domingo, 23 de maio de 2010


Ainda mais estilhaçado, sujo, porco, anarquista e amador do que o filme de Pennebaker para Dylan é o “Cocksucker Blues” – de Robert Frank sobre o universo dos Rolling Stone's.

Lá dentro parece não se dizer nada que interesse por ai além, há sexo, putas, drogas de vários tipos, delírios, muita obscenidade e até desejo de choque, um negativo de “Don''t Look Back”? nada disso, não perpassa por ali réstia de promoção, de publicidade, de deslumbramento pelo universo das estrelas. Carne, ossos e desejos, muitos desejos, ao invés da habitual intocabilidade e sacralidade. Aqui como ali, temos é um portentoso desejo de registo de um modo de viver e de criar, o que é, ou deveria ser, a mesma coisa. Um camaleonismo em relação ao fundo.
O grande rasgo do filme, o espelho que corta todos os jogos de espelhos e distorções: somos colocados no interior e vórtice desse mundo “exclusivo” e o que acontece é um processo progressivo de descarnação e humanidade, em que acedemos à fragilidade, solidão e pulsões recônditas do que julgávamos inacessível.
O alcançar de uma imagem una no meio da multiplicidade e dilaceração de imagens, ou vice-versa, é também essa a densidade e complexificação.
Passeia-se por lá Andy Warhol, é milagre de sentido, esse desvendar de sensibilidade e de exposição, esse gesto de apontar a câmara de frente e deixar correr, sem premeditação, só depois dele pôde ser visto e arriscado.
Porque trata-se mesmo é de captar um universo “aparte”, um microcosmos outro com os seus gestos e meios, independente e libertário. E o que fascina é que a missão de Frank, como a de Pennebaker, é agarrar justamente isso, fazer disso o centro e razão de ser do filme, nada mais. Por aqui parece haver pelo menos sombra de dispositivo ou de "conceito", ou seja, é o operador de câmara que aparece, é o homem do som, são elas e eles que se dirigem à câmara e ao microfone, filmagens dentro da filmagem, enfim, uma maior consciência. Mas a coisa vacila e a certa altura não sabemos é quem são os mais malucos, se os Stones, se o cineasta e a sua equipa. Frank parece um desprendido demiurgo, também ele sobre o efeito voraz e alucinante da coca, tudo o que está lá, que rodeia os Stones e o resto, cada pessoa, cada objecto e cada ambiente parece interessar-lhe por inteiro, espécie de Cecil B. de Mille do rock com a atitude, o comportamento e a responsabilidade de um outlaw romântico e delicado.

Temos uma experiência, sentimo-nos testemunhas e dentro de alguma coisa, é por isso que a pele arrepia e os olhos estão constantemente abertos numa curiosidade vertiginosa. Porque assim e com este fogo alastrador só existiu desta vez.


Televisão impossível, ausência de uniformidade e puritanismo. Anti making-of. “Cocksucker Blues”, objecto de cinema.

quinta-feira, 20 de maio de 2010


«Se eu quero saber de alguma coisa eu não vou procurar na revista Time, ou vou ler a Newsweek ou qualquer outra revista do tipo. Elas têm muito a perder para publicarem a verdade. - Você sabe disso. -Que tipo de verdades estão a deixar de fora?»

Bob Dylan, no “Don''t Look Back” que D.A. Pennebaker fez em 1967.


