sexta-feira, 25 de agosto de 2017
quinta-feira, 24 de agosto de 2017
"Wild Is the Wind", George Cukor, 1957
George Cukor, o cineasta das mulheres,
o sofisticado homem do teatro, filmou em “Wild Is the Wind” o que
o título indica, uma história de vento, ou do vento. Partindo de um
claro interesse documental, o registo dos ofícios e da manufactura
daquelas regiões agrestes americanas pós western, com os
cães que domam as ovelhas como no país basco, o parimento delas e a
selvajaria mais bonita quanto perfeitamente incontrolável,
encontra-se nessa vida animal, bestial, orgânica e natural toda a
simbologia ou consanguinidade óbvias para com as poderosas pulsões
desejantes, tanto sexuais e básicas como afectivas e fundamentais da
parte da ficção. O amor, a violência e o vento. Cukor capta,
apanha no turbilhão, a massa possível de uma visceral história de
vento, vento que acaricia, ameaça, salva, acompanha.
No começo, um par, Anthony Quinn,
italiano na América que sabemos que perdeu a mulher, e saberemos
depois que com muitas culpas no cartório, decide ir ao seu país de
origem buscar a irmã da falecida. Quer casar-se novamente com a
morta mas escolhe uma viva, não sabendo da impossibilidade de tais
milagres, trocas ou compras. E trata de tratar Anna Magnani, a
escolhida, como os seus animais, querendo doma-la como domou o cavalo
que lhe oferece, beijando-a defronte do espelho que contém e
reflecte a morta, utilizando-a assim para o sexo e para a sua imagem
de fama, não vendo nela uma outra.
Só que não percebe que um animal
fervente como Magnani, um vulcão em constante irrupção, jamais
poderá ser domado sob o risco de morrer interiormente e logo
exteriormente. Nem alma nem carne. Essa mulher que caiu no centro do
turbilhão e da cacofonia da família já constituída e acabada, só
se vai entender com os animais, suficientemente verdadeiros como se
deve ser para com os da sua raça. O tempo avança a mata-cavalos,
literalmente, e forma-se o trio. Magnani encontra outro inocente e
necessitado que é mais um filho de Quinn e que parece ser um Dancin'
Kid de Nicholas Ray, e ambos se reconhecem no alívio premente e
literalmente se devoram. Espécie de Dancin' Kid que nasceu prometido
à filha de Quinn. Filha que gosta muito de Magnani e que não se
importa de a ver como Mãe. Explode ou implode um quarteto
inaceitável.
E todos bailando no meio do vento e
cercados pelas míticas montanhas mágicas da América mais do que
mitificada – Charles Lang no auge da beleza crua e perfeita a um
tempo, sem bilhete-postal - mesmo o Quinn que tudo julga dominar e
controlar como Deus a seu belo prazer, se vão perder, enganar,
suspender em abismos irresolúveis, praticamente matar e ressuscitar
a ferros, para começarem a ver e a sentirem alguma coisa mais para
lá da compostura das aparências e do esperado. O que Quinn quer é
o que todos os “donos do mundo” de ontem e de hoje querem, mesmo
que não seja culpado e se mova cego na engrenagem que o cegou,
dominar cada peão no desmedido tabuleiro que criou e não admitindo
falhas no seu esquema perfeito e maior do que tudo e do que ele
mesmo. Atingidas certas proporções e posses, toda a vida, todo o
tempo e mesmo todo o físico e saúde de touro de um Quinn, só para
esses fins argentários e falsos serão aplicados.
Cukor, um dos cineastas mais
narrativamente possantes dessa época – os seus filmes são densos,
maleáveis e complexos como um corpo humano o pode ser na estrutura
infindável de músculos, gorduras, veias, ossos, etc., etc., ou como
um romance cósmico e total que vai a tudo e a todas as ficções e
documentos e féeries de um Thomas Mann – captou Magnani
documentalmente como o vulcão italiano perdido no imperialismo e
extrapolou de Quinn a força castradora que tudo pode devorar, o
humanismo em primeira instância. Mas de hecatombe em hecatombe, de
incompreensível e de segredo em segredo, a panela de pressão
arrebenta e advém novamente o vento. Para os protagonistas limparem
a vista, as razões e o coração. “Wild Is the Wind” é a
passagem afagante, lenta e dolorosa do “eu quero” para o “eu
espero”. Da violência da imposição sem escolha para a
generosidade com todas as possibilidades de selvajaria da liberdade e
assim de uma fidelidade superior. Por isso mesmo o final não é
feliz à força nem batota dos estúdios fascistas mas a visão
límpida e dolorosa de um depois da tempestade. E George Cukor como
cineasta do físico e da alma, ou do caminho tortuoso para esse
entendimento e encontro. Imensa carícia.
terça-feira, 22 de agosto de 2017
"Run for Cover", Nicholas Ray, 1955
“Run for Cover” talvez seja a obra moralmente mais ziguezagueante de Nicholas Ray, onde esse tipo de ascendência sempre dúbia passa constantemente do homem velho para o homem novo e por aí fora até à fatalidade, sem hierarquia comprovada. Que tudo se passe ainda entre dois felinos castrados, impotentes, curvados, vergados, aninhados pelos medos e pelas culpas que não sabem nem conseguem aceitar, eleva mais uma vez ao paroxismo insuportável o olhar puro e frágil de Ray. Do esconderijo dessa condição humilhante, a explosão catastrófica. No princípio, quando o jovem de John Derek apenas pretende dar de beber ao seu cavalo e o experimentado e desconfiado James Cagney puxa para ele a pistola, é o jovem que fica momentaneamente por cima, mas logo tudo vira quando o outro lhe atira que a questão não foi a da arma apontada mas a do reconhecimento do medo próprio. Daí por diante até serem confundidos por ladrões, serem alvejados e Cagney sentir culpa torrencial pelo sucedido, a reversão irá ser sempre brutalmente ligada à masculinidade mas também, e por ventura mais gravemente, à impotência de afastarem o medo antigo, lá de trás das sombras e das teias da infância, questão de amores filiais e desejos maculados, terra assombrada antes da luz. Cagney não terá coragem de pedir a mão em casamento à amada e será ela a pedir-lhe a ele – tão ao contrário como o peso Freudiano – e Derek mentirá e trairá cada vez mais fundo para compensar as coisas que o filme mantém ausentes não por inteligência elíptica mas porque não existem, coisas da idade dele e da natureza.
“Run for Cover” talvez seja a obra moralmente mais ziguezagueante de Nicholas Ray, onde esse tipo de ascendência sempre dúbia passa constantemente do homem velho para o homem novo e por aí fora até à fatalidade, sem hierarquia comprovada. Que tudo se passe ainda entre dois felinos castrados, impotentes, curvados, vergados, aninhados pelos medos e pelas culpas que não sabem nem conseguem aceitar, eleva mais uma vez ao paroxismo insuportável o olhar puro e frágil de Ray. Do esconderijo dessa condição humilhante, a explosão catastrófica. No princípio, quando o jovem de John Derek apenas pretende dar de beber ao seu cavalo e o experimentado e desconfiado James Cagney puxa para ele a pistola, é o jovem que fica momentaneamente por cima, mas logo tudo vira quando o outro lhe atira que a questão não foi a da arma apontada mas a do reconhecimento do medo próprio. Daí por diante até serem confundidos por ladrões, serem alvejados e Cagney sentir culpa torrencial pelo sucedido, a reversão irá ser sempre brutalmente ligada à masculinidade mas também, e por ventura mais gravemente, à impotência de afastarem o medo antigo, lá de trás das sombras e das teias da infância, questão de amores filiais e desejos maculados, terra assombrada antes da luz. Cagney não terá coragem de pedir a mão em casamento à amada e será ela a pedir-lhe a ele – tão ao contrário como o peso Freudiano – e Derek mentirá e trairá cada vez mais fundo para compensar as coisas que o filme mantém ausentes não por inteligência elíptica mas porque não existem, coisas da idade dele e da natureza.
Depois,
o momento grave, e agudo, fino até às ossadas, em que Cagney
esventra Derek todo, pois se é tão necessitado como ele apesar de
tudo já viu mais, ousou mais, teve a sorte de terem dado por ele o
passo que se espera que o homem dê, e falando para o jovem fala
ainda para ele mesmo antes que se torne velho demais; fala-lhe dos
infinitos “normais” que na vida aguentam as pancadas constantes
da existência sem choradinhos mas juntando as peças que se vão
quebrando e caminhando de dentes cerrados; e fala-lhe dos outros, os
que fogem com o rabinho entre as pernas de cada vez que a vida lhes
troca as voltas, não aceitando que tudo não seja um mar de rosas, a
free ride,
referindo-se obviamente aos dois, um outro e o seu semelhante,
iniciação, pais e filhos, run for cover;
Cagney foi o homem que quis adoptar a toda a força a criança de
Derek para ter uma segunda oportunidade de pai e de Homem mas não
percebeu que clamava tanto como ele; e Ray a falar com o Rocky Balboa
que em 2006 diria a mesma coisa ao seu filho num beco cheio de lixo e
de fumos não maquiados pelo sabão do cinema - «You, me,
or nobody is gonna hit as hard as life. But it ain't about how hard
you hit. It's about how hard you can get hit and keep moving forward.
How much you can take and keep moving forward. That's how winning is
done!»
Dádiva
sublime antes de mais traições inaceitáveis e de redenções no
último suspiro. E assim não haverá possibilidade de redenção tão
na hora da morte como a que vemos neste conto que é tão infantil –
Cagney e Derek podem ser consideradas crianças inocentes e cruéis
que ousaram assim permanecer para lá das horas – como crepuscular
– foi preciso esperar o desenrolar do fio todo da vida para
finalmente se tomar uma decisão, levar as coisas para a frente,
agarrar a responsabilidade, e crescer. Nick, acreditas realmente que
até no último esgar merecemos uma oportunidade reservada a cada
qual e o resto é moral invertida, areia para os olhos e mecanismos
arrasadores da sociedade? A resposta não está em nenhuma legenda
final ou happy ending,
nem mesmo nos efeitos cromáticos ou psicológicos de género, mas na
luz constante de todo o filme. Seja no romantismo mais ténue ou na
tinta mais carregada, na nascença do amor ao entardecer como nesse
terrível movimento de câmara que revela o corte físico e corte
sexual de Derek, a luz é como que azulada, clara, translúcida... da
mesma gama, da mesma mistura e espectro dos diáfanos céus
renascentistas ou do azul de Sistina, das auroras de Borzage ou dos
querubins virginais. Da cor indefinível das estrelas que não se
deixam fixar, para lá delas, por essa câmara que olhando as
questões mais negras conserva a pureza que não julga nem condena
porque assim manda a lei. Ray a ver que até no paraíso se deixou de
tudo e nele haverá luz e treva como na sujidade de um “In a Lonely
Place”.
Em
cada tempo de guerra onde o que vale é a imposição e o tamanho, o
primeiro lugar e o branco e preto bem definidos, toda a complexidade
num só tom infinito. Ou seja, toda a aflição e generosidade.
sábado, 19 de agosto de 2017
"The Fearmakers", Jacques Tourneur, 1958
Agora em vez de se informar as pessoas,
inventam-se factos. Fabrica-se de tal forma o medo que se pode vender
a paz a qualquer preço. Isto são sínteses do veterano de guerra
Dana Andrews na segunda lavagem ao cérebro agora no seu país natal.
Logo depois de regressar e de o médico lhe dizer que não percebe as
causas do seu mal-estar alguém lhe atira com o sono que encerra a
emaranhada porta da inquietude por Shakespeare. O seu homem é o
homem solitário de que não vemos réstia de passado, de lar ou de
recordação e que assim vê melhor o contracampo do infame campo de
batalha do outro lado do mundo. Alguém que não percebe a sua
condição de solitário nem a aceita nem perdoa tal. A civilização
e o mundo tecnológico que tudo escrutina e antecipa a que regressou
como quem redescobre o que desconfiou é o resultado e o móbil da
aberração visceral das bombas e dos corpos estraçalhados.
Este Dana Andrews que passa o filme a desmaiar, a ser furado por pesadelos e por uma nova espécie de horror abstracto que é o rosto e motor de todos os genocídios e totalitarismos do último século, é o morto-vivo mais temerário da obra de Jacques Tourneur. Morto para a felicidade e para a vida corrente pela grande máquina, vivo porque não perdoa o espelho que essa morte lhe devolve. Evidentemente que “The Fearmakers” é presente para sempre puro e tem como personagens centrais e mabuseanas Donald Trump, os ataques terroristas diários ou os incêndios portugueses; o grande medo que nos fazem suportar para comprarmos a pequena paz ao preço que nos fizerem. Assim a cena final em que os monstros dão meia-volta em face de Abraham Lincoln e onde se constata que a lavagem não vai parar e que inclusive se tem de enganar alguns que não mereciam para vencer, é a união da elevação moral torturada passada a gesta épica e clássica com a inocência dessa pura menina que foi ter com ele simplesmente com o olhar.
