de John Hyams, 2002
«desculpa-me pelo que te acabei de fazer…», sempre que se escuta
e sempre que não se diz no filme de John Hyams sobre Mark Kerr.
Em THE SMASHING MACHINE: THE LIFE AND TIMES OF EXTREME
FIGHTER MARK KERR a máxima ação é pura contemplação, e assim temos um filme na
senda de Sam Fuller ou de James Cameron, puramente observacional e omnívoro, de
um pudor eletrizante e mais do que carnento, montado segundo os ritmos da
respiração e do coração. Aqui a câmara de filmar é uma faca-afiada que participa
na matança (muito mais do medo de viver do que do Outro), mas também um abraço terno
como a magnífica irmandade entre todos os que se desfazem e esmagam na profissão
que escolherem por chamamento irrecusável.
Irmandade, ternura, educação, amor, compaixão, as palavras
não ajudam para falar dos seres brutais que acompanhamos ao lado do príncipe Kerr,
mas a forma como John Hyams reverte e transfigura a barulheira e o espetáculo máximos
num fundo silêncio plangente e numa reza superior será imediatamente entendida
e sentida por quem se disponibilizar. Todos são príncipes e princesas e não há
tribunais de acusação nem de defesa.
Não há julgamentos terrenos mas sim coragem, desabafos cósmicos
mas sussurrados, resistência à pressão inata da vida, assunção categórica das
demandas e das escolhas, a brutalidade de viver, a brutalidade e o poder da
aceitação. Como é que se pode fazer um filme empático sobre um homem que desfaz
rostos dentro de um ringue, perguntou-se no último festival de Veneza por causa
do remake ficcional (?) tecido por Ben Safdie. Porque é a via mais pedregosa,
salvífica, emaranhada, e, no instante quase invisível, verdadeira.
Veja-se a sequência final e crística de um derrotado Kerr a
ser cosido no queixo em paralelo com a luta que já não é dele. Luta da vida e
luta do ringue são um, mesmo para além daquele mundo, e todas as pessoas podem
caber ali: sonhos desfeitos por culpa própria que não é culpa mas sim
consequência da condição puramente humana e logo frágil, solidão intransmissível,
jamais obliterada, só ilusoriamente partilhada, e o que importa: resistir, regenerar-se
na essência fundadora, e que está na legenda final e no filme de Safdie.
Fuller, Cameron, Fred Wiseman, mas também Georges Bernanos, São Francisco de Assis ou Liev Tolstói – incomensuráveis sentimentos simples, cristalinos, e incomensurável perdão. Um chão celeste.
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