Gosto de variadíssimas coisas no filme de Pennebacker e gosto de poder lembrar-me delas. Gosto que não haja “espectáculo” nem “magia” e gosto do anti-vedetismo de Dylan. Do seu laconismo que só por má vontade se pode confundir com pose. Que por uma vez não haja sombra de sexo, das drogas, das mulheres fatais ou das bebedeiras e que o filme nos deixe ficar com um artista, que antes disso é um homem, e com tudo o que existe à sua volta. Gosto mesmo muito de achar que não se trata de um "filme de música" (no sentido de filme-concerto e tudo o resto) mas sobre “o que” e “quem” está por detrás dela. Que exista assim um olhar flutuante e conciso que vai dos corredores aos camarins, da falsidade de certos elogios até ao êxtase do fãs, dos percursos de carro até aos momentos de deleite; mas um olhar pragmático e devorador (sem olhar para trás, precisamente) que faz com que apesar de tanto movimento e supostos pontos de vista, pareça ser um plano sequência de hora e meia, onde o conceito de “dispositivo” ou “programa” é coisa para caixote de lixo. Gosto mesmo dessa granulação que a película ostenta e desse lado manual e amador que hoje em dia só existe como estilismo e impressionismo. Gosto e acho enigmático o modo como também é sobretudo um registo da música que geralmente não sai cá para fora – a criação, os ensaios, os experimentos, as dúvidas, os falhanços – e como depois tudo isso vai ser percepcionado a uma nova luz aquando já no palco. Gosto da ausência de contra-campos. E a sequência que me rasga: o repórter africano a perguntar a Dylan se aceita responder a certas questões, e, quando a curiosidade das respostas aceites está no auge e o gravador ligado…pin, um fabuloso corte para Dylan e a sua guitarra no meio dos negros, num qualquer descampado. É preciso muito para chegar a isto. Cortar. Montar.

E só para me contradizer um bocadinho, só um bocadinho, curto muito, mesmo muito, a rapariga que está sentada e a fumar um cigarro na cena em que Dylan discute com o jornalista da Times. De quem se trata nem sei, mas acho que qualquer tipo de justificação é absolutamente desnecessária, basta ver…

E sei que foi a frase em epígrafe que me fez procurar o filme; sei que ela me diz o mesmo que Serge Daney me disse sobre os filmes que nos vêem crescer, que nos ensinam a andar e a estar, que nos olham, que sabem muito mais sobre nós do que nós sobre eles. “Se queres saber o que é o cinema e uma verdade, ou a música, ou a pintura…então, meu amigo, sabes o que tens a fazer e onde ir procurar.” E estamos conversados…






- O que impressiona logo desde o início, e surge como “justiça poética” inerente ao filme, é como tudo nele se adequa às reflexões e aos escritos de João Mário Grilo sobre cinema. “O Processo do Rei” é um fruto da não ilusão, da solidão, de uma verdade estética e ética, do enquadramento e da compreensão da História e dos meios fílmicos. Todas as variadíssimas poéticas que o atravessam – a fulcralidade do fora de campo e dos ruídos, a composição dos elementos no quadro, toda a conjugação do movimento e do peso interior à cena, etc. – são por uma vez da ordem da simplicidade e da subtileza, como do imenso respeito e investimento na violência e doçura que as formas representam. Processo em ebulição pacificada, nessa sempre abismal e feérica luta entre dinheiro e estética, desejo e materialidade, impossibilidade e amor (palavra obviamente desusada e ridícula quando utilizada no cinema como cultura), encontra então um idioma próprio que o desmarca para lá de todas as referências, mesmo as reconhecidas.

- E toda esta precisão de esteta, erigida num dispositivo cerrado que se poderia nomear de “Bressoniano”, é o correlato e chegada a uma pura libertação que eleva o olhar, vezes sem conta, ao sublime, emancipando-se assim dessa terrível legislação dos planos e da igualdade, para atingir alturas e um estado de sereníssima e imperturbável inocência que igualmente só pode ter a ver com essa ontologia original que nasceu com os Lumière (ou Méliès, é exactamente a mesma coisa). O espanto e a sublimação perante o mundo e os seus homens, tudo enformado numa beleza pictórica extrema que jamais se aproxima de qualquer tipo de esteticismo por esteticismo, muito menos decorativismo, antes um enaltecimento e reconhecimento do tal génio da natureza e da sua condição primordial à arte. Da cerração e do fragmento à simplicidade e ao primitivismo.

