domingo, 15 de junho de 2014
Will Rogers, o indivíduo mais comum e raro na
terra, faz de Pike Peters num filme do realizador terreno e de outro mundo
chamado Frank Borzage. Pike, assim gosta que lhe chamem, tem uma garagem de
automóveis na vilazinha mais escondida da América, CLAREMORE, nas bandas do OKLAHOMA.
E sente-se perfeitamente feliz e concretizado desse modo, com uma esposa que
ama sem serem precisas provas desde que ela como professora não ligou nenhuma
às diferenças de meio e para ele sorriu, cheio de amigos que passam o tempo na
oficina mesmo que seja só para a conversa ou para convites malandros, e uns
filhos daqueles que todos os demais invejam, jovens, belos e desejados. Até que
um dia…velha história. Os filhos e a mãe descobrem o petróleo da perdição que o
pai despreza e quase vão deitar tudo a perder. Ela, a mãe brilhante e
sorridente, resolve que devem ir todos conhecer Paris, para ganharem cultura,
amplitude de ponto de vista, experiência, enfim, distinção, enfim, coisas que
eles sempre tiveram em sobra sem o saberem ou dizerem.
E vão mesmo, vão mesmo para esses cabarets e
holofotes que fizeram a fama da cidade-luz, vão ter com mulheres despidas de
preconceitos e de quase tudo o resto, com condes vestidos demais e demais
altivos que cobram a sua honrada presença à hora e a peso de ouro ou ouro negro,
títulos intocáveis em vez de pessoas com as virtudes e os defeitos da nossa
salvação, todos os brilhos corrompidos escandalosamente e assim atraentes como
o mais urgente íman, peçonhentos a uma brancura fora de lugar, mancha
persistente e estranha aos que fazem da coca-cola o seu champanhe e do coração
o seu guia. Nada invejável, Pike começa a falar com a solidão que nunca lhe
tinha passado cartão, daí que o espaço que sempre se alongou até ao infinito
começar a encurtar e a atrofiar na sua cabeça e consequentemente nos horizontes
visíveis à posta em cena de Borzage. Aconteceu que a mãe, a filha e o filho,
uns mais do que outros, esqueceram-se momentaneamente de como são feitos, do
que provaram, o que tocaram outrora e viram, do que é o tudo e o nada, o chão e
o tecto, material e fluido. E em castelos sumptuosos e já mais falsos do que
Judas e pelas ruas da vergonha se querem vender e passar por aquilo que jamais
serão, ceder a uma tentação ancestral que os acaricia como as plumas que por lá
bajulam. A mãe não se importa de vender a filha e de largar o filho à bicharada,
como não se importa de passar de bonita a feia.
Só que… Will Rogers só pode continuar a ser Will
Rogers, como Doctor Bull ou Judge Priest noutras vidas, e importa-se mesmo. Não
cede, mesmo se sussurra quase humilhado à mulher que sempre amará que o leve
com ele aos antros, ou se se faz doente para ela resplandecer em pleno, depois
de entrar na tal fortaleza sem graça e com nada para fazer, fortaleza da
pequenez. Por isso ele vai à guerra, a guerra da sua origem posta em cheque, do
seu ser primeiro e impossível de pôr na lama, e nunca é banana, jamais banana
ou coitadinho. Assim, desce de pijama para o festim em que não cabe e
embebeda-se com uma dita e ambígua figura da alta aristocracia tão aborrecido
como ele por tanta aparência, volve-se guerreiro de armadura e espada de
orgulho, fica-lhe grato e abre-lhe as portas da CLAREMORE que nunca pensou
fechar, e mete a correr o advogado que lhe pede dinheiro pela mão da filha,
entre ameaças e aquela dureza e antiguidade muito séria de quem percebe a
calunia pelo cheiro. Pike não deixou que o mordomo particular lhe vestisse as
calças, batizou-o como nas suas brincadeiras americanas, detestou o caviar e
chorou os ovos das galinhas caseiras, mas nem por tais ofensas ignorou as
mulheres de má fama, sentou-se mesmo com elas e escutou-as, serviu-se delas
para causas elevadas e de certeza que lhes ensinou coisas que elas não mais
pensavam possíveis. E ao não ceder, embora o sangue que lhe ferve nas veias e
nas guelras o metesse sempre na sua linha, ao não fazer credo do “Na frança
come-se e bebe-se, para a américa escreve-se”, ao amar sempre os amados não
importa porquê e ao reconhecer o mal em cada esquina, recuperou os seus e o
bem, a honestidade, o primordial que na loucura e no vórtice do vil dinheiro e
da fama quase foi enterrado.
O discurso final, entre Abraham Lincoln e o mais
duro e terno semblante de cada poiso em cada terra, no qual o indivíduo dos
motores e dos óleos fala em Napoleão e nos hábitos mundanos dos Romanos, mas
também das aventuras que a juventude e a carne necessita, e de cavalos e de
carros modernos, inclui a franqueza esventrada da mesma maneira que a ironia e
o humor, numa completude e numa amplitude de visão e afecto que o confirma como
o mais sofisticado, complexo, elegante, singelo, amoroso, violento, homem, só homem,
que vimos no filme, neste filme que na sua simplicidade praticamente abstrata
se limita a registar nas suas linhas e volumes, gradações do escuro e do claro sem
medo da claridade extravasante e jubilatória mesmo nas tristezas, a gama toda
de uma humanidade imprevisível. Chegando ao grande fresco, à grande pintura, onde
esse Pike que poderia ser, acredito e quero acreditar, um António Reis ou um Michel
Giacometti, e também os seres nunca anacrónicos de integridade que eles amaram
e apreenderam de maneira plena, atravessou como numa odisseia, como numa gesta
épica do dia-a-dia, todas as coisas, viu de tudo e cheirou de tudo, e fez o resgate.
Com ferros e com murmúrios. Murraças e mimos. Aproveitando de tudo o que
sucedeu. Sempre fiel.