Tourneur, que nunca fez as coisas parecerem piores do que são pela manipulação cinematográfica, apenas precisou em “The Fearmakers” da realidade para isso, do estado das coisas e do nexo enviesado, da chamada evolução necessária como necessário é o medo renovado; os choques entre luz e sombra e as possuídas aparições, panteras e leopardos da sua “imagem de marca”, soltaram-se integralmente quando se fixou num lugar específico e num tempo concreto. Ultrapassados ou unidos os abismos da fantasia e do realismo, do verismo e da loucura, vem ao de cima tão clara como o negro que representa essa noite na alma que é a causa de Tourneur. Aquilo em que somos capazes de nos transformar para apagar essa noite toda. A luz e o medo.
terça-feira, 15 de agosto de 2017
"Wichita", Jacques Tourneur, 1955
Esta história contada por Jacques
Tourneur em 1955 remetendo para o velho oeste americano na aurora da
industrialização e do lucro cego, este tablóide ordinário, esta
lengalenga cansada, vem na capa do jornal de hoje, onde quem manda
numa aldeia, numa vila, numa cidade ou no mundo não se importa de
ver incontáveis homens e mulheres seus próximos morrerem desde que
seja vendida a carga necessária. Mas Tourneur mostrou-a no máximo
da depuração possível em cinema, aproveitando as formas e linhas
planas e harmónicas dos vales e dos montes, a sua semelhança com os
íntimos corpos humanos e com os grandes órgãos vitais da natureza
cósmica, para ver também assim na degradante cidade, atingindo a
arte das imagens e dos sons relacionados a plenitude vingativa pela
incomensurável lupa – quem é bom é bom, quem é mau não tem
escape, de onde as palavras dos argumentistas cingem-se ao evidente e
à poesia do quotidiano, ao nível das paisagens belas e uteis.
O momento mais bonito do filme, tão
bonito e justo como o cair-do-sol da despedida onde o casal ruma em
direcção à justiça última em consonância com o amor e encaixe
destinados, é um vulgar travelling de acompanhamento entre o comum
Wyatt Earp do certo Joel McCrea e o ajudante do editor do jornal -
editor que é mais um genial Mark Twain no cinema americano: tudo
sabe pelos sentimentos primários e não-ditos, percebe logo a
vocação de cada um e de cada coisa, a dádiva de cada qual –
travelling funcional onde o jovem aprendiz Bat Masterson vacila um
pouco depois de ter feito o que é correcto, depois de ter “crescido”
para o arrivista de serviço, deixando o grande medo picar por
instantes; mas quem tem o mito aliviado de Earp ao lado ou o melhor
amigo tem tudo e este afirma-lhe que não podia ter procedido de
outra maneira... pois não? E ri-se, e o jovem ri-se com ele.
“Wichita” é sobre esses grandes
temas do telejornal das vinte horas mas é sobretudo um filme sobre o
nada essencial. O nada das planícies luzentes... do vento nas ervas
rentes...do sol a desaparecer por detrás dos altos... do inescapável
dom que já vem com o cordão umbilical e que não se corta nem se
vende. O dom que Twain não para de apregoar e que tem obviamente
escrito morte. Vida e morte. Toda a entrega ao rumor interior e ao
gesto absoluto é o sagrado, a assunção e o calvário. Tourneur
ligou as questões mais antigas aos termos mais simples e à equação
mais complexa.
Não fazendo sentido egocentrismos
profissionais, pressão de autor, brilhos mediáticos do ouro banal
ou molde festivaleiro. Tourneur foi o cineasta simples e fascinado
que baseou toda a sua obra nas historinhas que a mãe lhe contava
mesmo antes de adormecer e entrar noutro mundo. Da luz e do segredo.
A brilhar na caixa de música da infância. Sem ninguém em volta ou
com o melhor amigo.
segunda-feira, 14 de agosto de 2017
“The Appaloosa”, Sidney J. Furie, 1966
Sidney J. Furie, depois realizador da
série “Iron Eagle” ou de uma continuação do “Superman”da
era Christopher Reeve, ainda em actividade e já uma carta fora do baralho faz muito tempo, fora de
qualquer conversa “séria” e jamais proposto para retrospectiva mesmo que parcial.
Mas se não formos a mais lado algum existe o ano de 1966, e existe
“The Appaloosa”, feito cinco anos depois do Rimbauniano “One-Eyed
Jacks” e sete anos antes dos calvários e das fidelidades de “Pat
Garrett & Billy the Kid”. Furie abre a caminhada de mais um
homem que regressou de longe demais e que tem todos os passados e
massacres e tempos cravados no rosto, no corpo e no fogo interior, de
forma serena, chã, espalhando o vento a sua ternura pela paisagem
que tanto irá ser magnificada pelo recorte horizontal. E o
andamento, a candura, essa doçura ao mesmo tempo crepuscular e
iniciática poderia durar para sempre. E Furie já estaria ao lado
dos grandes. Tal como o sublime de molde único realizado por Brando
iremos ter momentos e momentos esfregados a lua, estrelas e pós
diáfanos.
Mas o homem como que aterra novamente
na civilização e começam os ângulos subjectivos, barrocos,
demenciais e desconfiados, desenquadrados como aleatórios; e vai ser
sempre esta a guerra formal do filme, entre a serenidade um dia vista
e almejada, e o olhar e a pele arrepiada de quem como o homem de
Brando já matou muitos outros homens semelhantes e de muitas
mulheres abusou. Entre este ano de 1966 que é também o apogeu de
Sergio Leone e as Sete Mulheres de John Ford vai-se escancarar um
abismo, uma bocarra medonha de negro, que é a viagem de perneio
desta obra forçosamente não concisa. Por isso a perseguição do
cão seguida da entrada desequilibrada na igreja, o confronto mudo
com o simbolismo apátrida e ferido de Emilio Fernández e o desejo
ligado com a traição e o pecado e a libertação no encontro com a
mais misteriosa das mulheres é a representação narrativa e
espacial dessa batalha que também é entre a postura clássica e
vertical com a cobardice e o niilismo degradante.
Appaloosa é o nome do cavalo que
despoleta o conflito, mas logo depois da breve estadia em casa com os
seus – tão breve como em “The Searchers” e mil vezes
humilhante – no ponteiro agudo em que se abre e reprime diante da
mulher pura e proibida que terá sempre o expoente do seu amor,
Brando confessa-lhe que vai voltar à guerra não pela vingança ou
pela respeitabilidade mas porque certo dia um estranho pegou nele,
levou-o para uma casa, amou-o e purificou-o e acreditou sempre nesse
menino mesmo nas misérias mais baixas e nos golpes mais profundos.
Brando troca o idílico e a paz de fim de tarde pela memória e por
tudo o que não vemos, e é o acreditar e a frontalidade a imporem
alguma ordem no caos da falta de valores e na falta de tudo.
E a viagem vai piando fino, como no
primeiro encontro com um Moisés retirado que o afaga e o limpa mais
um bocadinho da lama da cantina anterior. E da fina e cortante música
da solidão passamos à tristeza mais lancinante onde todos, muito
velhos e muitos jovens, não se importam de morrer por morrer. O
chefe da quadrilha de sangue envenenado como os duros e nocturnos
escorpiões que lhe basta a pança cheia de tequilha e só a carne da
mulher e não o espírito para puder morrer de qualquer jeito; a
mulher deste que vai traindo Brando e se entregando
incondicionalmente em movimentos e soluções estonteantes de vida ou
de morte; e o Moisés que julgávamos imperturbável, afirmando sem
receios que um dia se cansará e que lhe bastará descer uns passos
para o seu túmulo pronto. Moisés que entre brumas longínquas e
antiquíssimas oferece o túmulo ao par com os pés para a cova,
fazendo-o renascer nesse fundo, sem nada querer em troca - Go down
Moses, e a salvação. E a luz.
Então só poderia ser no sacro enterro
do velho que a mão do destino começa a sua rotação sem travagem, com a
testemunha dos céus grávidos e da terra seca. Daí tudo vira, o
fundamental e os fundamentos começam a entrar em concordância e em
eixos sólidos; para o duelo final ser tão à distância e a perder
de vista como as incomensuráveis paisagens que regressarão
abraçadas com os sonhos interiores. A imagem final, estática,
frontal, eterna, para os altos, é o forçar da comunidade, catedral
da salvação, e mesmo que dure só até ao The End, comporta o peso
do tudo. E das raças todas, sem fronteiras, sem credos.
domingo, 13 de agosto de 2017
"Sayonara", Joshua Logan, 1957
“Sayonara”, que quer dizer Adeus,
foi transformado num princípio em 1957 por Marlon Brando, Miiko Taka
e Joshua Logan; e mais ainda pelo casal que enlaça no final branco e
primordial de “Os Amantes Crucificados” de Kenji Mizoguchi,
amantes vividos por Red Buttons e Miyoshi Umeki terrenamente até à
cena virginal e doce em que Brando os encontra já para lá da sempre
redutora beleza terrestre; alguns ou muitos de nós não chegarão a
conhecer tal passagem, pois que com ou sem metafísica nunca se deram
assim; nunca passaram certa fronteira... e “fronteira” é a
palavra e cerne deste filme que é uma empreitada por amor à
humanidade e ao básico.
“Sayonara” deveria ser projectado
num ecrã tão grande e simples e evidente que abarcasse todos os
continentes para uma união óbvia.
Tudo neste filme é belo pois derruba
com a beleza mais simples as correntes das leis mais avançadas; é
Brando a começar a bater com a sua cabeça e com o seu corpo em tudo
o que é décor e forma (e espírito) Japonês; é a sua única amada
a cair na poça da cultura e da herança (e da bruteza); e,
devagarinho, lentamente, como as águas onde se lavam os panos sem
fim ou como o vento que bate nas flores de cerejeira etéreas, ele
começa a dominar o espaço e a perceber o tempo alheio, a saber que
os meios e o caminho podem ser tão ou mais importante do que os
fins; e ela, surgindo tão impassível e zen como a imagem mais
acabada do sol nascente, torna-se lacónica, cuspe verdades, quase ou
até selvática sem conta, rompe e explode.
Brando admira e chora pelas rochas
amantes e torna-se Japonês. Miiko Taka percebe desde os primeiros
olhares envergonhados de namoradinhos de escola que até yankees
podem ter toda a plenitude solar, e torna-se Americana. Mas chegar só
a esta conclusão é alinhar no que “Sayonara” derruba, que é
aquilo que eles confessam tão simplesmente, tão basicamente, tão
preto no branco e sem margem para dúvidas, envergonhando a Sociedade
com S maiúsculo imposto a sangue: cada um é um mesmo de onde
Família e Tradição e Esperado e País terá de se renovar
constantemente pela verdade, pelo amor, pela justeza, pelo olhar
inocente de namoradinhos do pátio proibido da infância.
E no final formam um com a
individualidade intacta, a revolução e o regresso à fonte
inaugural. “Sayonara” está num acreditar e num limbo para lá ou
para cá de todas as convenções; do actors studio feito para
cada qual e sem marca até ao ritualismo sem império; simplismo -
fatalismo (o belo simplismo, a bela irresponsabilidade), como Ford ou Kazan a dialogar abertamente com Mizoguchi ou Ozu. No
ocaso, sayonara, adeus, tudo de novo.
quinta-feira, 6 de julho de 2017
"Island in the Sun", Robert Rossen, 1957
“Island in the Sun”
escancara e condensa o facto de Robert Rossen ser um dos grandes
mestres do enquadramento americano. Estamos perante um mosaico, em
que as corridas eleitorais ou mesmo os crimes e castigos literais ou
simbólicos escritos no presente puro são parte lamentavelmente
acessória de uma grande engrenagem encetada pelos imemoriais anos,
talvez quando se inventou que o remédio para a solidão era dividir
o mundo entre preto e branco, ricos e pobres, esquerdas e direitas,
femininos e masculinos e por aí fora. Rossen acredita, como um Losey
ou um Kazan mas com um nervo que se magnetiza aos olhos e à postura
da carne e logo ao interior e não tanto à relação com a
profundidade espacial – mesmo que aqui ela (a profundidade) também
escancare e até comente – que toda a tensão do drama e do choque
é questão de linhas e de tempo, de aguentar o máximo de crispação
e de conflito num ponto-de-vista único e inquestionável. Basta a
cena entre James Mason e a esposa ao espelho para se perceber que
haverá tragédia – que até é mais significativa por estar em
picado do que a cena da violação conjugal em campo de flores
idílico; ou o momento penoso em que o mesmo Mason é desafiado a
“tomar conta da ilha” pelo homem que irá trucidar e o
extraordinário Harry Belafonte de rompante ocupa o lado contrário
do quadro e tudo se vai desequilibrando, equilibrando, num balanço
realmente precário e grave que rebenta com qualquer medida ou
fórmula – e a maneira como não se corta abruptamente mas com o
tempo preciso e indecifrável para o negro e a loira que serão a
chave final e irresolúvel de tudo é a imagem acabada deste tipo de
casta. No cantinho insignificante do recorte pode estar o fundamental
ou a humanidade completa, o ser e a paisagem centrados.
Da abertura em que ficamos a saber tudo
daquela ilha queimada pelo combustível transcendental do Sol – e
ficamos a saber mesmo tudo, da pesca às canas, como depois iremos
ver a pedra a ser trabalhada parecendo já outro continente, as
típicas bananas ou os rituais maquiavélicos da alegria e irrisão
carnavalesca – e onde a música de embalo e que tem coisas a dizer
ao invés de apagar a rugosidade só a amplia – escutamos o vento
nas ervas e os riscos na pele, sabemos que o perigo espreita em cada
esquina ou sombra do espaço, vindo de qualquer hora; não perigos
grandiosos, explosões ou a Épica, mas a enervante pulsão
incontrolável do rumor, trovoada do inesperado, o animal dentro de
cada ser por mais sossegado que seja – Zola ou Frank Norris também
estão aqui mas a um nível disseminado, sem preparação ou suspeita
– como um filho a travar a bofetada da Mãe devolvendo pelo gesto e
olhar um crime em potência, a velocidade do carro do mesmo Mason a
clamar genocídios, culminando na tal morte que é um instante de
inocência para lá do concebido.