- “O futuro é uma forma de se conhecer o passado” – João Mário Grilo

- Relato e reflexão de uma crise da história Portuguesa, de uma crise de sucessão, do humano e da civilização, de maquinações de corte. Voltando a Bresson, muito dificilmente poderemos deixar de lembrar e enunciar sentidos com o primordial e a alguns níveis matricial, “O Processo de Joana d'Arc” (“O Processo” do título de J.M.G não está lá por acaso); se a secura, a austeridade e o anti-espectáculo são da mesma família, toda a temática da culpa e do medo, da verdade e da mentira, mesmo da casualidade, encontram uma gravidade que remetem tanto para o cineasta francês como para a questão central de todo o cinema de Fritz Lang; Serve isto para reforçar que se parte de um reconhecimento para chegar a algo de particular e fresco – como aquelas manhãs veladas pelo nevoeiro dos planos inicias… Os esgares de impotência, e consequentemente de frustração, que propiciam o embuste e a ilusão – essa solidão e desespero que adquirem o peso da tragédia – acontecem assim precisamente porque João Mário Grilo faz entrar em confronto o máximo de poder e de decisão com o máximo de falhanço intimista, individual e relacional. É nessa décalage e nesse abismo de incapacidade e fraqueza apesar do máximo, que os seres gravitam e flutuam, ora hieraticamente (ela), ora descontroladamente (ele), pelos corredores e labirintos da sua fatalidade inescapável. Não há salvação, não há escape, como por exemplo no ópus último de Bresson, “O Dinheiro”, em que os mecanismos do meio envolvente e as suas intrínsecas propriedades, continham a a semente última do mal. Sem recursos. Espécie de castelo de cartas em queda vertiginosa, de “tableau” (no sentido que Serge Daney costumava pensar) rasante à farsa e ao teatro do mundo – todas as “cenas de tribunal”, tábua rasa sobre ideias feitas de um suposto pudor historicista e logo desvio para uma verdade materialista – porque pasmosamente perto do oblívio e do cataclismo. Daí também o prodigioso recurso aos painéis e a certos espaços vazios como prenúncio e constatação da catástrofe.

- Uma compreensão da representação que elide os perigos da psicologia e as prerrogativas fúteis de um suposto “fazer artístico”, bem como os efeitos e as estruturas da ficção corrente, e que caminha por imagens (“pas une image juste, c'est juste une image”, à maneira de Godard), palavras, gestos, ditos e não ditos, por esses negros da luz que tudo fazem vacilar e pelas alvuras que evidenciam e iluminam, “O Processo do Rei” avança cadenciadamente e harmoniosamente (terrível e ambiguíssimo paradoxo) pela tragédia humana inseparável da sua condição.


(notas inspiradas pelo texto de apresentação do Professor Carlos Melo Ferreira sobre a obra de João Mário Grilo)

segunda-feira, 17 de maio de 2010



“Der Amerikanische Soldat” tem lá dentro pessoas com o nome de Fuller, de Walsh, de Lang…Murnau, etc. existe um bar chamado “Lola Montez (s)”; muitas ambiências de filme negro e outros motivos de reconhecimento. Constatado isto, nada, mesmo nada a ver com qualquer filme que hoje em dia, ou nos últimos largos anos, use de cinéfilia para alguma coisa que não seja feiticismo ou pura inconsequência. Há um lirismo, um sopro de desespero naquele soldado que da América regressa à sua Alemanha para uma estranha missão, que trata as mulheres como lixo, bebe muito, come bem e não hesita em puxar o gatilho. Pressente-se a ressaca de uma certa guerra que terá produzido os seus próprios efeitos, por ventura irreversíveis, e de que nunca se irá falar como se fosse um pecado ou trauma apto a explodir. Um imenso não dito sobre o qual repousam e arrebentam as pulsões e os afectos. Um imenso sentido político a trabalhar em of, em estado latente. Também faz da alienação uma profissão de fé – poderia ser um samurai, mais bruto e porco, mas podia. Toda aquela errância e todo o filme parecem encontrar o seu sentido no extraordinário plano final, que preenche de maneira impossível o abismo sobre o qual a personagem parecia sobreviver e que logo revela a sua impossibilidade. O maneirismo, como sempre em Fassbinder, só lá está para carregar e hiperbolizar o arrebatamento dos sentimentos e da dor. O maneirismo como crispação do gesto.