“They Had to See Paris”, além de ser apenas um
filme e não uma negociata, é ainda o quê? À semelhança do título imperativo e
necessário, algo de uma franqueza e abertura, de uma lucidez e beleza lancinante
advinda do que se sente verdadeiramente de dentro, esses abalos pertíssimos do
Éden, uma pedra ou um sonho precioso de uma fragilidade e de um fulgor indizíveis,
uma daquelas obras que não podem entrar nos apuramentos dos melhores filmes de
sempre, nem serem estudadas nas cadeiras de análise de filmes ou realização,
muito menos fazerem parte do cardápio dos suplementos semanais da arte e da
cultura como último grito ou prato de um dia ou menos. Da mesma família e
morfologia dos mais secretos brados de Minnelli, do McCarey que não faz as
caixas luxosas de DVDs, de um Ted Kotcheff em VHS roçado até romper, do “Act of
Violence” portentoso e ferido de um Fred Zinnemann arrumado na gaveta dos
académicos que enlaça com o também neorrealista “Ride The Pink Horse” onde o
gordo Panchito diz ao Robert Montgomery que dá o peito às balas e mete as mãos
na massa: “Eu... só fico feliz quando não tenho nada. Nada... e um amigo.”, das
vozes encolhidas dos fatigados de Jacques Tourneur, ainda outro Borzage estelar:
o par que em “Living on Velvet” após ter experimentado o etéreo e o nada e o
outro lado do passeio continuou uno e sorridente por entre as névoas percebidas,
da leitura policial a um euro escavacada no terreiro da feira da ladra, um Dias
de Melo encontrado na rodoviária das esperas quando nada se espera, qualquer
coisa do Robert Mulligan em sessão dupla com John Ford ou a saga Rocky, as
gravuras praticamente apagadas em lugarejos remotos onde o curioso do museu não
chega, nos espaços sem gente de um Louvre, da livre poesia de Virgínia Dias que
encerra o universo ou dos tapetes manufacturados da Tia Amélia sem capa de prestígio,
a voz dilacerada de Chavela Vargas ou a doce de Julie London, o amigo Carlos
Alemão da infância e assim mesmo de agora apesar de.
Coisas que não podem tombar no pecado da usura,
nem na boca e nas teorias dos vigaristas oficiais e enfatuados, coisas que
mesmo quem ama não anda por aí a gritar para praças públicas, que prefere
guardá-las para assim preencher as solidões e alegrias deste caminho, como oferenda
aos que escolheram a via desamparada. “They Had to See Paris”, ou “Some Came
Running”, não servem para teses de doutoramento, defesas catedráticas, críticas
diárias ou resenhas buriladas, peso e sujidade de estrelinhas, para esquemas sólidos ou grelhas analíticas
sérias dos orientadores, para os filósofos meterem Kant ou outro ao barulho na
sua briosa coluna, muito menos para a troca rápida de impressões do cinéfilo
que devora por aritmética e não por necessidade. Nem dá para mandar à parede ou
às parangonas no programa televisivo onde o artista sofredor desabrocha em
apoteose, o arauto do bom gosto impõe o essencial, a efeméride sem sentido vem
ao de cima. O especial de um Cannes e sucedâneos nunca anunciarão restauros
destes impunemente, nem o programador fashion sedento do “novo” irá com a sua
avante, mesas redondas e especializadas não chegarão a lado nenhum. Porque
coisas destas, e mais uma vez vou citar o final do texto de João Bénard da
Costa sobre o opus de Minnelli, e citarei sempre e pode ser a única coisa que
importa para lá de todos os ditos: “estão
para além de qualquer lógica e transfiguram tudo o que tocam em oração e
oblação. Nessa delirante irracionalidade do amor, apanágio de tão raros.”
Para coisas destas importa perder a compostura, a
cabeça, a razão. E deve ser preciso até confissões impraticáveis, indecorosas,
divagações impróprias, falar da primeira ou do primeiro namorado, na primeira
pessoa e em primeiro grau, da embriaguez salvadora. Falar em tomates e em
humilhações, tê-los no sítio e ter medo, ir buscar serenatas e a batota na sueca
ou noutro jogo baixo. Cantar o largo oceano que um dia se viu, os tais
prisioneiros da terra e do mar, que falam com fantasmas e deliram vezes demais.
“They Had to See Paris” não pode ser dado numa aula com o risco de se cair no
ridículo ou na vergonha, nos risinhos idiotas dos novíssimos e dos radicais de
tablet, nem programado numa qualquer Gulbenkian em conjunto com a produtora nec
plus ultra da especulação e respectivas Divindades da sapiência, pois em cada
imagem, em cada som, cada expressão, cada não dito e esconso, está aquilo de
que não se pode falar, ensinar, provar, legislar. Podem-se passar coisas de
filigrana, um sentimento ou uma temperatura, claro, e deve-se morrer por isso, e
cada vez mais num tempo em que o que interessa são os fogachos do vazio e da
vaidade que se exibem numa conferência de imprensa onde se explica o filme e o
percurso do autor, onde se entrega de mão beijada as pistas e chaves para a obra-prima,
onde o que interessa é a adulação do ego e o máximo de barulho, o instantâneo
imortal, a assinatura; e nada a ver com a paixão do que foi Borzage ou, mais
perto, Monteiro ou Eastwood, Mozos, ou Gray. “They Had to See Paris” continuará
no local devido, sem o rótulo de qualidade nem a mentira do consenso, sem
calculismos ou fórmulas canónicas, vivo demais para perfeições dessas, tantas
vezes perto da contradição a que está sujeito tudo o que realmente respira,
continuará nesse fundo onde só algumas almas acedem, nessa delirante irracionalidade do amor…
segunda-feira, 2 de junho de 2014
domingo, 1 de junho de 2014
De uma só vez Leo McCarey atingiu com “Going My
Way” um dos pontos mais altos do cinema clássico americano e do cinema tout
court. A sua construção é absolutamente desse tempo e desse lugar e totalmente
surpreendente, pronunciadora do muito que se ousaria décadas depois. A história
é conhecida, o padre Chuck O'Malley do comovente como um mano mais velho Bing
Crosby dirige-se para a sua nova paróquia, e nesse caminho mostra logo ao que
vem e revela a sua personalidade. Joga basebol com os traquinas da rua, assume
um vidro partido a uma das ovelhas do rebanho há muito desertada, conhece a
mais afamada fiel que não consegue manter a boca fechada e funciona assim como
jornal dos que não leem, molha as sacrossantas vestimentas de maneira ridícula,
entra finalmente na nova casa. Para aparecer ao velho Sacerdote Fitzgibbon, a quem
ele vem substituir sem coragem para lhe dizer, todo desportivo e com a
aparência de tudo menos de bom pastor. Homem moderno, para a frente, positivo e
com uma paixão pela vida, pela música, pelo desporto, pelo género humano e suas
diferenças que vai entrar em choque com a tradição para logo esse choque se desvanecer
devido ao gigantesco amor e claridade que a todos abarca. Porque o mais admirável
é que nada disso ele impõe à força ou sequer pronuncia. Não, a sua formação e a
sua essência faz que ele vá levando as coisas para a frente sem pedir licença
nem perdão, mas com uma naturalidade que McCarey conserva num registo quase
direto onde tudo se desenrola em consonância com a sua imperturbabilidade e
conhecimento, lucidez e certeza. Maneira de ser que se pressente antiga, de
quem muito viveu, aguentou, conheceu, transformou, e agora está num patamar de desassombro
que lhe permite arcar com o mundo inteiro em particular leveza.