O "criminoso" naquela ilha que funciona
como um poço do inferno que seria juntar todas as raças e credos
para uma análise é algo abstracto, endémico e alastrador como as
pestes que Rossen persegue com a força vingadora e justiceira das
formas mais básicas e mais potentes – a fixidez de um olhar,
quanto tempo se aguenta olhar para o busílis, para o sol, a
matemática ou a harmonia menos analítica e completamente pulsional,
estilhaçada, corpo-a-corpo com a matéria que colhe. Não temos
personagens principais mas uma gesta emoldurada onde alguém sai por
uns momentos breves ou eternos mas volta – dá para nos esquecermos
da situação anterior – para o enquadramento que parece também
ter as suas razões recônditas, como um deus, mas um deus humano,
pulsante e mesmo parcial, lembrando o berço universal aonde se volta
sempre no “Intolerance” de Griffith. «Há um momento da vida em
que deixamos de ser muitas coisas para sermos só uma. Cobardes»,
diz Gary Cooper, noutro dos filmes máximos de Rossen, “They Came
to Cordura”, e é o que se passa na energia das formas que envolvem
“The Hustler” ou o conto já no outro mundo chamado “Lilith”,
formas que se vão decidindo, concentrando, apurando; todos os
choques, embates, contrários, faíscas, cores, credos, lados, lutas
gigantescas entre a representação dos actores e a sua verdade – a
psicose de Mason é gémea da de “Bigger than Life” -são
travados igualmente com o cinema, a distância, a medida da verdade.
Uma cena em Rossen começa com todas as possibilidades e termina num
big-bang que tudo denúncia.
“Island in the Sun”, que poderia
ser um remake de “Light in August”, é um dos mais Faulknarianos
filmes da história. Existe aquele paraíso etéreo do musical que
faz o todo planar e partir-se ainda mais – Belafonte a cantar e a
comungar com os seus – miscigenação indestrinçável, sangue e
sémen desterrados, segredos mortos e enterrados a clamarem dum
tumulo longínquo e vivo, lirismo terminal da manifestação e
impassibilidade da natura em torno do desespero dos apaixonados que
tentam sondar a grande resposta; e o começo do éden a imiscuir-se
no inferno; Faulknariano de um modo menos doentio e tétrico do que a
parte aterradora de “Today We Live” e mais a apontar para a
solidão do plano derradeiro, onde um homem caminha em direcção ao
nada e envolvido e fazendo corpo presente num laranja fogo de um
crepúsculo, pacificado na sua completa divisão. Depois de tudo ter
acabado, passados os degredos ou sempre chafurdando neles, ainda o
Homem. Mais uma vez e depois de Rossen nos ter mostrado que aguentava
todo o peso do cosmos, do pecado e da luz nos seus ombros que são os
de cada um.
Glauber Rocha num aeroporto a ver alguém numa livraria com “The Wild Palms” em punho e reconhecendo Robert Rossen (contou-me Bruno Andrade depois de lhe ter contado Carlão Reichenbach que o soube pelo próprio Glauber). Pela casta e pela garra os homens reconhecem-se. Até à última rocha inútil suspensa sem ordem na última noite vermelha e moribunda.
Glauber Rocha num aeroporto a ver alguém numa livraria com “The Wild Palms” em punho e reconhecendo Robert Rossen (contou-me Bruno Andrade depois de lhe ter contado Carlão Reichenbach que o soube pelo próprio Glauber). Pela casta e pela garra os homens reconhecem-se. Até à última rocha inútil suspensa sem ordem na última noite vermelha e moribunda.
quarta-feira, 7 de junho de 2017
"The Sunchaser", Michael Cimino, 1996
«Watch out for the Judas, man!» grita
o condenado de Jon Seda prestes a salvar-se para o raptado Woody
Harrelson pouco depois deste lhe ter agradecido outro tipo de
resgate. Nesse topo do mundo, pertíssimo dos céus e dos deuses que
dizem existir de maneiras diversas, à beira dos lagos das montanhas
mágicas e envoltos nos espíritos e nas formas transcendentais da
natureza, não se esquece o que se viu lá em baixo, nas urbes
viciadas demais que são as maquinações dos infernos possíveis.
Nos segundos de respiração derradeira, visto o outro mundo, tocada
a pureza, Seda, Harrelson e Cimino agradecem às montanhas e às
nuvens mas ainda não perdoam às polícias e às restantes amordaças
enfatuadas.
É este o percurso sideral que o filme
atravessa cadentemente e une, tentando desfazer o primeiro mundo no
último paraíso, a construção na abstracção, à imagem do
mergulho final do “doente” prestes a limpar-se. Numa lancinante
claridade, “The Sunchaser”, filme de juventude e de sangue na
guelra e filme de velhíssimo curandeiro que tudo observou pasmado e
impassível, pronto para colher acalmias e tempestades, mostra-nos, à
medida e altura do voo da águia e dos helicópteros que por lá
planam (a máquina e o “antes de nós”), como nos comportamos e o
que criámos através da técnica e da ciência do cinema como lupa e
espelho; que tendo sabido da deambulação romanesca da literatura ou
da féerie da pintura, percebido a música ou falando com a modelação
comum, nos permite sentir o interior e analisar perfeitamente a
superfície só com o subjectivo de cada um – cúmulo da cosmologia
e transfiguração do Cinema Americano e exemplo supremo da fusão do
presente com a eternidade.
Na primeira parte Cimino cola a câmara aos passeios sujos e às chapas amolgadas, aos canos de escape tunados e à combustão carnívora no planeta de concreto; faz com que o cheiro da borracha queimada e dos cadáveres dos gangues negros e demais da California dos anos 90 seja só aquilo mas desperte barulhentas e arruínadas Romas e ressuscite Herodes (palácios ou berços, sempre o poder - «Então cumpriu-se o que foi dito pelo profeta Jeremias: Ouviu-se um clamor em Ramá, Choro e grande lamento; Era Raquel chorando a seus filhos, E não querendo ser consolada, porque eles já não existem», Mateus 2:16-17, citando Jeremias 31:15 - que diferença para os infanticídios dos 2Pac ou Biggie e as mães desprotegidas sabendo que o choro imediato é apenas a menor das catastrofes?); graffita o genérico a cores e temperaturas berrantes e mete em pé de guerra a consciência terminal de um cancro com o espectáculo pueril e perigoso da moda e das aparências (a respeitabilidade e o brilho falso que Seda arrancará a Harrelson), metendo o rap em feat com o clássico “What a Difference a Day Makes”, os engravatados na mesma carreira dos dreads, a arquitectura pós-moderna a ser engolida pelo deserto e pelas reservas originais e o fogo das metralhadores a calarem-se no silêncio cósmico; depois de tanta festa e tanta cor o medo e o temor do desconhecido... Assim, faiscando no presente tenso até entrar em campo a fabulosa personagem da Fordiana Anne Bancroft e de se ordenar em prespectiva e relação irresolúvel a medicina, a mitologia e Tupac Shakur - They Got Money For Wars But Can't Feed The Poor (adeus escória, prefiro o outro mundo). E falando de Massacre dos Inocentes, Cimino estará assim tão afastado de Rubens ou é mais uma sequela?
Partida essa
barreira entra também em cena Monument Valley e definitivamente o
sagrado que tudo aceita. Mas em resistência ao transcendental
continuam as lutas e mais lutas dos dois ainda condenados, tentam-se
novos regressos aos cheiros insustentáveis dos hospitais,
experimentam-se os degredos e tentações do meio do caminho...
começando algures, sem óbvio plot de argumentista, a advir
em filigrana e na paz dos anjos o entendimento, a constatação do
próximo, o encontro dos contrários, o semelhante diferenciado, a
reciclagem e os recomeços, o prometido no preto & branco dos
sonhos, a Natureza. Como escreveram e cantam Mundo Segundo e Sam
the kid, agora:
«Também faz parte
Pensei num péssimo e disse inicio
Pra vir encarar á pressa ou começa no sacrifício
Em cada fim há um ínicio, em cada ínicio uma história
É hipótese duma nova trajetória, porque a glória
Também faz parte»
«Também faz parte
Pensei num péssimo e disse inicio
Pra vir encarar á pressa ou começa no sacrifício
Em cada fim há um ínicio, em cada ínicio uma história
É hipótese duma nova trajetória, porque a glória
Também faz parte»
O
cometa vai pressentindo a terra prometida e o thriller que
também foi policial e filme-negro chega fatalmente ao western,
e volta a encontrar um novo mundo, já triste demais em comparação
com o cinema clássico ou apenas lógico na mescla de motores,
gasolina, índios, cavalos e tecnocratas invasores, mas com tudo
intacto a explorar para além do que a vista alcança. «Apenas um
monte de pedras e neve. E tristeza. Uma grande tristeza. Mas para os
Navajos, ali é onde habitam os espíritos. A forma que a terra
encontra para contar histórias», avisa uma super-mulher no centro
do centro do nada que tudo comporta, indicando a direcção para
todos os lugares e todas as horas. Do primitivo e directo anjo e
demónio Tupac para o simbolismo e subtileza de Andrew Wyeth ou
Hopper, Americanos por excelência. Até que todo o ecrã e toda a
profundidade são abarcados pelo ser primitivo que percebeu Dibe'
Ni'tsaa e as lyrics
dos genocídios de bairro, ouvindo as orações e os escarros úteis
de linguagem com o mesmo interesse – essa personagem monumental e
indecifrável, de beleza, singeleza e imponência devastadoras é o
homem Michael Cimino, muito antes do artista. Tal como tinha sido
vândalo ou águia, gangsta
ou Bancroft, aí, funde-se no absoluto - «I wrote a song
'bout every damned thing I've seen»
cantou no seu livro “Big Jane” ou reinventou e levou a elevado lume Marta Ramos a partir de mais essa viagem a todo o rumor inexplorado.
O mergulho, salvação e ilusão finais comentam pacíficos os suicídios inaugurais e provam que estamos perante um cineasta tão panteísta e de alcance infinito como alguém plantado no seu tempo, investigador e personagem activo no teatro que o acolheu, um realista lúcido e atento, torturado e enternecido mas que não dá tréguas, imiscuindo-se nos pântanos do Mal para só daí tentar alcançar as águas de Deus, os Édens e a forma elementar. Cimino que amou Jackson Pollock e Rembrandt, o estilhaço e o composto, as tripas e o cristalino azul do oceano, o semelhante e o longínquo. Cimino que no meio dessa década explosiva fez a obra definitiva sobre os boyz n the hood (respect to Singleton and Ice Cube), da raivosa música ao bailado chamado basquetebol, da intolerância à justiça poética, estando toda a carne e toda a alma, toda a iconografia e mito, representados no seminal Jon Seda que lá no cúmulo também canta como sorri «Flying like an eagle through rainbows (...) the outlaw and the Indian flew (...) roll big chief roll...» do citado romance. “The Sunchaser” é o mais puro canto, porque panorâmico e com todos os tons e harmonias, do findar de milénio. Tudo nos convoca e oferece e todos os traçados e atalhos nos propõe. Que muitos não tenham querido ver, não pudessem ver cegos de tanta publicidade, ou tenham participado no apagamento tal como apagaram Cimino; que outros tivessem visto e arriscado e que mais ainda possam ir a tempo, é parte e todo da dádiva. O lago inesgotável.
É Bob Dylan, o romântico baladeiro e o selvagem, o místico assilvestrado e andarilho sem moda, que certo dia como Cimino percebeu que o hip-hop não era só antro de milhões e de pussys mas no essencial uma cultura e movimentação primitiva, original, autóctone, enfim, pertencente à terra e nascida nela, pioneiros com causa, cientistas, sedentos, escrevendo assim:
«Danny
perguntou-me o que é que eu tinha andado a ouvir e disse-lhe o
Ice-T. Ficou espantado mas não devia ter ficado. Uns anos antes,
Kurtis Blow, um rapper de Brooklin que teve um êxito chamado “The
Breaks”, convidou-me para entrar num dos discos dele, e
familiarizou-me com aquela coisa. Ice-T, Public Enemy, N.W.A., Run –
D.M.C. Aqueles tipos não estavam mesmo para aguentar tretas. Andavam
a bater nos tambores, a partir tudo, a dar cabo do sistema. Eram
poetas e sabiam bem o que estava na berra. Mais cedo ou mais tarde,
estava destinado a aparecer alguém diferente que conhecesse aquele
mundo, que tivesse nascido e sido criado nele... ser tudo aquilo e
mais qualquer coisa. Alguém com uma cabeça talhada para ser o
melhor da paróquia e com poder na comunidade. Ele seria capaz de se
equilibrar só numa perna numa corda bamba esticada pelo universo e
seria reconhecido quando chegasse – não há ninguém igual a ele.