E é Fassbinder, o mesmo que dizer que a sua natureza – vê-se em todos os filmes, em todo o seu discurso e em toda a sua restante produção – pulveriza qualquer efeito de masturbação ou de piscadela/referência dada de barato, fascinação. Porque a câmara vai sempre directa ao homem, à carne, ao sangue, ao coração. Ao ser, por inteiro, sem a farsa do estilo. Porque a luz existe sempre como acto de violência, isto é, descarnando as superfícies para atingir a negridão e a clareza, a verdade e o que não ousa escancararar-se. Porque os corpos não pretendem a mentira do naturalismo, antes uma força visceral reveladora. Assim mesmo.





O paradoxo é que essa sensação de superfície, de "ser plano", superficialmente fluido é conseguida através de muita mediação, muita máscara, muito papel maché. Porque trabalha-se com o barroco, mas ele não faz com que o barroco sintetize quaisquer preocupações - como com a corrupção (que existe em seus filmes), a decadência irremediável (que existe em seus filmes), ou o romantismo perdido dos séculos que o cinema buscou no seu início mimetizar. Pelo contrário, se a corrupção e a decadência irremediável lá estão jamais irão manifestar-se como as preocupações finais caras à sua arte, mas de mecanismos com funções dramáticas (e até mesmo telúricas) bastante específicas. Ao mesmo tempo em que se tem toda noção do que se está a passar , em termos de narrativa, ainda se tem a atenção quase maneirista (ler crispação novamente) ao detalhe como um meio de mitificar a cena, de catapultá-la na transfiguração do instante pela metáfora ou sugestão.

O cinema de Fassbinder parece-se muito com a experiência de fluxo contínuo, intensivo, sintético que um Wagner queria realizar sob o nome de obra de arte total. Parece-me dos poucos cineastas capazes de conciliar essa luminosidade, essa expressão mais nua da limpidez com a arte barroca e picaresca da prestidigitação, da exacerbação do falso. Uma espécie de demiurgia sem metafísica, sem causalidade ou finalidade que não o próprio selvagem, colorido, mascarado ato criador.

Anti-metafísico, anti-profondeur, escapa às armadilhas do símbolo e encontra na alegoria a situação de um universo mais amplo, rarefeito e mesclado, sujo, um negro de Rimbaud.


José Oliveira
Felipe Medeiros de Morais

sexta-feira, 14 de maio de 2010


Evocações espectrais. Gestos épicos e mínimos. Deslumbramentos flamantes e voluptuosos de pura luz e de pura sombra. Rasgos de musical Minelliano, hollywoodiano. Propensão romanesca e aventureira. Correnteza pedagógica enformada pelos sussurros do berço, pelo imaginário dos cromos e do papelão. O que será isto? Marinheiros, cavaleiros e amazonas, masmorras, pedras milenares e partidas de xadrez ao luar, fugitivos, donzelas, capas e espadas, belas e antiquíssimas tradições. Corvos, fundos estrelados, velhos eléctricos de cidade e barqueiros de rio ainda mais velhos, horizontes a perder de vista, mares, Lisboa à noite e desertas vilas pelo dia.
Aves esvoaçantes, folhas e vento. Todo um novo mundo já para lá da memória, verso e reverso do pão-nosso de cada dia a que nos habituámos por muito proclamado cinema e pela televisão que não existe. Fixidez e bailado de câmara – ...aquele travelling para a frente em que do alto do castelo se chega à povoação e à sua envolvência líquida – momento supremo de revelação e logo da poética de José Álvaro Morais.
A crença no cinema como arte da libertação, da perdição e da infinitude, do absoluto, é a crença de “Zéfiro”, talvez o mais belo momento de Morais, porventura o mais genuíno dos cineastas românticos e operáticos que este país já conheçeu, certamente dos mais esquecidos. Aquela doçura e virgindade quando tudo parece estar a ser descoberto ou redescoberto, olhado com a fascinação da primeira vez, campo de todas as possibilidades…