Este grande cineasta a que tantas vezes não se
deu o devido valor, um pioneiro da linha de Griffith ou Borzage, seguiu esse
mesmo caminho de grandeza dos sentimentos, mas foi transformando o desmesurado
lírico e a desmesurada comoção numa coisa totalmente inata. O lírico está lá,
nos coros de anjos de Botticelli milagrosamente de acordo ou nos jardins com
arabescas fontes onde os passarinhos pousam para molhar o bico; como a emoção,
como esquecer ou suportar toda a reação de Fitzgibbon ao perceber que O'Malley
nada lhe impôs para não o magoar, entre muitos exemplos possíveis, este é
talvez o cúmulo. Mas nada se destaca, nem salienta, muito menos berra, porque
está precisamente interiorizado, não só no protagonista como inevitavelmente na
luz que se apega às coisas e faz da sua transcendência e transfiguração um acto
secreto, indizível, corpo com corpo abraçado. Assim, já não há resquício de
melodrama como género bem regrado, nem qualquer catálogo narrativo advindo da
temático ou do ar do tempo, moral adjacente ou retórica cristã à boleia.
Duas horas de filme e temos uma curta cena de
missa com um curto sermão já destituído de tudo isso. Comecei por referir que
estamos com todos os membros em Hollywood - e Louis Skorecki chegou a escrever
que McCarey pertence mais a esse mundo do que Hawks ou Hitchcock – mas então é
reparar no que se passa na concisão e aprumo dos blocos com que se cose este
todo coerente e livre como essas mentes que o percorrem. Temos números musicais
e muitos ensaios pormenorizados de técnica e sensibilidade, não só com o coro
que o segue confiantemente pois o reconheceu como um deles, mas com
adolescentes travessas fugidas aos pais que não se importam com eventuais
ingressos nos cabarés de má fama; ou ainda um velho amor de antes da profissão
de fé que se tornou estrela de grandes palcos mas que se une a ele por
reconhecido espanto. Jogos de golfe, damas, idas ao basebol em conjunto pagas
do bolso do pároco. Embates com sedentos cobradores de hipotecas e produtores
musicais que se descobrem desmascarados por uma frontalidade sem qualquer
segundo sentido que não o da sua transparência. Belíssimos e com toda a certeza
saborosíssimos repastos que duram em sentido de humor que se espalha ao resto. Cenas
onde não se passa nada além da extrema bondade em filigrana, olhares, não ditos
significantes. Pares improváveis que se formam, desprovidos de todas as
imaginações dos escribas, muito mais abençoados pela mão caseira de O'Malley. E
conversas, muitas conversas onde o prodigioso diálogo não dá da caneta e flui
como na vida sublimada pela grande arte que também não se escancara. As
chamadas conversation pieces largas e espessas – e mesmo essas não são
enlevadas, sem paradoxos - que depois fariam furor pela pós-nouvelle vague
francesa – Jean Eustache – no neoclassicismo – o “Scarecrow” de Jerry Schatzberg
– como no pós-modernismo – Quentin Tarantino. Vida, precisamente e sem
romantismos ou falsa inocência, cada cena, as largas como as breves, não se
resolvem em si como deve ser num argumento bem acabado que comporta o lugar, o
interior ou o exterior ou se é dia ou noite, mas sim se corresponde, interlaça
ou desentrelaça com um tempo posterior ou com o que já passou e pode voltar ou
não. Onde até o milagre parece ceder o mérito ao trabalho e acreditar das
pessoas – veja-se o incêndio triste que destruiu quarenta e cinco anos de
trabalho, e a recuperação ainda mais fulgurante. Destino e convicção, o credo
mais alto.
Muito mais, tudo o mais haveria a dizer, mas no
final, o generosíssimo Padre como o generosíssimo cineasta, fazem uma retirada assim
mesmo, tão ao de leve e calada que extrema todos os sentidos, descarna e faz
chorar como que por dentro. Por dentro, de onde o limite da objectividade e da
subjectividade se agregam como no mais sublime dos casamentos. E percebemos e sentimos que todo
aquele movimento, sonoridade, diversão, palavras, acanhamento, existiu para dar
réplica ao mais tramado dos comparsas, a solidão, que existe em todas as partes
desta obra, essa tramada que não grita. Toda esta arte
do ínfimo que hoje só parece permitida pelo diletantismo. Numa ou duas salas
escondidas onde um ou outro cheio de paixão ou assustado se pode esconder e
abrir depois da luz baixar. Na casa de um amigo em sessão privadíssima. Para a
namorada, de mãos vazias. Sem penitência, assim mesmo. Going My Way, como a
demanda o título, uma ordem. No caso destes dois, caminho aberto para “The
Bells of St. Mary's”, para Ingrid Bergman, e para outro tipo de visões. Para
nós, continuar.