O público seguiria aquela tendência, e eu não os censurava. O tipo
de música que eu e o Danny estávamos a fazer era arcaica. Não lhe
disse isso, mas honestamente era o que sentia. Com o Ice-T e os
Public Enemy a abrir caminho, um novo interprete estava destinado a
aparecer, e nada como o Elvis. Não iria abanar as ancas e ficar a
olhar para as rapariguinhas. Utilizaria palavras duras e trabalharia
dezoito horas por dia.»
Blue como Cimino. O
descomunal índio e a descomunal magia. Percurso sideral por essa
música e profecia e liderança. Do sonho ao possível. Do fascinante
ao absoluto. Da carne e da gravidade ao voo livre das almas. Para lá
disso tudo. Do conhecido. Quem acredita, verá, tão velho e tão
novo quanto isso.
Watch out for the
Judas, man!
terça-feira, 30 de maio de 2017
Encontros com Tonacci
Para a Cristina Amaral
Eram finais de Março de 2015, o Andrea Tonacci e a Cristina Amaral chegaram com o Sérgio Alpendre de madrugada ao aeroporto de Lisboa onde os fomos buscar. Depois da habitual espera, os três aparecem e é o Tonacci que repara no acenar do Zé e chama atenção para o Sérgio olhar na nossa direcção para nos identificar. Logo no primeiro contacto, a delicadeza de Tonacci e a simpatia da sua companheira cativaram-nos. Face ao cansaço patente, visto não terem dormido nada durante a longa jornada, propusemos que descansassem na casa da Marta, pedindo desculpa pelos muitos degraus que teriam de subir para lá chegar. Eles acederam sem reservas e “cochilaram” lá até perto do meio dia. Depois do merecido descanso, ao pequeno almoço a conversa versou sobre o silêncio de Lisboa (!?) em comparação com a cidade de São Paulo e alguns projectos futuros do Tonacci. Estávamos perante um jovem realizador.
O almoço estava marcado para minutos depois na cinemateca e por isso falámos mais do que comemos nessa segunda refeição. Apressadamente dirigimo-nos para o Fundão, com o resto dos convidados e alguns amigos que aproveitaram a boleia entre os quais Manuel Mozos e Vítor Gonçalves. Outro dos encontros mais bonitos deu-se na estação de serviço a meio da A23, quando Tonacci, Cristina e Vítor entabularam a primeira conversa dando inicio a uma amizade que os levaria na semana seguinte a um passeio junto ao Tejo e a comer pasteis de Belém.
A cova da beira com as serras da Gardunha e da Estrela, assim como o ambiente bucólico da cidade do Fundão, conquistaram desde logo os nossos convidados do Brasil e nem o frio lhes estragou o entusiasmo. Os seus comentários e apreciações ao longo destes dias levavam-nos a olhar as coisas de outra forma, a ouvir e ver mais atentamente.
O bloco Andrea Tonacci estava programado para essa mesma noite e o filme escolhido era o inédito em Portugal Já Visto Jamais Visto que recupera material nunca usado com uma montagem “intemporal” da Cristina Amaral. Lentamente nos é revelada a dimensão intimista e as relações afectivas do realizador, especialmente para com o filho, culminando num dos planos mais bonitos do filme em que o mesmo aparece, ainda pequeno, empunhando uma arma no topo de uma montanha num crepúsculo incendiado.
Bastante surpreendente foi a escolha do filme de acompanhamento, Tatakox – Aldeia Vila Nova, um trabalho de uma tribo de Índios da Amazónia que, com Tonacci, descobriu um novo mundo nas possibilidades de ver registados os seus rituais ancestrais.
A experiência foi bastante impressionante e até macabra, para nós espetadores protegidos pela cinefilia, visto tratar-se de um olhar virgem sobre uma realidade distante.
Pena que nesta ocasião não houvesse oportunidade para ver todos os filmes de Tonacci, principalmente os que testemunham a forte relação com os Indígenas. A luta pelos seus direitos levou-o literalmente a viver na selva com eles partilhando as suas dificuldades e colocando a sua própria vida em risco nessa demanda. Tonacci chegou a eles humilde e foi aceite como um dos seus.
A complexidade dos seus filmes neste contexto, expondo tanto as forças e grandezas como as vulnerabilidades e misérias destas comunidades, sem julgamentos nem santificações, é também uma imagem deste homem cuja personalidade revela mais a humanidade de um olhar que a militância de uma causa. Longe de qualquer antropologia forçada, a sua condição talvez corresponda mais às constantes deambulações de Carapirú no Serras da Desordem. Alguém sempre à procura de relações de pertença e de identidade mas com um sentimento permanente de insatisfação e uma sede de liberdade sem amarras.
Inesquecíveis para todos, foram as histórias que ele contou da convivência com os índios que parece ter sido tão importante para a sua visão das coisas. O apuramento dos sentidos necessário para a sobrevivência na selva culminou em êxtases místicos, praticamente alucinogénios, onde, na suspensão de uma cama de rede e perdido o chão, vislumbrou, no céu estrelado, uma paleta de sons e perspetivas densas de perdição no coração das trevas.
Após a vivência de algum tempo na selva o regresso a São Paulo era sempre difícil e a imagem que nos deu de uma parede branca olhada depois dessa experiência, descortinava uma data de tons e detalhes nessa superfície que no quotidiano de uma cidade passa completamente despercebida.
À saída da sala, e depois de se ter falado da incursão do Tonacci nas reservas índias nos Estados Unidos, onde John Ford imprimiu a sua lenda, o Zé falou-lhe de um sonho antigo de percorrer esse território, mas que ainda lhe faltava coragem, ao que Tonacci, de um modo firme e quase severo, respondeu que, muitas vezes, é preciso sermos irresponsáveis para cumprirmos os nossos objetivos.
Vivida a saga do Fundão, o casal planeava um ida ao Porto em parte motivada pela possibilidade de reencontrar Manoel de Oliveira, mas dado o estado de saúde do cineasta português, ficaram-se pelo passeio.
Uns dias depois voltámos a estar com eles na Cinemateca Portuguesa, onde fomos conduzidos pelos interiores neo-arabes do edifício numa visita guiada e acompanhada por José Manuel Costa. Nessa noite iniciou-se um pequeno ciclo que incluía os filmes já referidos sobre os Índios, entre outros da sua dispersa mas intensa filmografia.
No dia seguinte, a Cristina e o Tonacci voltaram a subir os quatro andares da casa da Marta para um almoço quase familiar a que se juntaram, entre outros, o Bruno e a irmã da Marta que muito conversou com a Cristina sobre educação e ensino dos dois países irmãos.
Nas conversas que iam e vinham entre a sala de estar e a cozinha alguém afirma que fazer um “filme a sério” é bem mais complicado do que aquilo que se supõe, visto que há que construir um argumento, filmar, montar, fazer a banda-sonora, limar as arestas, etc., etc. Ao que Tonacci, sempre disposto a ensinar como a aprender, a falar como a escutar, sugere que pode não ser bem assim, que tudo nasce organicamente do envolvimento afectivo e emocional com as pessoas e as coisas, inclusive a feitura de um filme... ou seja, das salas escuras para a luminosidade Lisboeta, é a repetição da leitura de O Desprezo de Alberto Moravia em Já Visto Jamais Visto, que só nos diz que há mil maneiras de fazer um filme como há mil maneiras de viver.
Aproveitando um momento mais intimista nessa tarde depois do almoço, o Zé mostrou-lhes os vídeos musicais que temos feito, e o Tonacci expressando o seu agrado por o que apelidou de “filmes de amor” aconselhou a não ter receio de tentar o grande plano, filmar o rosto mais de perto.
Nessa altura, cada encontro com eles já tinha o sabor de uma longa amizade, como se já nos conhecêssemos há muito mas ainda tivéssemos toda a vida a nossa frente. E era sempre o Tonacci que nos reavivava esse sentimento com uma data de planos para voltar a Portugal, para trabalhar naquele projecto de pesquisa sobre os índios europeus. Chegou mesmo a encontrar-se com historiadores e deve ter conhecido todos os alfarrabistas de Lisboa para arranjar bibliografia... os “sebos” lisboetas ganharam fama entre os amigos brasileiros. O Sérgio Alpendre cada vez que cá vem, deve livrar-se de roupa para poder levar livros.
Despedimo-nos com a promessa do regresso deles ou de uma ida nossa ao Brasil, mas com a possibilidade de ainda nos vermos no dia seguinte, pois eles voltariam à Cinemateca para mais pesquisa antes da partida. E como foi precioso termos lá voltado para a derradeira despedida!!
«Sempre apareceram» - disse o Tonacci com aquele sorriso de criança, quando nos viu.
E seguimos com eles para a baixa para mais uma incursão “alfarrabistica” deles e nós na direcção do concerto da Marta em que o “Acaso” se ia estrear. Parámos no S. Jorge para um café na esplanada e foi aí, com o vento nas árvores da avenida, que a Marta lhes cantou o Espelho Quebrado:
Com o seu chicote o vento, quebra o espelho do lago
em mim foi mais violento, o estrago
porque o vento ao passar murmurava o teu nome
depois de o murmurar deixou-me (...)
«Pena não termos gravado este momento» lamentou a Cristina a Tonacci depois de tudo terem escutado com a máxima atenção, concluindo rapidamente que foi bom não terem utilizado a câmara pois assim levariam tudo no coração. Já na avenida, antes dos beijos e abraços ficou no ar o seu regresso para continuarem as pesquisas, e a promessa de que os ajudaríamos a encontrar uma casa quando decidissem voltar.
Chegados a esta edição dos Encontros em que veremos Olho por Olho, Blábláblá e Bang Bang, filmes de inicio de carreira onde irrompe uma tal violência aleatória e irracional e comparando com a doçura e a serenidade deste príncipe de modos simples e naturais que tivemos o privilégio de conhecer há dois anos, supomos que tenha talvez sido o tempo, a vida e a sede de conhecimento e de aproximação ao outro que conjugou tudo isso. A marca da sua calma, coragem e pulsão de vida simultaneamente será indelével em nós. Obrigado Tonacci.
Marta Ramos e José Oliveira
Maio 2017
[*texto publicado originalmente no Jornal dos Encontros Cinematográficos 2017]
domingo, 7 de maio de 2017
"Above the Rim", Jeff Pollack, 1994
AtR continua a ser mostrado nas aulas
de Filosofia ou até mesmo nas de Educação e cidadania, como
exemplo de superação, do hereditário, da possibilidade de
concretização dos sonhos mesmo nos locais mais cinzentos, enfim,
para dizer aos alunos perdidos que o crime não compensa; mas não é
por aí que se chega a algo de especial. Se formos ao “cinema” e
à “convenção crítica” também não vamos muito lá, pois Jeff
Pollack, o realizador, foi um dos criadores do “The Fresh Prince of
Bel Air” e de outras séries e filmes que não o vão meter nos
anais nem proporcionar retrospectivas, nem na pequena história,
porventura; por outro lado estamos a planetas da dramaturgia cósmica
emplacada num court de Spike Lee; e há quem diga que foi só mais um
veículo para Tupac Shakur e para mais uma banda-sonora de éxito e
tal... produto ou mercadoria para amamentar mil e um top de qualquer Billboard...
Mas vamos a três momentos, sem
desconto de tempo: no berço, o movimento de câmara (panorâmica,
senhor professor?) que apanha Michael Jordan suspenso no espaço
sideral, brilhante como a primeira estrela cadente na noite
inaugural, passa pela desarrumação do jovem artista e encontra a
estrela do momento pronta a render, acabando tudo enquadrado na
catadura do samurai Pat Ewing (salvou-nos tanto como Barkley e Rodman
nos libertaram), inclusive o Pump Pump de Snoop Dogg e Dre – todos
os anos de 90, as fitas de celulóide a desenrolarem-se e a
justificarem a sua razão de ser, e a rima para a posterior projecção
e cantoria quimérica e realista de “Shaft”, carga sem
metafísica.
Segundo andamento, no caminho, rasgando
o ar do tempo e do espaço, contra o cronometro: quando a estrela do
momento humilha o vagabundo que poderia ter sido alguém e este é
“salvo” pelo que quis ser ninguém; no epicentro das ilusões
perdidas, fica clara a questão da facilidade do presente em relação
à memória, o despachar com um chuto-no-rabo ao invés de ganhar
tempo com o legado, o que fazer com o grande momento que já passou e
que não ficou nos livros, e como isso é igual aos erros que as
grandes nações e chefes cometem ciclicamente, chegando os
genocídios e as guerras; e, claro, fala dos grandes que só o foram
fugazmente pois preferiram, e certos, pois são eles a decidir, o seu
“vício” que para eles é a felicidade mais do que todo o ouro e
compromisso da fama – um Belarmino Fragoso ou um José Egas dos
Santos Branco (a.k.a Zequinha), jogador da bola que passou por clubes
como Setúbal ou Porto, hoje trintão e finalizada a carreira, que
arrancou um cartão vermelho das mãos de um árbitro, irradiado mil
vezes. Cena em que se percebe a irremediabilidade do “agora” em
gravidade inusitada, o milésimo de segundo a levantar a espada
ameaçando o eterno, ainda mais porque não se chama a atenção para
tal, é só uma luta de egos.