Experiência sensual do presente e do momento, abertura para todos os tempos e lugares, verdadeira e estonteante dialéctica, imagens e sons a existirem com a força da verdade e dos enigmas.


Dádiva sublime e aparição, em meia dúzia de planos, Inês de Medeiros, aliás, Mariana chamada e de encarnado no corpo, como na “Casa da Lava”. È um ser que vêm do outro mundo e que simultaneamente só dali poderia ter saído, do muito longe. Todas as coisas devem ser filmadas com justeza e peculiaridade, mas para as coisas belas deve-se como que inventar novas formas e exceder-se no olhar, no contemplar. Aquele corpo, tão frágil, aquele rosto doce e muito triste, a profundidade magoada e misteriosa do olhar, aquela maneira de se movimentar, acriançada, serena e de uma leveza mais leve do que o ar.

Tudo muda, envelhece, desaparece, mas um dia, por graça de Morais ou de Pedro Costa, vai-se saber que uma criatura assim existiu e pisou o mundo. Uns míseros segundos e a certeza de que o cinema nasceu para filmar coisas assim.

domingo, 25 de abril de 2010


“RR”, de James Benning, 111 minutos de comboios a rasgar a América mítica e uma outra que possivelmente se poderá chamar de pós-mítica – algo que reconhecemos de muito antigo, mas porém impregnado de sinais de colonização e modernidade – é um tocante e puro olhar de abstracção cinematográfica ao mesmo tempo que não pára de nos fazer reenvios e de nos segredar fantasmas, histórias, lendas, poses, gritos, derrotas e vitórias. É tão difícil “metermo-nos lá dentro” – no sentido de qualquer identificação ou aconchego – como num qualquer instante fugaz, ou então pela extraordinária sensualidade da duração dos planos, nos seja impossível não vermos ou pressentirmos os horizontes de John Ford ou a aridez poética dos planos iniciais do Howard Hawks de “Red River”; ou a película como que a dissolver-se e logo uma sobreposição a irromper serenamente e como por magia, e então, John Wayne ou qualquer um desses a surgir por ali de cavalo ou pelo próprio pé; O western possível, depois dos géneros, dos sonhos e de Hollywood? Benning chega mesmo a arriscar literalizar esse lado surrealizante na subtilíssima infiltrição de elementos off na banda som que só podem remeter para memórias dos índios e cowboys e dos rituais do velho oeste, elevando, nesses momentos, o todo a uma forma inclassificável e de contra-campos ilimitados; o mesmo para a forma como aparece a música country ou uma qualquer forma de hip-hop – o que foi e o que é; ou os discursos de ressonância histórica contra o som puramente materialista e visceral que emana do quadro. Verdadeiramente dialéctico e engrandecido pelos segredos e pelo que não ousa escancarar, “RR” não pára de nos contar e lembrar coisas, ao mesmo tempo que pode ser só um filme sobre essa forma praticamente perdida e original de um genuíno arcaísmo, modo artesanal, cristalino e desinteressado de trabalhar imagens e sons, respeitar a matéria da cena, sem qualquer tipo de inflação temporal ou mercantilista; junto da oficina e da pobreza, fora das indústrias, dos massacres e das montanhas de dinheiro. Cada quadro é uma totalidade e empreendimento absolutos e cada objecto e movimento dentro dele é moldado pelo máximo de saber e paciência, tempo e generosidade. O génio está na natureza, claro, mas a visão e o ofício de estabelecer as distâncias e de fazer esse recorte do mundo mediante o enquadramento é do cineasta. Não vale tudo, há coisas que não valem, é preciso saber o que fica dentro e o que sai fora, nem que para isso um plano demore anos e anos e anos a estar pronto para ser colhido, há quem o saiba, há certamente quem não faça a mínima ideia, Benning com certeza é dos que mais sabem, cada plano seu é uma desmedida prova de amor.
Esse respeito pelas formas, que chega a tocar o sagrado, que não se fecha em si e que logo surge aberto ao imprevisto e à vida – que pode ser o vento que sopra para onde lhe apetece ou um qualquer automóvel que entra inesperadamente e que só parece demonstrar a imensidão dos comboios que parecem ter apaixonado o cineasta. O comboio, essa máquina altiva e e imparável que furiosamente atravessa a América independentemente de tudo o resto, impassível e romântico, lírico e impiedoso, era assim no “Union Pacific” filmado por Cecil B. DeMille e continua a ser hoje, indiferente a qualquer avanço ou extermínio. Uns nunca mais acabam, outros são meros vagões funcionais; uns devem transportar pessoas e outros só cargas; temos os muito novos e os muito muito velhos, os rapidíssimos e aqueles que se arrastam e nunca mais chegam. Depois existe uma linha e um percurso, paisagens e paisagens, montes e rios, túneis e vilas, o céu e a terra e a força da verdade e da fatalidade de tudo isso, o elogio do seu ser e também o elogio dos homens, pois mesmo que aparentemente não sejam visíveis em plano algum, a sua força criadora não pode deixar nunca de ser sentida.. Vai-se a toda a velocidade ou devagar, espera-se e logo se dá tudo para recuperar o tempo perdido, os altos e os baixos, as crises e as libertações supremas. Como num road-movie em que a estrada é a vida. Um filme doce e um amplo gesto de emancipação