sábado, 31 de maio de 2014
“Young America” surge rodeado de miudagem em
plano sequência superlativo, estaciona perante um jovem juiz que é uma das
personagens mais bonitas que o cinema americano criou e na frente dele aparece-lhe
uma mulher loira que vou continuar a tratar assim, igualmente novíssima, que para
além da imensa luz da sua beleza lhe sai da alma uma radiação de bondade quase
cegante. É Frank Borzage e por isso no mais lindo como no mais terrível a sua
mão que é o seu olhar que por sua vez é o coração pairará sobre todos e sobre
tudo como batuta em punho do mais generoso maestro. O mesmo que cuidava do anjo
de rua aparecido em Janet Gaynor pelas tragédias de 1928, os rivais Joan
Crawford, Margaret Sullavan, Robert Young e Melvyn Douglas compreensivos e
sensíveis nesse "The Shinning Hour" que poderia ser como que uma epígrafe
da obra toda, ou o lindíssimo Victor Mature com a sua boneca chinesa já em 1958
– quando ele a cobre na cama pela noite como quem diz com a maior força que a
ama…quando a pega ao colo depois do mal-entendido sacramental e a leva para
casa a correr para um sempre…quando dispara louco por amor no auge bélico… e
como esquecer a ressurreição da boneca quando a tínhamos visto escangalhada de
morte - ou seja, assim no principio como no fim.
Depois da abertura nua e terna falar de formas
em Borzage é como sempre falar na infinita ternura angelical da sua luz, do que
emana tenuemente de dentro dos corpos e da palpabilidade extrema da sua matéria
mesma em consonância com o mecanismo de registo que só pode testemunhar e
jamais interferir no que se passa ao redor. Nunca postura hierática ou pincelada sacra em
pedestais superiores e inalcançáveis mas precisamente ao nível terreno,
quotidiano, singelo. Mas inomináveis são os primeiros
dez minutos, que se desenrolam em campo/contracampo uno, indissolúvel e assim
implacável como muitos muitos anos depois veríamos no documentarista Frederick
Wiseman. O juiz de menores e a nova américa que não para de o surpreender como
todas as alvoradas de cada dia repetido, a sua paciência infinita, a sua
ponderação, o seu sorriso de filigrana e a sua dureza justa, assim, toda a
completude que o permite existir inteiro. Até que lhe surge, a ele e ao dito
anjo loiro que o quis acompanhar para saber como se faz e do que trata a
verdadeira legislação, o pior rapaz da cidade, o diabo em petiz, para entre
sorrisos cúmplices e severidade amiga e antiga o devolverem à rua sabendo que o
mal dele é outro que não o do letreiro.
Pois nada dessa poluição o ensurdece ou
despista, Judge Blake saiu de um utópico cruzamento do Caprianismo de James
Stewart, do meritíssimo Francis Ford escolhido pelo Young Lincoln na balada
humanista do seu mano mais novo, ou desse embriagado enamorado para lá do razoável
que espanta tudo e se transforma estrela protectora no primeiro filme de Elia
Kazan, gente igual aos mais genuínos tasqueiros do nosso contentamento, aos
indómitos simples que a arte digna desse nome sempre almejou e só vislumbrou. Se
a perfeição de cada imagem de Borzage sempre esteve envolta em algo
verdadeiramente celeste, que não vem nos livros e não se deve procurar muito
nos lugares de sempre para as resenhas, se nas suas grandes e pessoais orações
se pode parafrasear Cézanne com o “à chaque touche, je risque ma vie” sem depressões
antes demanda do sangue, todo o ritmo dessa cena inaudita, toda a respiração,
apenas visam captar o fundo e a sua expressão nesses seres, como nunca nenhum
verismo.
Ao tal catraio, acontecem-lhe muitos azares e
mal entendidos, solta o anjo subtil e o demónio escancarado e muitas vezes
vice-versa longe das autoridades, perde-se e encontra-se já marcado com o
fatalismo dos acontecimentos. Anda à batatada com um mais forte do que ele por
uma miúda, é expulso da escola, posto na rua em casa, semblante enlameada pelo
melhor amigo e nada se compara com isso, regressa ao banco dos réus. Mas ainda
pede a uma velhinha que adora o favor de lhe poder chamar avó, velhinha linda e
resplandecente e integra, rouba medicamentos para ela, tomba na sorte do
destino. Mas essa novíssima e revolucionária loira que nunca, nunca, o abandona
leva-o para o seu lar doce lar mesmo contra vontade do seu marido – um Spencer Tracy
um pouco casmurro e desconfiado a que Borzage e ela confiarão absolutamente – só
que ele continua a ter cada vez menos fortuna e o sarilho como sombra perene.
Momento supremo: a morte em frente a ele do tal melhor amigo, o gêmeo da
infância de cada qual, a respiração a ir-se de fininho entre recordações de
travessuras e segredos que são o tesouro da infância e o ecoar e resguardo da
aprendizagem para a morte. Uma das mortes mais doridas e apaziguadoras alguma
vez filmadas que nos faz ver como o mais grave e incomplacente adquire a sua
dimensão sagrada e enlaçada na plenitude pelo vislumbre da eternidade – o céu
que ambos combinaram nunca os deixará e estará sempre disponível para eles.
No rodopio e no arrepio dessa existência e desse
teatro nosso, ao miúdo que mais nada lhe pode acontecer após ter odiado o casal
para o manter, e pior do que isso magoado no pior dos sítios a mulher que
sempre esteve do lado dele, vão-se-lhe esbarrar gangsters, acidentes e tiros
que não parecem mais graves do que as palavras daqueles que a cada brado o
desprezaram ou dos olhares sempre deslizantes para longe dele, e o quadro final
familiar de uma paz perfeita não é corolário nem redenção mas sim Borzage a revelar
a sua posição, a de cineasta e a de Homem, nunca de maneira autoritária mas
somente o advento da sua natureza. A recusa da treva depois de tanto penar, o
brilho mesmo que só já em celestial ao invés do buraco negro na terra, o júbilo
ao choro que a ele já o experimentou todo. Ou seja, nada de pieguices ou contos
de fadas para virgens inocentes, mas a inseparabilidade do brilho do bem e do
mal onde nessa luta gigantesca dos seus filmes a luz essencial continua, mesmo
que tão baça, mesmo em visões insuportáveis como a do enforcado na cabeceira do
berço no realista “Moonrise” ou o ontem o hoje e o amanhã do vício da guerra
que chega da fonte em inapelável maravilhamento pelo ” No Greater Glory”, para a natureza continua a
reciclar tudo, a prevalecer. Algo de muito puro que só pode letalizar o seu
oponente. Ainda estamos aqui por causa destas. E como Borzage nunca mais.