Por último, já no cesto, passando o
aro, contando: depois da vedeta cair na realidade não porque lhe
aumentaram o número e a qualidade das garinas mas porque trataram
abaixo de cão o seu amigo de infância; passado o confronto com os
fantasmas de outrora e estendida a rampa da redenção a cada qual,
depois de mais um bailado comum em que o fogo-de-artifício da
maquineta e da montagem e dos filtros poderiam ter brilhado mas
ficaram no banco, um “last minute rescue” à força toda, cosendo
as pontas soltas, as esquadrias e simetrias, bem como o punch
perfeito para a conclusão da aula benemérita. Mas... fundo mas...
como num afundanço... o que acontece para cá do televisor
(sequência final do palco do bairro à transmissão televisiva) foi
a trajectória da bola que traçou o movimento do filme: a
aprendizagem, ou crescimento, ou meter-se na linha certa, enfim, não
cometer passos, é sempre fintar, sem o desprezar, esse prenúncio de
morte; é enfrentá-lo, mesmo que seja um Tupac (ou um The Notorious
B.I.G.) símbolo irónico de todas as misérias e pulsões do
instante.
Quase nada, domingo de tarde, e precioso.
p.s: já que se anda por estas redondezas, “Straight Outta Compton” de 2015 é bem justo e muito bom; pelo fundo em causa ainda não deu para estrear em muitos países, como o nosso, nem nas cinematecas, muito menos para imprimir dossiers culturais, mas talvez seja só pela forma que é bom e justo, o resto vive inseparavelmente nisso, como tudo que importa; feito em plano-sequência (beats erguendo um enorme corpo orgânico que pode acarretar com tudo) com um grande Coppola, sem efeitos ou loops de transição fácil ou de reconciliação provocada só por truques e mercantilismos de plot, segue pessoas e situações como se pertencessem aos anos de Bathsheba ou numa Síria de agora, ao lado e nunca picando ou usando de superioridade cinematográfica; muito mais próximo de um Dj Kronic do que dos discípulos de um Vibe, de Zeca Afonso do que António Zambujo, é uma peça para um tempo e para uma profecia que ainda tem tudo para oferecer. E F. Gary Gray, desde o magnetismo com que apanhou o terreno convulso da face e as ondas carregadas da voz de Sam Jackson em “The Negotiator”, com certeza nunca quis enganar alguém.
quarta-feira, 12 de abril de 2017
The Juggler, Edward Dmytryk, 1953
Por causa da loucura e do sadismo dos
homens a maior paixão de Kirk Douglas em “The Juggler” de Edward
Dmytryk torna-se a sua condenação. Antes da segunda grande guerra
mundial, antes dos campos de concentração, antes da criação do
novo estado de Israel, Kirk era um malabarista famoso, mas famoso não
por causa de algum brilho inútil mas sim porque desenvolvia e
partilhava com os outros a sua grande dádiva, o seu talento, aquilo
para que nasceu – apaixonava-o mover os objectos para cima e para
baixo, suspensão e equilíbrio, o velho gosto de desafiar a
gravidade.
Mas depois, ensinaram-lhe que o terror
pode ser mais forte do que o desgosto, quando as paredes ganharam
vida e se moveram para o esmagar, quando suplicou ao solo rijo a
morte mas ele era duro demais, quando partilhou o ar de um homem com
dez e aí, nesse atrofio do para cima e para baixo, da suspensão e
do equilíbrio, da gravidade, convenceu-se que a casa é um lugar a
se perder. Tornou-se egoísta com os seus prazeres impartilháveis e
tornou essa recordação agradável. O terror a martelar o medo. A
loucura e o sadismo de certos homens a tornar as coordenadas, a
geometria e a física dos sonhos no maior dos pesadelos.
Já era assim em “Give Us This Day”,
com as tempestades nos céus e os cristos de betão em digladiação,
a ontologia ou a sublimação da pureza trucidados pelo poder. Depois
de tamanhas visões e descargas o malabarista de Kirk só vai
conseguir reduzir a cinzas o seu retrato criminoso de jornal e
deixá-lo assim, sem magia. Mas Dmytryk, implacável e a ter de ser
tão duro como os monstros, no meio de tanta descarnação, agrura,
pó – é um dos grandes realistas americanos, fundindo a epifania
absoluta da natureza em Vidor com a revelação da matéria em
Rossellini, atingindo então a transfiguração e o espírito –
passa com Kirk o dom ao menino Israelita, em eterna Galileia, entre (mas que não se
esqueça daquela dança mitológica que começa a meter a essência
nos eixos devidos) a aparição da mulher e o terrível travelling ou
zoom que lhe fura cara adentro, transforma a pele em grão, perscruta
as entranhas, destrói o atrofio e recupera o balanço, o cimo e o
baixo, equilíbrio, gravidade. Dmytryk, funâmbulo e consciente,
defronte do mal abstrato e exacto, sabendo das magias e das
maravilhas humanas, conhecendo o poder da aplicação do recurso
certo da câmara aliando-se à montagem – do arejamento e da
clausura como da carne e do espírito – acata a contradição,
percebe-a, mas também a desmonta, com tudo e mais alguma coisa em
direcção às justiças e vinganças que Chaplin tanto meteu em
prática. Terrífica e equilibrante luta.
sexta-feira, 24 de março de 2017
"Paterson", Jim Jarmusch, 2016
Sem tradução precisa.
William Carlos Williams, o espírito que rescende em Paterson, a cidade e o poeta, que os molda e os liberta - em casa de Paterson e de Laura, na ancestral cascata que é um homem, uma mulher, no visitante mais estranho e comum, em caracteres Japoneses. Espírito de amor e riso.
Sem tradução precisa.
Aproximação de coisas muito
diferentes. Olhar as distâncias em perspectiva nova. Deixar que as
esferas e os elementos díspares se conheçam e falem entre si. A luz
da noite e a luz do dia envolvidos. “Paterson” é o mais
essencial (primeiro) dos filmes de Jim Jarmusch pois não força os
encontros no caos da realidade cronometrada mas vislumbra um mundo
perfeito que nos indica todas as possibilidades e combinações
infinitas. Desenterra os paraísos perdidos e acende novas luzes.
Para Paterson, o poeta que conduz autocarros, encontra poesia em tudo
e vê em cada um outro poeta, não há limites nem barreiras na
realidade. O seu constante sorriso tudo abarca e aceita. Tudo, o
gesto central deste poema inaugural e inteiro que tem as propriedades
das grandes curas. Como quem limpa as feridas ou tira os pecados do
mundo.
Poema da banalidade. A pura poesia dos
sonhos da sua mulher, Laura. O autocarro a largar a garagem e os
reflexos, as sobreposições, cintilações, as palavras disso tudo a
serem escritas na tela. Ruas, céus, água, pessoas, palavras. Tudo
encontra parte em tudo, diferente e um num só corpo. Poesia inscrita
no corpo da paisagem. Extraída a ela e logo devolvida. Dádiva,
aceitação e retorno de mãos vazias. O tempo. Dentro do autocarro:
dois miúdos a falarem de “Hurrican Carter”, o culpado inocente;
dois solitários envergonhados a enumerarem as “conquistas”
efémeras; um rapaz e uma rapariga novos demais no auge da anarquia –
histórias e poesia que Paterson já conhece “fora do filme”.
Paterson, o filme, é um instante cadente na marcha impávida e
pasmosa do tempo. Já não basta a câmara frontal, a luz vergada, a montagem
de sentidos, o aterro na superfície falha. É preciso o interior em primeiro plano e a ordenar
organicamente.
A sintonia com a sua mulher. Os flocos
circulares do pequeno-almoço e a arte circular dela. A
desmultiplicação dos gémeos. Os poemas começados por ele e
acabados por ela. O poema que ela é e a concretização dele.
Paterson a agradecer-lhe o jantar. Laura a gostar do seu cheiro de
cerveja quando se deita junto a ela na noite. Ainda os gémeos –
ponte curta e vacilante entre sonho e realidade.
Lá fora, e no bar, nesses limites
quotidianos, o universo todo. O barman a jogar xadrez consigo
próprio, a sua parede das estrelas preparada para Paterson, o
conselho «sempre digo que tentar mudar as coisas pode torna-las
piores». A luta do amor, sempre e ainda - Romeu e Julieta como
Antônio e Cleópatra ou Abbott & Costello. De uma ponta à outra
da satisfação, o romanesco integral e a revelação.
Nos passeios, como junto a uma valeta
ou a um charco, ou na clandestinidade do lugar mais inóspito da
noite, a poesia da banalidade. Uma menina de dez anos que encontrou
Emily Dickinson e transforma água em cabelo contendo lá dentro
nuvens e prédios. Poema como os dele, confirma Laura. Method Man, o
rapper mais bonito do clã, na lavandaria de zé-ninguém,
ainda underdog profissional no seu laboratório privado e
luxoso que é onde calhar e a vénia total de Paterson, poeta e
cidade. Como a lancheira com as imagens de Laura e Dante Alighieri
unidas com rosas – sem um o outro não existe. Encaixe ousado e perfeito nas manhãs da noite.
No complains, ao
contrário de quem Paterson faz questão de escutar os novos
problemas diários, disponível. Mas
há o cão que não se dá bem com Paterson, ainda pistolas apontadas
pelo amor, o caderno devorado, a arte indelevelmente perdida. Mas
paterson não consegue parar de olhar (escutar) nem mesmo no cinema
de terror. «A mais pequena desatenção conduz à morte»
disse Frank O'Hara, o poeta da escola de Nova Iorque que escondido
forjava poemas na hora do almoço.
William Carlos Williams, o espírito que rescende em Paterson, a cidade e o poeta, que os molda e os liberta - em casa de Paterson e de Laura, na ancestral cascata que é um homem, uma mulher, no visitante mais estranho e comum, em caracteres Japoneses. Espírito de amor e riso.
Antes de mais
sonhos e do imprevisto do acordar, a aproximação de coisas muito
diferentes. Como o Ghost Dog que comunicava perfeitamente com o seu
melhor amigo estrangeiro nesse filme sublime como o encontro de igual
para igual com a menina, alguém do outro lado do planeta lhe oferece
o mais valioso dos presentes – a página em branco.
O mundo que
funcionava perfeitamente antes dos telemóveis e nenhuma saudade
disso. Paterson confia nos mágicos e silenciosos relógios do
universo planante. Quem não conseguir escutar (olhar) a complexa e
básica música de Paterson, o filme, já se conduz triste para a
morte. O acaso é a única coisa que não é por acaso.
domingo, 12 de fevereiro de 2017
"Blood on the Moon", Robert Wise, 1948
Em “Blood on the Moon” Robert Wise pega na poesia do título e no significado que os nativos - que no filme quase nunca vemos - lhe dão para iluminar tudo dessa forma: grandes paisagens, cimos ou interiores de cabanas, cantos de saloons ou os infinitos céus dos Deuses, como que através da chama bruxuleante e quase nada de um fósforo; chama quase sempre à beira de morrer que tenta salvar alguma coisa a sangue negro ou a carvão de diamante mal lapidado; textura bravia e fragosa que é da mesma casca da face descarnada do Buster Keaton carcomido pelo álcool que a vida e os imbecis lhe franquearam, do peso do ar e da matéria do pó dos suicídios e das transfigurações de Philippe Garrel, do romantismo terminal inconsciente cravado no desfigurado Montgomery Clift que em “The Young Lions” se esventra perante o anjo caído.
Nos primeiros planos está lá tudo, a chuva como lâminas dos altos, a envolvência agreste a comentar vontades circundantes, a neve, a escuridão e o inferno ao longe; e um fantasma no epicentro, o Jim de Robert Mitchum, que vai sendo confundido, ameaçado, maltratado, como um Imigrante ou um Nativo - as pulsões do mal fundador daquele território a embaterem e a serem sugadas na sua massa e na sua aura que ou já viu de tudo isso e vomita-o ou nunca viu nada disso, perfeito inadaptado neste palco para excelentes actores.
Holywood,
ou os despromovidos de uma RKO, a perscrutarem este e todos os mundos
outros, entregando-se à incerteza, da existência e do cinema como
uma só coisa. Inegociável e temerário.
Em “Blood on the Moon” Robert Wise pega na poesia do título e no significado que os nativos - que no filme quase nunca vemos - lhe dão para iluminar tudo dessa forma: grandes paisagens, cimos ou interiores de cabanas, cantos de saloons ou os infinitos céus dos Deuses, como que através da chama bruxuleante e quase nada de um fósforo; chama quase sempre à beira de morrer que tenta salvar alguma coisa a sangue negro ou a carvão de diamante mal lapidado; textura bravia e fragosa que é da mesma casca da face descarnada do Buster Keaton carcomido pelo álcool que a vida e os imbecis lhe franquearam, do peso do ar e da matéria do pó dos suicídios e das transfigurações de Philippe Garrel, do romantismo terminal inconsciente cravado no desfigurado Montgomery Clift que em “The Young Lions” se esventra perante o anjo caído.
Nos primeiros planos está lá tudo, a chuva como lâminas dos altos, a envolvência agreste a comentar vontades circundantes, a neve, a escuridão e o inferno ao longe; e um fantasma no epicentro, o Jim de Robert Mitchum, que vai sendo confundido, ameaçado, maltratado, como um Imigrante ou um Nativo - as pulsões do mal fundador daquele território a embaterem e a serem sugadas na sua massa e na sua aura que ou já viu de tudo isso e vomita-o ou nunca viu nada disso, perfeito inadaptado neste palco para excelentes actores.