domingo, 18 de abril de 2010



I would attempt to explain that there is a special machine, a camera, that is a metaphor for something old.
I would tell him that we need this machine to see people, just like we need a telescope to see in the distance, or a microscope to see something close or glasses to see better.
I would say it is a machine that was invented at the beginning of the 20th century and that a few artists were its knights errant.

J.L.G


domingo, 11 de abril de 2010

Garrel e os anos 70 – o tempo e o corpo. Rasgos de luz.




“Le Bleu des origines”, “Les Hautes solitudes, “Le Berceau de Cristal” e todos os outros filmes que Garrel ofereceu a diversas mulheres pelos anos 70 – Nico, Jean Seberg, Pallenberg, etc. – são antes de tudo apreensões do tempo puro e de corpos. Experiências em que os espaços – interiores ou exteriores – os lugares, se parecem tornar unos e indecifráveis, suspensos e constantemente prontos à imersão dos corpos filmados. Nesse protagonismo do tempo e dos corpos, e sendo assim os espaços tratados – nunca, ou muitíssimo raramente, os há vazios – Garrel lança-se na tarefa de filmar o aparentemente mais simples, materialista, imediato, para chegar a alguma coisa de extremamente grave e por sua vez lancinante. Porque se o que está em cena são olhares, expressões, gestos, movimentações corporais, alguma coisa de muito primitivo e terrível acontece a um certo momento: o que fazer defronte da câmara, como estar, como a enfrentar? Não é puro feiticismo, não pode ser só isso, o acto singelo e complexo de se colocar uma máquina de cinema à frente de alguém e de lhe querer extrair o que esse alguém quiser dar. Elas fumam, chateiam-se, acalmam-se, aborrecem-se, conversam (mesmo nos filmes em que nada se ouve), simulam ataques e suicídios, etc., e o que ali vemos e sentimos em puro êxtase continua a ser algo de primordial, epicentrico: mais uma vez, o que fazer quando se bate a claquete e a película começa a registar?