Pois é, meu companheiro Mário, será que alguém
ainda sente alguma coisa pelo beijo que o Joaquim Phoenix dá nos pés da Marion
Cotillard tão ao devagar no desmedidamente eterno “The Immigrant”?
sexta-feira, 23 de maio de 2014
quarta-feira, 21 de maio de 2014
“Die große Liebe” é o sonho ou o pesadelo com
que Otto Preminger irrompeu no movimento do cinema ainda na sua terra natal e
algo indefinível que ficou muito tempo num nevoeiro que só pode estar de
consonância com o que lá se adensa, quebra, fragmenta, num inacabamento formal que
faz corpo com o desfasamento consciencioso. À primeira vista é um conto como
muitos de um soldado desaparecido e da espera cega da sua mãe. Mas logo na
sequência auroral – verdadeiramente e sem poesia minha- da chegada do comboio
que traz alguém de longe e que é paralelamente montada com a fé materna, entre
cânticos ressoantes, ruídos vivos sabe-se lá de onde e uma atmosfera carregada
de aleatório, fica-se a sentir que tudo pode acontecer para lá da razão. A mãe
não tem a cria há 10 anos, o homem que chega também parece procurar uma
substituição para a sua que já não respira. Nesse vertigo, a típica prometida
que não pode esperar e arranja uma boa peça que agrada a toda a gente e
sobretudo às finanças parentais. O que sucederá é uma comédia de enganos que se
emaranha pelo drama para nunca sabermos se se trata de riso ou de choro o que
sobeja, num dos desenrolares pictóricos e melódicos mais estranhos e de beleza inefável
que tal período – entrada no desconhecido sonoro e poderio total da imagem –
criou.
Uma perscrutação de 360º de uma câmara que vai da
estátua estoica da crente ou de quem se acerta com a farsa até ao espaço dos
espectros para a instalação de um presente insuportável; o momento Chaplinesco
da salvação da menina das águas que de uma só vez volve o “vagabundo” em herói
e entrega um milagre à medida de quem espera assim por ele; a Kafkiana burocracia
no local do jornal que tudo revirou até à simplicidade da solução que a faz ir
ao encontro procurado. Só falo da Mãe porque é ela quem faz todo o seu filme
que é o que vemos explanar-se em impossibilidade consumada e sem perguntas, sem
regra, nem alta moral. Quando se coloca em causa todo o mecanismo consciente e
inconsciente dela, momento perto da humilhação, o não filho começa a tratá-la
por Mãe. Até ao fim da comédia, até ao fim do drama. Filigrana lancinante.
Num cerramento feito em planos próximos, entre
velas consumidas na dilatada noite, tiquetaques persistentes, e deambulações
dos personagens e da encenação quase sempre de foras que não vemos para os
dentros sempre pesados, espécie de desfiles que provocam os factos, a obsessão
pelo tempo vai urgindo. E uma encenação outra que parte ou desequilibra ainda
mais o todo, esse gélido teatro à la vaudeville que precipita a referida
aceitação materna e ainda faz cair de um firmamento falsamente estrelado outro
anjo para a beira do errante rebatizado Franz que nada pede e tudo lhe aparece
de mãos vazias. Momento que se vai estendendo e distendendo na acção, que alarga
o nonsense, e aponta à tragédia que tanto absurdo teria de provocar. O futuro
planeia-se rápido demais, a coisa começa a dar para o torto e as cartas a distribuírem
mal-entendidos até aí ausentes, mas o vento vira de novo e acaba-se a sublinhar
a irrisão e o domínio da sorte e dos altos.
Se tudo parece acabar mesmo bem, sem mortos nem
feridos, em riso finalmente pacificado sem escarninhos, tudo o que para lá do términus
se pode imaginar pelas tamanhas ousadias, bem como o que ficou em elipse da
utópica e escandalosa manietação do curso dos acontecimentos e das relações que
não soubemos, aplica à beleza e harmonia um reflexo de gravidade que só pode
lembrar o Lubitsch de “Broken Lullaby” ou o Max Ophüls das operetas em palco
também Vienense. Se o show de salão é a seriedade e o aparelho de rua de truta
e meia que canta ou vocifera quando se vai pela última vez a negro é o baixo, não
pode haver melhor imagem para toda a reversibilidade que Preminger mete em cena
do que essa oposição - tornar o inverosímil verosímil pela necessidade e
acreditar supremo, flirtando com a metafisica e consumando mesmo o arrojo num
desprendimento pelo absoluto, pôr à prova a lógica. Lógica, que é todo o desafio
e corda bamba desta obra admiravelmente suspensa na crença da beleza para lá de
todas as considerações e impunidades. Ou um longo sono que reverte toda a
coerência do chamado real ou do guião aprovado, possibilitando a magia da
varinha da fada mesmo que só no efémero hiato do hoje. Fascinante gesto que
suprime a perdição.
terça-feira, 20 de maio de 2014
“And she was reputed to have been on the set the day
Griffith invented the close-up!”