Wise,
e o caça-fantasmas, porque os olha de frente e os fixa assim, Nicholas
Musuraca, partem dos dilemas e paradoxos do western
e filmam tudo como num noir,
séculos e pisos unidos pela lixeira da ambição e da ganância; os
genocídios do berço, uterinos, o visco da cidade, máxima
modernidade e máxima alienação. Jim, o homem que transforma a sua
fama de assassino em lágrimas de redenção e de reinício encontra
a mulher, a sua pura, depois de vaguear e de se entregar à sorte dos
ventos e da ausência de luz, passada a relação com os brilhos
indefinidos e o contraluz da morte, e a composição triangular, o
movimento lancinante e deslizante e a entrada no lar parecem uma
anunciação vistas as cinzas derradeiras. Mas o que permanece são
mesmo esses gritos, uivos, animalescos do perdido Jim a comentarem o
facto de a honestidade provocar risos e estupefacções, corpo ardido
em paisagem ardida, para uma ressurreição à Carl Theodor Dreyer.
sábado, 28 de janeiro de 2017
In the Line of Fire, Wolfgang Petersen, 1993
Wolfgang Peterson não chegará às convocações totais e totalitárias de Lang, mas este encontro, este ajuste a partir de um desajuste, de uma folga terrível da máquina que não nos deixa comer a todos e a cada um, só nos deixa respirar esse doentio mal endémico, de rosto indefinido, com culpa distribuída por entidades e parafusos a mais. O agente secreto de Clint está emplacado entre a moral e a mítica de Abraham Lincoln, a culpa que sente em relação à morte de John F. Kennedy e uma redenção que só poderá advir desse mesmo mal diabólico e de eterno retorno.
E ao dar de frente com um John Wilkes Booth, deformidade treinada ao mais alto nível para proteger a América, derrotado pelo sonho patriótico e tornado monstro das suas sombras, vai enfrentar o limite do mais antigo dos pesadelos: o que se vê no escuro quando os demónios aparecem. “In The Line of Fire” é uma caça entre gato e rato calibrada ao milímetro irrespirável por engenheiros da acção e do suspense cinematográfico, onde se fica a perceber que um profissional que tem de estudar tudo ao pormenor e eliminar o erro humano, ao nível do topo da maior nação do mundo, pode ter a vida privada totalmente destruída e sem esperança nem exemplo. É ainda uma caçada ao amor executada nos pólos de maior tensão onde a circunstância dita o tudo ou o nada – o florescer ou o último prego no caixão. Mas o que faz transcender e tornar a obra temerária é a inclusão de toda a caçada no grande jogo americano, ou seja, numa arena onde não pode haver empates.
E é a personagem de Malkovich, mais admiradora do Booth que saltou para o palco depois do tiro do que do cobarde Lee Harvey Oswald, que lança os dados, as bolas ou as balas, e os regulamentos. Faz entrar em campo o Heroísmo e o Absurdo, ligando-os ao sentido da vida e às livres escolhas, metendo a narrativa pessoal de Clint e a justiça poética ao barulho: como é que um pianista cheio de talento e com tanto para dar só tem a ambição de levar com a bala de alguém que pode ser muito menos valioso do que ele. E nessa táctica desnuda as hierarquias, as reversibilidades, a matemática e o talento. É o louco que tenta mostrar ao são que o mal totalitário consiste em deixar que a mediocridade alastre.
Mete medo, pois a acreditar no louco que Malkovich é, um colapso eclodiria o jogo que a todos conforta. Mas é na variante mais puramente subjectiva, porque humana, que se percebe que Clint tenha aceite este petardo alheio quando estava no pleno das suas capacidades como cineasta: é mais uma vez no topo da pirâmide e no equilíbrio cósmico que ele prefere o instinto, o trabalho e o faro ao existencialismo distendido, à metafísica retardadora e, precisamente, à falta de acção. Clint acredita na expressão e profundidade dos olhos e é assim que ainda caça o mais terrível dos animais. O final é bonito e justo e inspirador não apenas pelo crepúsculo primaveril mas porque se percebe que a mola fundamental da cruzada, o combustível ou a vitamina da besta que cada um traz em si no bem ou no mal, foram essas pequenas insignificâncias que são o absoluto: se ela olhar para traz mais uma vez, gosta de mim; vais ver que é o pombo colorido a levantar primeiro do que o branco. O diabolismo sem olhos e o insignificante completamente presente e despido. Eis a contenda.
«The most dangerous game,
termo aplicado tanto à caça como à guerra, se se não quiser
pensar (e “Man Hunt” força-nos a pensar) no amor»; é João
Bénard da Costa sobre o filme de Lang e a velha aproximação entre
guerras, caças, homens contra homens e homens contra animais. Depois
vai a Hitler, ao mal abstracto e absoluto, à caçada do amor, aos
abismos consanguíneos, ao homem como o mais perigoso dos
animais. E acaba por meter na
mira “In The Line of Fire” ajustando e cruzando «essa síntese
diabólica entre todos os jogos mais perigosos (…) no jogo de morte
entre Clint Eastwood e John Malkovich».
Wolfgang Peterson não chegará às convocações totais e totalitárias de Lang, mas este encontro, este ajuste a partir de um desajuste, de uma folga terrível da máquina que não nos deixa comer a todos e a cada um, só nos deixa respirar esse doentio mal endémico, de rosto indefinido, com culpa distribuída por entidades e parafusos a mais. O agente secreto de Clint está emplacado entre a moral e a mítica de Abraham Lincoln, a culpa que sente em relação à morte de John F. Kennedy e uma redenção que só poderá advir desse mesmo mal diabólico e de eterno retorno.
E ao dar de frente com um John Wilkes Booth, deformidade treinada ao mais alto nível para proteger a América, derrotado pelo sonho patriótico e tornado monstro das suas sombras, vai enfrentar o limite do mais antigo dos pesadelos: o que se vê no escuro quando os demónios aparecem. “In The Line of Fire” é uma caça entre gato e rato calibrada ao milímetro irrespirável por engenheiros da acção e do suspense cinematográfico, onde se fica a perceber que um profissional que tem de estudar tudo ao pormenor e eliminar o erro humano, ao nível do topo da maior nação do mundo, pode ter a vida privada totalmente destruída e sem esperança nem exemplo. É ainda uma caçada ao amor executada nos pólos de maior tensão onde a circunstância dita o tudo ou o nada – o florescer ou o último prego no caixão. Mas o que faz transcender e tornar a obra temerária é a inclusão de toda a caçada no grande jogo americano, ou seja, numa arena onde não pode haver empates.
E é a personagem de Malkovich, mais admiradora do Booth que saltou para o palco depois do tiro do que do cobarde Lee Harvey Oswald, que lança os dados, as bolas ou as balas, e os regulamentos. Faz entrar em campo o Heroísmo e o Absurdo, ligando-os ao sentido da vida e às livres escolhas, metendo a narrativa pessoal de Clint e a justiça poética ao barulho: como é que um pianista cheio de talento e com tanto para dar só tem a ambição de levar com a bala de alguém que pode ser muito menos valioso do que ele. E nessa táctica desnuda as hierarquias, as reversibilidades, a matemática e o talento. É o louco que tenta mostrar ao são que o mal totalitário consiste em deixar que a mediocridade alastre.
Mete medo, pois a acreditar no louco que Malkovich é, um colapso eclodiria o jogo que a todos conforta. Mas é na variante mais puramente subjectiva, porque humana, que se percebe que Clint tenha aceite este petardo alheio quando estava no pleno das suas capacidades como cineasta: é mais uma vez no topo da pirâmide e no equilíbrio cósmico que ele prefere o instinto, o trabalho e o faro ao existencialismo distendido, à metafísica retardadora e, precisamente, à falta de acção. Clint acredita na expressão e profundidade dos olhos e é assim que ainda caça o mais terrível dos animais. O final é bonito e justo e inspirador não apenas pelo crepúsculo primaveril mas porque se percebe que a mola fundamental da cruzada, o combustível ou a vitamina da besta que cada um traz em si no bem ou no mal, foram essas pequenas insignificâncias que são o absoluto: se ela olhar para traz mais uma vez, gosta de mim; vais ver que é o pombo colorido a levantar primeiro do que o branco. O diabolismo sem olhos e o insignificante completamente presente e despido. Eis a contenda.
quinta-feira, 26 de janeiro de 2017
notas para Clint
1.
A vingança é deste mundo e
fora deste mundo. “High Plains Drifter” (1973) ou é o mais realista dos
filmes de Eastwood ou o mais bizarro dos filmes do cinema americano.
Logo depois de ter aplicado a facada sem recurso de Don Siegel em
“Play Misty for Me” a entrada neste Western parece tudo ligar aos
spaghetis de Leone, mais ainda, aos Italianos demenciais como Damiano
Damiani e companhia. Tudo se passa entre dois planos esfumados, onde
aparece e desaparece uma alma, penada, salva ou desclassificada. O
genérico com as variações entre longe e perto, o ribombar, a
propulsão barroca; para tudo se tornar aparentemente mais nítido e
“americano”: o desconhecido que conquista o terreno ferido a
violência, é promovido a herói, reina à sua livre vontade, morre
ou querem que ele morra com os mesmos ferros: isto é, a história de
uma nação, o seu nascimento. Ou com sombras para dúvidas, visão
do inferno, volta dos mortos para reposição, optimismo pelo outro
mundo: não só em sonhos ou pesadelos mas em visceral figuração
materialista nesse encarnado de caldeirão tosco. Fundido o delírio
ou a metafísica, ou ainda a fé, com a perene vontade dos homens em
erguer e deitar abaixo para diversão ou lavagem ou redenção a todo
o custo, é uma chave demoníaca e terrível para a chacina final e
plantada num tempo que acontecerá na civilização de “Unforgiven”.
Noutros termos, classicismo torcido e desnivelado pela constatação
lancinante da impossibilidade de Um Mundo Perfeito.
2.
«Das cinzas às cinzas...
do pó ao pó...» O homem que começa esta frase já não é o mesmo
quando a termina. “The Outlaw Josey Wales” (1976) é por isso bem mais
dorido e transversal aos mundos outros do que “High Plains
Drifter”. Ao contrário do sem nome daquele filme, Josey Wales viu
o outro mundo no mundo em que todos habitamos. O sem nome não se
importava de violar mulheres ou o que fosse, este já nem isso lhe
apetece. Depois de enterrar mulher e filho, depois do cineasta montar
os tiros da recruta e da morte dos sinais vitais com os elementos
orgânicos da natureza e logo da sua impassibilidade, dança lúgubre
e reveladora num Eisenstein fugaz mas de lição proveitosa, Wales
não mais enterrará ninguém, cuspirá a tudo e todos morte do
sangue da ferida, entregará o sagrado aos abutres e aos vermes. Mas
a narrativa deste monte altíssimo de Clint é essa hemorragia
suspensa que só explode no final, depois de ele ter visto os vales e
montanhas e as crenças de John Ford, um grupo de pessoas e um lar
que o impede de cuspir, dando a sua palavra de vida ao ser mais
longínquo de si. Decide não assobiar o hino que der jeito. Depois
de perceber que a palavra de morte está do lado dos legisladores e
dos supostos vencedores que eternamente farão a batota do poder cego
do ouro. Ensina a luta que vale a pena ao grupo e ao lar, recolhe o
amor e a virgindade salva em branco, entrega-se por um recomeço
possível. Estrela cadente que desaparece no ouro do sol redescoberto
o novo grão. Daí ao vendaval de “Honkytonk Man”, passados os
carreiros e as carretas de Faulkner e de Cormac MacCarthy, a entrega
à missão Ford. Apagamento, genuína união e dádiva sublime.
3.
“The Gauntlet” (1977) parece
acordar na manhã seguinte de onde escureceu “The Outlaw Josey
Wales”. Só que milhões de tempo depois. E já com a podridão
outra vez em estado de decomposição. Planos limpinhos de uma ponta
à outra, em varridelas suaves e nítidas aos espaços, para por uma
só vez tudo ficar registado sem o nervo da carne passar à máquina.
Clint é o policia bêbado, Sondra Locke a prostituta com uma
quilometragem a perder de vista. A missão parece de zé-ninguém, e
vai sê-lo, só que a um nível muito mais triste do que as opções
que cada qual pode tomar por si. Mais uma vez se escancara
fulgurantemente e fundamente a corrupção em todos os cantos e
diplomas, para isso se tornar banal em direcção à transcendência
e ao encontro do par mais improvável a poder ser feliz para sempre.
No meio do deserto um agentezinho já comido pelo grande monstro
pergunta à prostituta pelas companhias, pelas posições, buracos,
por tudo e mais alguma coisa que ele pensa ser porco. Ela
responde-lhe que basta tomar banho para se purificar, enquanto os da
laia dele ficam com o lixo incrustado para todo o sempre. Primeiro
grito no deserto. Mas é logo depois que no esconderijo mítico dos
amantes ela diz ao bêbado que a missão impossível onde estão
metidos visa limpar o sebo à escumalha que ele é tanto como ela.