Qualquer gesto e qualquer olhar, o que seja, é fonte infinita de matéria fílmica e de narratividade. Matéria. Se uma “plot” existisse, a chamada intriga sobre a qual tudo corre, distende e se desmultiplica, essa só poderia ser uma coisa: a mulher. A mulher que se insurge película dentro e nos deslumbra e arrebata. Olhamos para elas e não parámos de imaginar histórias e memórias. O que é o mesmo que dizer amor. A mulher e o amor são o centro absoluto do cinema de Garrel, não temos fotograma que não o demonstre.

Daí que até ao arrebatamento onírico e estupefaciente que se desprende dos planos – e aqueles em que nada se fuma e nada existe em qualquer espécie de “pó”, continuam habitados e carregados por essa carga densa, alucinatória e delirante – seja um passo natural e indissociável. Tudo isso existe nos interstícios e como centro, tal como a bruteza dos corpos no plano. Inseparável.

Assim se dá o milagre da sua “mise-en-scène”, que parece a um tempo aérea, fugaz, em filigrana pura, doce e terna, mas logo perfeitamente centrada, precisa, concreta, sempre a reter com toda a objectividade máxima a abstracção dos elementos referidos. Amor palpável. Cinema da pobreza e do desejo imparável.

Grandes planos, planos médios, planos inteiros, panorâmicas…o olhar de Garrel, e muitos menos o coração, seriam incapazes de reconhecer tal gramática. É que nem se põe tal questão... Anne Wiazemsky sabia mais do que quase todos quando impôs o órgão vital do cineasta à frieza maquínica. Poética. Poéticas várias, da contemplação ao desespero, do escuro ao claro.


Une chose m’a frappé dès les premiers films de Garrel, c’est qu’il travaille non pas sur l’image mais sur la pellicule elle–même et sur le cinéma qui se fabrique en circuit clos. Il y a comme un aspect autophagique dans ses films. Il semble manger son propre matériau. Il suffit de se souvenir de ses travellings dans La Concentration.Il est étonnant de voir sa manière de prendre la pellicule comme matière première sur laquelle il fixe directement son angoisse. Il transmet la sensation profonde de solitude à la pellicule dans le sens où elle apparaît comme support non fiable qui peut faire disparaître, se transformer ou s’évanouir l’image.On a toujours l’impression que la suite de l’image n’est jamais acquise, qu’il y a toujours une possibilité que l’image foute le camp en cours de représentation, que l’idée de l’image cinématographique — qui est une succession d’images fixes — ne peut jamais atteindre à la fixité, à la netteté, bref à ces qualités optiques après quoi courent tous les opérateurs. L’image chez Garrel est frileuse et vulnérable. C’est l’impression que l’on éprouve le plus physiquement en voyant ses films.

Dans des oeuvres comme Les Hautes solitudes ou L’Enfant secret, où cette sensation est évidente car il n’hésite pas à utiliser les carences mêmes de la pellicule (pellicule flashée, la sur–exposition totale, le flou, etc.), le support est sans arrêt en train de vaciller dans le même temps qu’on voit le film. Il assure une sorte de tragique, non pas extérieur et qui n’est pas du domaine de l’histoire mais qui est dû au système de représentation et de sa sensation qu’il a de la pellicule. C’est vrai dans les films où, inversement, il semble donner à l’image une plus grande solidité comme Anémone ou La Cicatrice intérieure. Là, l’image est superbe, splendide, magnifique. Pourtant on retrouve les mêmes sensations parce que, dans ces films, il travaille sur une image trop parfaite, trop nette et qui est en contrepoint par rapport à ce qui est montré : des êtres pris dans cette image qui ressentent le froid de la solitude.