Francis Scott Fitzgerald, "The Love of the Last
Tycoon"
Sempre tivemos o grande D.W. Griffith histórico,
cheio de ressonâncias míticas e bíblicas, fundador de formas e narrativas mas
constantemente revolucionário, onde na grande aventura de uma arte nova chamada
cinema convocou a grande literatura como a grande pintura para, nunca
esquecendo o passado e as correspondências universais, erguer frescos que só
pela nova imagem em escuro largada podiam fazer sentido pleno; mas também o
pequeno e intimista lírico de “Broken Blossoms” ou “True Heart Susie”, esse do
coração gigantesco e mão terna que no mais singelo dos quartos retribuía aos
seus sofredores e lutadores toda a luz e modelação apreendida num Rembrandt ou
num Edward Hopper, elevando a construção fílmica o mais possível à morfologia
dos seres, criando assim épicos outros do mais cândido humanismo. Mas o que me
vazou desta vez foi a sua derradeira longa-metragem, essa imediatamente a
seguir ao minúsculo e desmesuradamente apaixonado retrato de um homem solitário
chamado Abraham Lincoln, onde prometia tudo alcançar com o recente som e
possibilidades musicais; no entanto, tem que se dizer, a música foi fundamental
na plasticidade e movimento de toda, toda a sua obra. Todas as suas composições
como que bailavam harmonicamente ou em resolutas oposições. Música, pintura, romance
e realidade bruta de uma natureza que entrava incandescente pelas lentes em
fulgurante primeira vez. Galáxia complexíssima onde um filme tão curto como o “The
Country Doctor” de 1909 parece englobar todas as vertentes enunciadas e as
restantes, num cinzelamento e beleza já atordoantes, tornando-se tudo grande demais
para análises deste género. Como escreveu João Bénard da Costa sobre THS: “uma
trama tão ténue que não consente qualquer conversão a qualquer outra arte ”. Inarrumável.
“The Struggle” foi feito em 1931, tinha Griffith
56 anos e milhões de metragem para iluminar, milhões de palmos de terra e de gente
para imprimir nela, encontrar-se e falar com Murnau e Jean Vigo, fazer o bem
usando da implacabilidade, mas não aconteceu. Podemo-nos lamentar, mas mais
vale ver sempre com atenção o legado. Esta luta começa em legenda ambígua e
desafiante, lança-nos para o meio do que poderia ser um painel fracturado ou um
mosaico de múltiplos espelhos, cheio de som e de fúria, cacofonia moderna, ruminante
e denunciador dos males de uma nova sociedade interesseira e capitalista, onde
o caminho da sobrevivência é o encontro com as misérias do álcool que aqui é um
dos dínamos. Mas num corte furioso de secura e bom partidarismo, somos levados
ao consumar do amor de um homem por uma mulher e de uma mulher por um homem,
com uma acalmia na paz dos anjos e mais beleza letal, depois, em supressões do
trabalho do casal, vemos o nascimento da sua cria, o aumento da paixão, os
beijos de boa noite e os presentes prósperos. Mas também a contradição capital
que consiste na quebra da jura que o esposo fez à esposa na promessa de
casamento e vida, quando lhe disse que por tal nunca mais sequer cheiraria o
vil líquido. Por ventura são coisas que não se prometem e muito menos em tais
causas, se calhar nem vale a pena confundir as coisas e a tentação e queda
naquele contexto aconteceria sempre. Sem querer entrar em futurologia, o que lá
está é o possível agigantamento do demónio que todos temos dentro, inclusive a
melhor das pessoas e a alma mais alva. O marido vai de facto perder as
estribeiras e passar os limites dos limites, que não são só as bebedeiras
constantes nem o abandono da mulher e da casa, nem mesmo a vadiagem com
mulheres da má vida e sacanas ainda piores, mas vai arriscar acabar com a filha
linda, num momento do mais puro terror onde a encenação do mal aleatório e
incontrolável se expande circulatoriamente e só a mais pura sorte impede a
consumação da tragédia. Uma exaltante fresta de luz ainda o resgatou da
escuridão do purgatório em que penava. Se no plano que fecha esse bocado amargo
da vida deles e do nosso mundo tudo parece estar bem, com os olhos do
protagonista a brilharem de novo apesar de tanto sangue neles ter raiado, a
tragédia foi mesmo vista de frente e logo experimentada na pele, cravada; marcas
inapagáveis vão sempre ressoar, apontar e diagnosticar as estruturas e
prioridades da nossa terra.
Se tudo isto é um tratado orgânico e feroz sobre
a fealdade concertada e a persistência original onde não se sai de certezas
óbvias num tal pântano, cinematograficamente estamos perante uma peça de
concentração e descarnamento que se é o ponto de chegada e apuro do maior dos
cineastas, do maior dos empreiteiros e logo supremo manipulador, tal só parece
possível e reforçado pela circunstância e pelos limites. Concentração que tem a
ver com a essencialidade de tudo o que acontece, romanescamente e
documentalmente, onde na progressão dos acontecimentos referidos nada de
acessório entra, nada de pontuação supérflua ou passível de distração. Não
temos uns segundos de sol a seguir a um choro para aliviar momentaneamente uma
dor ou criar uma metáfora fina, nem nuvens ou carros que aceleram para a noite,
muito menos uma sinfonia dramatúrgica que carregue nas tintas da perdição. Somente
os palcos significativos para o que interessa contar e mostrar, e o máximo peso
na maneira de o captar. Que tem a ver com o tal descarnamento, a carne viva e
cheia de veias e chagas em que as imagens nascem, vivem e se agravam, ferem e vilipendiam.