Insultam-se mutuamente mas dá para perceber que é a segunda
vitória. E é naquele comboio como tantos outros que ele leva nas
trombas por ela e ela se abre derradeiramente por ele. Caminho
aberto para no casebre mais ordinário e típico da americana
junto à auto-estrada, entre rosas, ele lhe confessar dos sonhos de
futuro e de enlace. Tudo o que não vemos é o céu dos kamikazes
pela felicidade arrancada ao nosso destino rasteiro. Também é nessa
cena que Clint explica aos simplórios que acusam Siegel, Dirty Harry
e ele mesmo de fascismo - “escolhi ter no bolso o distintivo e o
canhão para poder fazer as coisas que os que têm demasiadas
responsabilidades ou estão acomodados na vidinha não podem fazer,
mesmo os bons” - palavras não dele, é isto – justiça dos
altos, reposição a ferro e fogo do primordial. Daí também o
realismo ridículo das cenas de acção, que faz o bêbado e a
prostituta sobreviverem a três diluviais tiroteios que só
super-heróis ou Deuses resistiriam – para tornar mais ridícula a
cena final – aquele pobre chefe a borrar a cara cheia de merda,
para falarmos a língua certa dos simples. Outro crepúsculo, com
certeza a fuga para a beira dos campos e dos rios, e o aviso – isto
não fica por aqui, malhem duro.
4.
Desde que triste e vazio
começa “Bronco Billy” (1980) até à felicidade final e aos sonhos que
valeram a pena, Clint só se dirigiu aos espectadores, aos de lá e a
cada um de nós do lado de fora. «Era um filme à moda antiga.
Talvez obsoleto demais, já que não fez tanto sucesso quanto
esperávamos. Mas se, em toda a minha carreira como cineasta, eu já
quis dizer alguma coisa, isso está em “Bronco Billy”». Ou seja,
a velha história entre o velho e o novo, a história da Hollywood
vital que sempre caminhou para a frente e que soube que para trás
mija a burra. Se nos westerns anteriores a personagem de Clint foi
mau como as cobras ou o diabo em pessoa, aqui já é só um
palhacinho, como fere a letra da canção inicial. Mas um palhaço
profissional, que não admite que alguém de fora da trupe altere o
diálogo ou goze com quem acredita naquilo que quer ser e é
inteiramente. Um sonhador profissional, um cowboy profissional num
tempo inadmissível para eles, um encenador profissional que despreza
o vale tudo e a ausência de crença e de moral. “Bronco Billy” é
ainda a passagem da realidade, da nascença da nação e crescimento
ao homem feito e ao mito; da violência primitiva ao espectáculo do
seu conto; do sangue à luz. Visto desse lado, tanto se pode ligar a
“Hatari!” como a “Space Cowboys” - o grupo que permite que a
tradição vá para a frente e evolua como deve ser, e o poder do
homem sem idade. Mas o mais fascinante e obviamente radical está
mais uma vez ligado a Sondra Locke, figura que aparece miserável,
desprezível e fria como as grandes corporativas que esmagam sem
freios, passando para o lado de lá da barricada de mansinho, para o
lado dos diletantes que quiseram permanecer crianças e nunca mais
voltar às grandes cidades. Clint e a sua trupe a darem o litro e a
estourarem-se todos para trazer nem que seja só mais uma alminha
para o lado das lareiras de Ford, abraçando Buster Keaton e
companhia. E ela, como qualquer um outro, ensinando-lhes também
qualquer coisinha. Debaixo da chuva que os encharca ou humilhando-se
nas prisões e com as autoridades, naquele assalto que é um dos
momentos mais simbólicos e lamentáveis para a nova Hollywood ver ou
na entrega patética ao amor que acontece na suíte nupcial do asilo
de loucos, tudo vale a pena se a alma não é pequena – isto é, se
se quiser ser cowboy no século tecnológico, presidente do país de
faz de conta ou homem na lua. Cada um à sua maneira. Evidentemente,
à moda antiga.
5.
Nova luz sobre “Firefox” (1982) depois de “Sully”. Não só por causa das aterragens milagrosas em solos desaconselháveis, nem mesmo pela estrutura narrativa atormentada, esburacada e terrorífica – suada de flashbacks, pesadelos, futurologia e neste caso tangentes ao Apocalipse – mas sim pelo que acontece quando já não se está a obedecer a ordens oficiais, quando a máquina, o virtual, e os homens à imagem e semelhança de Deus não procedem e emperram nas suas entranhas, quando as nações e mesmo a lógica programática e cientifica ficam suspensas no equilíbrio terrestre; e fica um ser contra um ser, homem contra homem, inteligência e instinto em estado puro, na corda bamba, a lutarem pela sobrevivência geometricamente com as mesmas condições dos nossos irmãos das cavernas. Que todo este duelo no espaço tenha sido despoletado por outro intolerável erro crasso puramente humano – o fantasma de Clint a perdoar a machadada final ao próximo no momento indicado na lei – coloca o patamar de complexidade infinitamente além do filme de acção que também o é superiormente. Na luz da primeira manhã. Com a mesma comida ou combustível. Igual fome e desejo. Inocência e violência. Bichinhos atarantados entre céu e terra. Moral e manufactura que tanto poderia agradar a Robert Bresson como a Howard Hawks.
6.
Suprema actualização ou
delírio ainda mais terreno a partir de “High Plains Drifter”,
“Pale Rider” (1985) é o primeiro cúmulo estético de Eastwood; ficando
só em Westerns, as idílicas miragens do filme de 1973, todos esses
fundos inacessíveis aos seres já estão na sua rotação; e o motor
enérgico que abala a câmara em “The Outlaw Josey Wales”,
sacudindo a paisagem e os corpos a partir das pulsões motivacionais
e das contradições fundadoras, gripou precisamente pela pressão
com que o meio se impôs. Cúmulo estético no sentido em que já não
há busca premeditada ou sacudidelas descontroladas, mas um
centramento que permite focar a fantasmagoria intemporal. O morto ou
o mito que o Padre de Clint mais uma vez é, espírito materialista
da crença feita carne ou a imaterialidade da catedral americana,
mistura dos futuristas da saga “Terminator” de James Cameron com
a sombra anacrónica de “Million Dollar baby”, integra o presente
e os seus ecos, visível e invisível, tal como a oração que tudo
interroga no funeral da menina ao animal de estimação. Momento que
funde com a mais bela declaração de amor da sua obra, essa entrega
e absoluto da menina ao padre, em que tudo se consuma no romantismo
da perfeição e da sua impossibilidade, tanto como os parcos dias
que valeram a vida toda em “The Bridges of Madison County”. Ao
mesmo tempo documentário do progresso a mata-cavalos como fantasia
em ares e alturas e auras de Frankenstein, mais uma vez fica
prometida a justiça neste ou no outro mundo. Um até já.
7.
Coração de Clint. Mas
pelos trilhos mais enviesados como as tortas linhas de Deus. O
sargento anarquista Highway que decide meter na ordem uma nova raça
de fuzileiros que trata os superiores como esterco contribui
inesperadamente ou não (pois é da cepa de “Honkytonk Man” e
familiar directo do anunciado “The Rookie”; para não ir ao cego
e ao assassino de “Unforgiven”) com muitas novas e intrincadas
achas para a fogueira do compósito Clint. Assim começa outro tipo
de educação ou exercício proveitoso que só teve hipótese de
sobejar depois das cinzas provocadas pela hecatombe Dirty Harry. O
movimento e a severidade que percorre “Heartbreak Ridge” (1986) comporta
o inacreditável e a simplicidade bíblica: os miúdos que começam
por odiar o suposto velho ressabiado percebem nele o mais jovem;
aquele que lhes desperta os instintos e o organismo vital; o que vai
contra a lei rançosa em direcção à justiça evidente; um
imprevisível que lhes dispara tiros de metralhadora à queima-roupa
no tempo certo para os levantar da lama no tempo errado. Das
altercações do primeiro encontro ao piscar de olho adulto, todas as
dádivas, no carinho e no grotesco. Por vezes, mas só por vezes e só
num tempo que não se percebe bem qual, é preciso ser duro como um
imperialista para se chegar à mais acabada forma democrática, quer
dizer, ao humanismo pungente. Tudo se poderia resumir ao
campo/contracampo entre o sargento e o esqueleto que assusta o
soldado – assustamo-nos tanto com o outro mundo que estamos sempre
com as falsas falinhas mansas neste. Humanismo pungente – o
sargento de ferro a derreter-se pela eterna ex-mulher que faz parte
de si como um dos seus órgãos nucleares. Improvisar, superar,
adaptar. O credo de Clint e o abismo necessário para o milagre
final: o dito anacronismo abraçado ao Hendrix que rejeitou a pizza
todos os dias, o cabelo comprido e as horas extraordinárias de sono
para seguir a catarse não pedida. Dos dilúvios que despejam um sol
claro. John Wayne e Ricky Nelson, o grande xerife e o rockeiro
amicíssimos em "Rio Bravo"?
E é um dos seus filmes mais brutos, com a matéria e a luz a quererem sair constantemente pelas bordas, a quererem escorrer mas a serem emplacados pela moral clássica do ordenamento original, longe do polimento dos filmes de guerra posteriores e lembrando-se e estando ao lado de Cimino e de Siegel.
8.
Em “White Hunter Black Heart” (1990) Clint vai ao continente Africano para se atirar a um aparente (e falso) filme dentro do filme e realiza como se estivesse no bairro onde nasceu ou nos estúdios onde se fez homem; nada de exotismo, exaltação épica ou mesmo technicolor para prémios; mesmo o acompanhamento musical tocante e dolorosamente simples que costuma entrar quando a faca vai mais fundo fica de fora – tudo isso deixa para os créditos finais, em cinismo proveitoso; estamos mais do lado do documentário, muito menos antropológico mas sim a registar e a escancarar o negro dos ensejos humanos. Fala-se do realizador e do argumentista como Deuses, vai-se a Hemingway buscar a redução da vida aos seus termos mais simples e logo absolutos, tenta-se compreender o incompreensível para avançar para a frente ou poder gritar «acção», ganha-se o respeito dos nativos, ganha-se o coração negro sendo de pele branca... e o que fica no término é a perdição de quem quis ver demais e se calhar a cor negra só reflecte da maldade a todos prometida.
O que é
igualmente espantoso é que nem por um segundo se cai em domínios
pretensiosos ou pedantes, pois hoje sabe-se ainda melhor que Clint
ultrapassou em radicalismo todas as ambições do realizador
fictício; se esse John Wilson já despreza o mundo das pipocas e da
acéfala entidade una dos espectadores, se se queima pelo livre
pensamento, o realizador que o controla foi até ao fim estoicamente;
Clint Eastwood pode não beber como John Huston, nem chupar charutos
como John Ford, mas já no final da primeira década dos anos 2000
acabou “J. Edgar” com dois velhos a amarem-se sem a pirotecnia
gráfica ou a insinuação pornográfica do “pós-modernismo” ou
do “contemporâneo” mas antes recuando à ternura e eternidade de
Frank Borzage. Penoso é o caminho de quem nada faz sem se querer
sentir em casa; negra, totalmente eclipsante, pode ser a moral ou a
compreensão. Clint abriu-se, atirou-se a esse buraco e aos gumes
vários da lâmina, e filmou com simplicidade a busca. Simplicidade,
complexidade - “White Hunter Black Heart” é assim testamentário.
Para além da redenção.
9.
Ao mesmo tempo que teve
necessidade de calçar as botas de John Huston para tentar entender
por que é que certos homens vão a certos lugares para enfrentarem
certas sombras quando tudo parecia ganho e pacificado, Clint dirigiu
um filme de género convocando todas as regras, do salvamento no
último minuto que ninguém acredita até ao golpe de humor que abre
e fecha cada ciclo lógico. Mas não dá para esquecer que isto
chegou ainda na ressaca do seu mergulho mais profundo às trevas que vêm
agarradas com o cordão umbilical, na homenagem e na justiça a
Charlie Parker, cometa que foi avisado da hora em que ia embater e
apagar-se algures e assim ousou consumir-se antes do impacto;
percurso e combustão gravados com a câmara a olhar e a percorrer
esse mesmo fogo por dentro. “The Rookie” (1990) só poderia ser o que é
– um conto de iniciação mesmo que também ele nos pântanos dos
infernos, onde todo o panorama monstruosamente realista e sujo é
redimido nessa viagem ao fim da noite, ao fim de si, da criança de
Charlie Sheen que se transmuta homem, renascendo e bebendo do próximo
mais longe de si, o Clint largado e escorraçado na terra e com as
pragas todas que se volve Pai. Sheen ganhou dois pais nesse vórtice
do tudo ou do nada quando meteu de lado ou aceitou o medo, e o quadro
com os dois charutos saídos de um é isso mesmo. «E trata de ti. Se
não o fizeres, alguém o fará por ti.», no centro do degredo, a
ilha da genuína porque lúcida inocência. O mundo é um lugar que
poderia ter sido perfeito, só que agora só por linhas tortas...
mais uma variação do mesmo conselho.
10.