Jean Douchet

Primeiro houve uma câmara, e logo depois a película. O cinema. Película, exposição, grão, emulsão. A diferença e o gesto de Garrel foi nunca ter separado nada de nada. Assim que os fotogramas rodam no motor da máquina e a virgindade dos rolos surgem automaticamente violados pela luz e pela fantasmagoria das sombras, tudo é uno e orgânico, impressão e apreensão. Questão de vida e de morte. Cinema, vida. A fita vai alterar-se e metamorfosear-se nesse momento de fatalidade em que nada fica igual ao fotograma anterior e, por sua vez, o mundo vai converter-se fantasma e grão de cinema. Da película ela mesmo. Garrel, cineasta da película, cineasta das origens. (só pode ser isso o que as aparições relâmpago do próprio Garrel, por de trás da câmara, nos querem dizer; para além da paixão e do prazer)

Os Lumière, logo ali na filmagem do comboio e dos rituais, tinham também que estar certos de que alterada a película, todo um mundo outro e uma experiência valeriam por si. Nada de reprodução exacta e naturalista, toda uma grande ilusão e sentido de brutalidade da cena. Toda uma nova ontologia pronta a sentir o mundo, as pessoas, o funda das coisas, tão ao fundo quanto a penetração da película se desse. Todo o pressentimento de um incomensurável no centro do quadro. Mundo- grão.



Nico a fumar nos limites da negridão de um quarto. Seberg furiosa com a objectiva da câmara e com o seu barulho que assusta e dá sinal da ruptura e do parto – o ruído do motor de tal instrumento sempre seduziu, impôs respeito e intimidou. Nada pode substituir isso. Pallenberg a diluir e a cheirar uns pós. Hieráticas. Neuróticas. Dormentes. Relaxadas. A película a reverter-se no pó e na memória do instante. O irracional… É impossível estabelecer as hierarquias e a ordem de tudo isto. Existe um segredo e uma correspondência altamente secreta de energias e de pactos. Um ruído numa suposta ordem, que é o vislumbramento singular das coisas e logo da sua negação racional e pueril, automática. Uma imergência e procura sobre as superfícies. Grito de purgação.




Garrel, cineasta da solidão e do escuro. Da angústia e da sala negra. Do onírico e da emoção indizível. Porque tudo o que ele olha e guarda são coisas de que não se dispõe adjectivos ou considerações imediatas.
Altas solidões, como título do filme para Seberg. Não se pode proceder assim sobre seres e almas e tudo ficar na mesma. Jamais. Todo o mergulho no abismo de tal irracionalidade é um mergulho de pura catarse e revelação. De um apagamento qualquer e do surgimento de uma luz outra. De uma brecha. Tudo sempre novo e terrifico, porque colhido na fé e na inocência do fotograma fugazmente “em branco” que se aproxima.
Lumière`s, Vigo, Epstein, Cocteau, um certo Godard, uns rasgos de Carax. Garrel. E poderiam ser outros: Warhol, algumas mulheres de Akerman, a Vanda e a Balibar de Costa…cada qual, “na sua”…
Eles sabem e a sua natureza jamais os fará agir contrariamente, jamais se enganarão a si mesmos, que o movimento único das coisas e o movimento da película têm os segredos bem guardados, privados, que não existem chaves mágicas e que o acto de os desvelar é algo de sagrado e de místico. Trata-se de um olhar e de uma crença, essa crença na luz que é a crença original do cinema. Olhar translúcido e puro, técnica perdida sobre o sonho e a vigília que não permite golpes baixos, pregações, cópias-conforme. Tempo só por si e experiência do espaço e da dureé. Cineastas-grão. Lançamento no caos e na concentração. Fixar e esconder. Mostrar e ensombrar. O principio e o fim. Arte rara que não ousa escancarar a sua significância.

sexta-feira, 9 de abril de 2010


“Estate violenta”, Valerio Zurlini, 1959

...tipo de arte de que não se dispõe nome.