A câmara de Griffith sempre foi a que mais pôde, a que mais ampliou e perfurou,
no ângulo necessário com a distância e a temperatura adequada, mas, há que
reconhecer, outro factor talvez ingovernável se meteu ao barulho, tratava-se de
uma técnica e de uma ciência com as suas vicissitudes e propriedades recentes,
não perfeitamente desenvolvida e acabada, ainda não limada e pronta para não
exceder cânones plásticos e conformidades do aceitável. Ao olhar do mestre
imponha-se a par a violência animalística do que não está totalmente domado nem
civilizado, e daí que pelas composições rigorosas e nas entradas e saídas em
que as portas rangem mesmo e cedem novos mundos, todas as auroras eram
possíveis, essas surpresas que aparecem quanto mais se arrisca e se é rigoroso sem
outros filtros que não a verdade do movimento e da emoção em jogo. Essa câmara
já era então um potentíssimo objecto de precisão comparável às lupas da nasa ou
aos amplificantes estetoscópios, objecto que no longe e no perto nos
radiografava e escutava, acreditava nas profundezas e nos invisíveis; que
esperava, se ajustava e reajustava, ia à procura e se espantava pelo milagre do
tempo e da manifestação; sabia do comum e preservava o privado sobre o qual não
se deve banalizar; estruturava o espaço, definia as escalas e os eixos, metia
de fronte ou estudava a prespectiva adequada, flanqueava nem mais nem menos do
que uma experiência nova do que é viver. Para dar razão ao que o outro grande
humanista diria anos depois, esse Jean Renoir que afirmou perentoriamente que
liberdade total não é muito aconselhável em cinema, que se devia ter certos
princípios e até regras; e há que ouvir sempre a conversa dele com Henri
Langlois no filme de Eric Rohmer titulado “Louis Lumière”, em que se percebe
que o progresso e o desenvolvimento em arte não fazem grande sentido. Disse
certa vez Manoel de Oliveira na apresentação de um seu filme cheio de efeitos
especiais e digitais: “Só existiram três inventores: os irmãos Lumière, Georges
Méliès e Max Linder”. Não falou em Griffith e tenho a certeza que foi por aos
irmãos o associar. Qualquer destes ditos e se calhar lamentos apenas apontam
para aquilo a que se chegou hoje: a bandalheira total, o plano a colar à sorte
com qualquer outro e o efeito mais rasca a matar a coerência ou justiça ou a legítima
poesia, o espaço a ser dizimado e o tempo a não existir; para não ir à parte
mais sensível da raça e falar das torturas e humilhações supremas que um
orgulhoso Lars Von Trier ou Michele Haneke aplicam aos seus opostos. A
inteireza de D.W.G e logo toda a modernidade inultrapassável de que Oliveira
deu conta muito a sério e nada a brincar tinha a ver com isto, a revolução
acontece quando se é fiel ao que se encontra e tem em frente, quando se está à
altura de, de onde a consciência genial, o desfasamento interesseiro ou o
resultado pré-definido são a abjeção imperdoável.
Posição retrograda? História da carochinha?
Saudosismo? O que ontem foi possível mesmo já depois dos pioneiros já não é
agora, as imagens e sons e parafernália acessória escorrem como tinta lançada à
sorte pelas telas dos nossos portáteis que tendem a substituir as salas
incomportavelmente grandes, e assim a palavra resistência é a mais válida. É
difícil encontrar o olhar de criança, antes da grande violação, da usura e de
alguns incestos, mas nunca se deve desistir e essa será a moral para viver e
morrer de pé, mesmo que se leve com um rótulo que hoje deve ser tomado em
conta, o de reacionário que até mesmo colam a um James Gray, esse tão empenhado,
actual e apaixonado artesão. Penso nos grandes pioneiros do digital, e já agora
que não se leia isto romanticamente ou ironicamente, como Pedro Costa ou o caso
do “Wolframe” arrancado a ferro e fogo por Rodolfo Pimenta e Joana Torgal das funduras
da terra e mais ainda do cinema, esses que com o chamado vídeo caseiro
procuraram, fungaram pelos escombros, ousaram, arriscaram, acreditaram nessa
impossibilidade pelo trabalho e pelo reaprender a olhar, para descobrirem como
se deve ver agora o Homem, de onde, sobre que fundo, horizontes perdidos;
quanto tempo deve demorar a irromper e a passar no plano alguma coisa, quem
deve encontrar, quando deve falar e o que dizer, novos ritmos, novos cortes,
novos raccords, até silêncios nunca escutados. O mundo, a sociedade, a
arquitectura, os valores, mitos, desilusões, é tudo de outra ordem. Não se trata
então de fazer à Griffith ou à Chaplin, de plasmar, guinada utópica, nem de um
alquimismo cego, mas de lavar o olhar, de se reposicionar, fechar os olhos às
modas que são a reverberação da publicidade e do engano que nos quer fazer crer
que tudo está bem e se deve continuar na onda, mas antes ser-se fiel e lutar, pregar
no deserto, como o filme que me trouxe a estas linhas não cessa de nos dizer, para
que as coisas fundadoras, plenas, invioláveis se metam no trilho e no sentido
certo. A natureza a seguir o seu devido curso. O grito da flor no deserto ou o trajecto
da estrela cadente. E a infância, os órfãos que mesmo eternamente enlutados não
têm e têm temor de se atirarem a esse buraco onde se encontra o maior dos
segredos. E as sombras adensam-se. “Eu fi-los ver, não fiz? Eu mudei tudo”, a
ler com toda a literalidade, branco é galinha o poe.
segunda-feira, 19 de maio de 2014
Incompreensível tentar perceber os que ainda hoje comentam o academismo e a demissão de Otto Preminger em “In Harm's Way”. Sobretudo porque desde o espantoso e expressivo plano sequência inicial que nunca é virtuosismo, até às explosões finais que preparam o embalo de John Wayne numa das suas maiores criações, tudo é lógico pois assente numa moral que não permite que o espéctaculo do cinema leve a melhor sobre a vertigem bélica. Não só se chega aos estilhaços mas também, diria sobretudo, se passa nunca incólume pela tensão da espera, pelo medo do desconhecido do inimigo e do destino, da reação e controlo de cada um envolvido, onde não se está longe dos seus filmes e mentes dos anos quarenta e cinquenta. Toda a observação e contemplação pura da câmara, a sua movimentação e medida, certezas e travões, assim trabalham por causa da longa sabedoria de um grande cineasta que está por detrás dela e sabe que o que só ali lhe interessa é da ordem das movimentações dos corpos num espaço exíguo e sufocante, a precipitação dos acontecimentos, a abstração de todo um jogo incompreensível e fugidio; e não só isso mas inevitavelmente as consequências inafastáveis pelo tempo e pela duração da missão, que agudizam as relações com o próximo, trazem as paixões que assaltam irresponsavelmente, o auto-confronto muitas das vezes tão terrível e tortuoso como com o inimigo. Espera onde os fundos falam, a natureza, os céus, o ar se volve e envolve massa visível e palpitante como o vento, tudo se parecendo manifestar perante tamanhas ousadias e perpetrações humanas, consonando-se assim o desmedido scope com o que envolve.
Tudo tem de arrebentar perante convocações e convulsões destas e rebenta mesmo – não só as bombas e os corpos esquartejados, mas suicídios, humilhações como a do errante Douglas a um parceiro manhoso, redenções fora de hora e outras ainda em boa hora, atitudes a queimar o risco e o ponteiro, demências sem definição, entregas totais, e tudo o mais que as palavras não contam. De resto, nesta obra fundamental em OP e no cinema americano do final do sistema de estúdios, absolutamente acabada e aprimorada, o estratega e prático feito Henry Fonda tem tanto peso e importância como teve na aparição em “Fedora” de Billy Wilder. Pois Preminger não só assume a posição Fordiana/Hawksiana dos homens que partem para a luta e que tomam as decisões firmes e no tempo adequado a favor dos grandes estrategas que não saem do papel, como, nessa lacónica e comovente primeira aparição de Fonda, lhe permite ajustar as contas em vida que tinha para ajustar nas batalhas de pó e outro tipo de armas no Oeste de “Forte Apache”. Não é delírio dizer que reaparece dos mortos e se agiganta agora calmamente e de certezas ainda mais acabadas o Lt. Col. Owen Thursday, como o escuta sem pestanejar e apoiando incondicionalmente o poderoso Capt. Kirby York que dispensa as secretárias e preferirá sempre os estilhaços. Para ser ainda mais comovente a presença final que tem o tom da despedida, quando diz a Rock, só assim podia ser chamado Wayne nesse presente, agora fecha os olhos e dorme, ordens minhas. De resto, é ver as paralelas e as cortantes entre Rock e a enfermeira Maggie com o filho descoberto e a pequena trágica sem lugar na terra; todas as outras relações que alternam o romantismo do instante com a perdição no geral para um compósito denso e grave não só do ar do tempo mas do sempre; e Wayne/Douglas que sempre se entendem e amam e tudo perdoam, tão belo como o sorriso e o silêncio de Jere na aceitação profissional e paterna. Alguns ousam e tudo vencem, outros caem, nada de super-heróis ou Deuses, mas o que se encontra aqui é uma frontalidade que nunca se esconde ao que tem de ser tem muita força. E o classicismo absoluto que se desprende constantemente dos livros e inventa as suas formas novas para fundos que sabendo-se eternos ali são únicos pela comoção da proximidade, ao lado do que se filma e nunca demitido. Escrita harmónica de imagens e sons que formam e enformam os sentimentos. Elipse que nunca fecha e tudo expande para todas as zonas claras e negras e as suas fusões. Grandioso, em todos os sentidos e com os mais alguns das obras intermináveis.
domingo, 18 de maio de 2014
Há um romantismo não dito mas nem por isso menos sôfrego e fundo que atravessa parte da odisseia de Alan Dwan. Esses momentos ou validações perpétuas que alguns podem experimentar, outros não, e o porquê não dá de si. Agora sim, encontrei a liberdade. Agora, estou livre. Concretiza um desertor dos mares a uma ninfa de tribo canibal quando finalmente lhe aplica a diferença entre o amor e o peixe, o beijo e a rede ou o mergulho. Nem se trata de metáforas subtis ou filigrana erótica mas sim uma possibilidade de comunhão virgem. O desertor é o Dana Andrews dos noirs e policiais de Preminger ou Lang, ultra calejado pelas vivências em cada porto e com cada mulher do interminável atlas. No epicentro do perigo, ele, confio eu e vê-se no seu olhar que transcende à alma, prefere largar a civilização e entregar-se à selvageria. Só que como nas ambiências de Murnau ou Herman Melville, nas sombras e luzes e obscuridades com que Dwan também se decide envolver, há Tabus e demónios a que o homem mesmo despido de crenças e disposto a reentrar na origem, se vê obrigado a disputar. Embates inacessíveis ao comum pois resguardados para poderes outros do lado da metafisica, mostruário das nossas distâncias, portas inacessíveis.
“Enchanted Island” comporta em si, no seu âmago, a tragédia de uma união impossível que está inexoravelmente minada. Uma tragédia, cavalgante na imperturbabilidade e no pacifismo do olhar perene e incorruptível do grande cineasta desassombrado que tudo tem a latejar por dentro ou em espírito. Tragédia despoletada gravemente pela ausência do amigo; o marujo que fugiu com o amigo, se perdeu nos abismos da paixão, no turbilhão dos novos mundos, mas não consegue esquecer certos segredos, certas promessas invioláveis, laços ecoantes do berço. Concentrado como o chamado melodrama, sem sublinhados de género ou desgarramentos imagéticos à Douglas Sirk, mas num ritmo drenado e numa respiração indizível e incontrariável sem código. O final, a fuga dos amantes para lado nenhum, nesse instante em que ainda se tentam enganar, onde as famílias comparticipam da fealdade vertiginosa e tão amarga, corpos tão belos perfurados pelo inabalável mal tão abstrato como preciso, o seu destino último é como esse da morte. Entregam-se à liberdade total que nenhuma facção ou autoridade poderá jamais meter em causa. Exercem o direito derradeiro e revolucionário e num plano igualmente para lado nenhum e chorosamente seco pode entrever-se um céu, paraíso deles. Pacificamente, sem esgares, inteiro, num dos cânticos limite ao amor mesmo na morte; feliz pela aceitação em assunção e pelas possibilidades infinitas do desconhecido. Tudo se sabia desde a chama iniciática, sem possibilidades de ilusão ou enfeite; palco de explanação milimétrica da fusão de uma carne com outra carne depois dela. AD teceu o cúmulo do romantismo, chegando ao sagrado como que em divina figuração terrena junta a Michelangelo, sem chamar por isso. Mas, diga-se, com muito mais sopro de vida e experiência concreta do que fascinação ou fantasmagoria cinematográfica.
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