Na abertura, Clint como
fantasma, como ladrão, como pintor a cinzelar espectros e a ignorar
as composições equilibradíssimas. De seguida o equilíbrio
periclitante, a gravidade do scope e dos personagens em causa,
a grande narrativa, o presidente da maior nação do mundo e do
mundo, sexo violento, as facções da lei e do poder em rota de
colisão, suspense cortante, heroísmo do avesso em relação a
“Sully” ou a "Sniper", o motor oleado; mas vamos perceber que
Clint, o fantasma, o ladrão e o pintor só quis fazer este filme e
urdir tamanha grandeza para chegar ao plano final – o quarto do Pai
com a Filha e todos os pecados aceites. Em todos os casos, a calma
profética é sempre da mesma. “Absolute Power” (1997) é a máxima
comoção da monumental filmografia pois dispensa a grandiloquência
ou o orgulho da exposição fria da corrupção política e
relacional – inclusive o momento em que se promete a vingança e se
volta para trás, cena magistral do aeroporto – para ficar com uma
fininha narrativa, um filetezinho de narrativa, que só se deixa ver
ao de leve e por segundos mas que está ao nível da grandeza total
dos 132 minutos de coração e estômago rasgado de “Million Dollar
Baby” - o pai todo nu a pedir à filha que fuja com ele, à beira
da carícia e protecção do vento e do murmúrio da água, por
debaixo do céu prenhe; a descoberta de que o fantasma quis ser Pai à
sua maneira incompreensível, nesses retratos de amor não
partilhados; o fantasma a repor os alimentos necessários no
frigorifico à sua criança descuidada; o ladrão de injustiças e de
piedade a pintar o seu anjo incomparável depois de dispensado o
clímax milionário. Da exposição da máquina de acção
Hollywoodiana em função do primeiro calor lancinante, a ousadia e
caminho dos duros demais. Estraçalhante pudor, ou vergonha, ou
descrição... um Pai a aconchegar o seu bebé no frio e no escuro da
noite.
11.
“Midnight
in the Garden of Good and Evil” (1997) poder ser e com certeza tem dos
momentos mais bizarros e necrófilos de todos os Clints. Bizarro pois
é um filme onde podemos dizer que não se passa nada, nada no
sentido da narrativa armadilhada e carregada de lógica construtiva,
causa e efeito o mais fresco possível, como num filme;
necrófilo, lúgubre, pois acredite-se ou não em mundos paralelos ou
espirituais, a estranheza do ar do tempo, das deformações ou das
crenças para lá do sentido racional fazem parte da matéria e das
texturas dos lugares, e vice-versa, numa metamorfose omnívora que
flui dos tentáculos das arvores de cemitério, passando pelo
estatuário orgânico e caindo nas casas com olhos até à senhora
que comunica com o esquilo ou ao travesti que parece o ser mais vivo;
massa que ainda contém visceralmente e sem medida o pecado, a
intolerância, preconceitos e afins.
Não se
passa nada, não dá para vender na sinopse curta, trata-se do conto
de um repórter que chega ao fim do mundo, por essas terras onde
Judas perdeu as botas, para escrever algo e de lá não consegue sair
pois vislumbrou ao de leve o que na grande metrópole há muito se
ridicularizou. Visto assim, é uma continuação escavada de “White
Hunter Black Heart”, ou um remake na terra e civilização que
dizemos conhecer sem segredos. John Cusack, o jornalista, por lá se
perdeu e por lá se achou, sem saber da verdade e acatando talvez as
palavras finais do críptico e verdadeiro Kevin Spacey - «a verdade,
como a arte, está nos olhos de quem a vê». Sequência, e Clint
realiza um dos mais bizarros, mais do que voodoos ou os
sermões ao esquilo, movimentos de câmara de sempre: vários 360º
do ponto de vista do último suspiro, até à figuração do outro
lado, o qual cada espectador pode aceitar ou rechaçar, como a
verdade ou a arte.
Mais
deambulação menos deambulação – depois de ter acontecido de
tudo pelo filme, dos tribunais aos funerais, festas de natal e festas
de sexo, assassinatos e nascença do amor - e surge o anjo de pedra
com a balança e os equilíbrios do bem e do mal, que é a demanda de
Cusack e a nossa: temos um e o outro lado com o mesmo peso, temos a
perspectiva de cada um, temos inclusive a possibilidade da
transcendência, e só podemos fiar-nos num ou noutro piscar de
olhos, numa ou noutra expressão, no sentimento ou no cheiro que
certa vez pareceu absolutamente inelutável. Bizarro e lúgubre, mas
é o mundo não perfeito. Mais cedo ou mais tarde, apareceria de
algures “Hereafter”, conectado com os primeiros Westerns. Para os
incautos, o mais clássico dos cineastas a entrar no século XXI é
ainda o que vai com toda a firmeza às dúvidas. A olhar pasmado,
disponível, sem impor nem julgar, sem ironia e de frente, a
contemplar e a tentar perceber. Todo o espaço para toda a gente.
12.
“True
Crime” (1999) ramifica-se todo mal abre, dando-nos o cenário, os
intervenientes, motivações e o passado a não colar com o presente.
A correnteza ou a torneira sempre aberta na mesma medida que se diz
ser o estilo Clint começa logo aí a soluçar. Há um condenado à
morte, um caso resolvido, a tragédia da curva da morte e um
jornalista de má fama a querer provar que está no caminho certo. E
assim o filme seguinte a “Midnight in the Garden of Good and Evil”
vai muito mais fundo nas aparências e localizações do bem e do
mal. A cena triste e patética da volta rápida ao zoo com a filha do
jornalista de segunda que se quer tornar de primeira para poder dar
voltas lentas pode ser o centro da questão moral pois mostra o lado
oposto do claro heroísmo e bem da sua cruzada. Clint dorme com as
filhas ou as mulheres dos patrões e está-se a borrifar para os
deuses e as justiças deste mundo ou dos outros, para o bem e o mal,
tem um cheiro que lhe diz que um inocente pode ser morto e decide ir
até ao fim em consonância com a sua (falta) de ética. Praticar a
coisa certa ou levantar-se da lama e dar a volta lenta no zoo? Raça
dos que se queimam no trabalho, no seu modo de vida, por aquilo para
que nasceram, na acção; sem chances de constituir uma boa família,
mas que mesmo assim querem mostrar que podem.
«Todos
mentimos, amigo, eu só o vim aqui escrever», dispara o jornalista
ao polícia antes da cena do cheiro. Cheiro que para ele funciona
como o Jesus para o preso prestes a morrer. Se cheirar bem, ele está
bem. Se cheirar mal, é o inferno. E é esse o móbil que lhe faz
exigir ao condenado toda a verdade. Com gente de sobra a assistir,
com todo o mundo a assistir, Clint faz depender o bem e o mal desse
orgulho, do seu motivo particular. Um acidente levou-o ali e ele
atira-se a ele, transformando a curva da morte em curva da vida, o
tortuoso no certo, e acabando só depois de ter distribuído a sua
prenda no natal.
Ou pode
não ser nada disso e tratar-se apenas da transcendente redenção
também a todos os humanos resguardada. E estaria certo. Tal como
salvou as pessoas certas independentemente dos motivos. Os seus
esgares no encontro derradeiro com a mulher que perdeu o neto e
ganhou um coração de ouro vêm das entranhas, conectadas com o
órgão vital. É a grande questão e a grande dúvida de um imenso
tratado de múltiplas leituras. Mas que Clint assuma no final que
anda sempre sozinho como o Pai Natal, é amargo demais, depois de ter
salvado três ou infinitas vidas. Sem zona, área ou luz de conforto.
O peso do bem e do mal... sempre a depender do cheiro... do instinto
que também é o tudo ou nada deste cinema. Fica a calma final,
rasgando ainda mais para todos os lados.
Lembram-se
da acalmia e do percurso para o escuro e para a luz da Angelina Jolie
no final de “Changeling”?
13.
“Blood
Work” (2002), encravado entre a coralidade metafísica da condensação de
todos os tempos e idades no presente e na ausência de tempo em
“Mystic River” e o plano da terra à lua ao som de Sinatra em
“Space Cowboys”, parece um biscate para testar localizações,
películas ou ângulos de um grande cineasta a preparar as
obras-primas finais. Só que... mete no epicentro a imagem e o órgão
fundamental de toda a sua caminhada – o coração. E desde logo
pode ser o inverso de “True Crime”, percebemos que o detective
reformado de Clint gostava de ser uma estrela policial e depois de
lhe terem trocado de coração (e para quem acreditar noutras coisas,
de alma) se escondeu no escuro de um canto para lá da terra plana.
Só que... continuou a viver porque o mal foi praticado, e já não
estamos longe do filme de 1999. E como num conto de fadas negro de um
Frank Capra ou na realidade corriqueira que os ultrapassa sempre e
inventa de novo o novo inverosímil, esse coração vai exigir que o
bem se reponha, seja pelo ser de Clint ou da falecida. Ou seja, tudo
parece jogo de argumentista, óbvio demais para quem começa a unir
pontas e a adivinhar – dificilmente não se cheira e se desmascara
o criminoso muito antes de quem está lá dentro abrir os olhos,
percebendo-se as dependências e as fantasias macabras da mente
perversa, envolvendo chicanas sexuais post-mortem e mais dessas
torções inacreditáveis.
O que
torna “Blood Work” fundamental no seu secretismo – para lá do
classicismo formal elevado à perfeição de Deus com os Anjos, não
há plano, palavra ou reflexo a mais, encaixe pleno de todas as
matérias - é o que nos diz laconicamente o título: o trabalho do
sangue, melhor dito: o trabalho subterrâneo e o indizível, como num
sonho ou o que não nos lembramos entre morte e nascimento, como o
definir da circulação. Sendo então tudo terreno, com o peso
marcado dos corpos na terra e a física em imposição, estamos nas
grandes questões originárias, matriciais, da origem das espécies
mesmo e de como isto do sangue bombado pelo coração funciona e nos
dá vida e une todos. Clint muda e ganha nova vida pois uma nova vida
entrou nele quando o rasgaram. E ao acatar essa vida, esse chamamento
e pulsão, tudo floresceu. Está lá, no pôr do sol ou no nascer do
sol com que fecha o filme. Infinitas vidas novas. (Passada a tormenta
do duelo final a vermelho naquele grande órgão podre onde é
extraído mais um cancro deste meio).
14.
“Hereafter” (2010)
é o todo mais planante de Clint, como se os fugazes instantes
eternos das visitas fantasma à filha em “Absolute Power” (ferida
mais funda e pungente da sua obra) fossem distendidos até a uma
duração plena, antes do filme e depois do filme, como o seu tema. E
tema é coisa que não há aqui, não se defende nada nem se ataca
nada, e a morte e o outro lado é tão central como esta vida e o que
fazer dela, o que encontrar e o que perseguir. Ecos dos ecos, sangue
do sangue, intuição da intuição, segredos dos segredos – são
todos os filmes de Clint numa condensação estelar, acima da terra,
precisamente na carne do espírito. Três seres aflitos em busca da
sua resposta, como todas as existências da terra em todos os tempos.
E a câmara de filmar a aconchegá-los nos seus quartos, de lado, ao
lado, com toda a ternura e carinho. A câmara de filmar a dizer «eu
estou aqui». Sem aflição.
«Pinta um quadro que possa ser pendurado na cela de um homem condenado à morte, sem que seja uma atrocidade.», escreveu Paul Cézanne, e é o trabalho e a crença de um cineasta amigo. Aproximar-se da máxima gravidade, olhar de frente – como os momentos em que Matt Damon transmite o que recebe – e amparar. Estrutura fragmentada que nunca é mosaico nem pirueta, antes os sublimes encontros em prática, de onde os aviões ou as grandes distâncias são abolidas pelos mínimos suspiros enlaçados – repare-se como tantas vezes se fica mais tempo com uma das personagens ou um dos pares, opção perfeitamente parcial, pois a comoção não permite montar ou mudar de faixa – aí surge a mais bela cena do cinema americano da década: a da cozinha, dos cheiros, da música, sentidos e espírito, resumo de todas as perguntas e respostas. Cena tão bela como quando a câmara decide despegar do chão e subir até ao espaço dos anjos, depois de comungar na terra com esses tais. “Hereafter” é um filme para puxar para cima, para todos irmos atrás da luz. E desde a espantosa catástrofe inicial que de tão simples e silenciosa quase não se dá por ela, abrindo para o interior, até ao abraço final, estamos num enlevo para lá das nuvens dos Wu-Tang Clan, no despojamento sacro de Robert Bresson, num andamento absoluto de Mozart, numa sonata doce de um apaixonado. E também na dança sem género com que fecha “Jersey Boys”. Revelados e amparados.
15.
«Agora que vimos o que poderia ter
acontecido, podemos ouvir o que realmente aconteceu?» é a frase
chave que sai da boca do co-piloto de Aaron Eckhart quando o ridículo
já matou todos os que duvidaram da primazia do humano e logo da sua
condição errática em "Sully" (2016). O que Eastwood mete em questão absoluta a par
dos tremores do inigualável e comum Tom Hanks – mártir/super-herói
que apenas fez o seu trabalho e isso o defini - é a eterna pulsão
do homem comum e do humanismo em querer atingir o patamar dos Deuses,
do indestrutível, da perfeição e imortalidade. Pode ler-se
entreportas o controlo, análise e decisão suprema da estrutura
americana para com o resto do mundo, mas será muito mais importante
sentir a condição humana sem bandeira nem época, rimando com a
decisão do Pai para com a filha no final de “Million Dollar Baby”.
No cinema recente, só “Rocky Balboa” assim humildemente destruiu
o maquinismo a favor de todas as preciosas possibilidades em aberto.
Seco, conciso e urgente como a melhor série-b. Pacificado como um
pedaço de crepúsculo que sabe trazer consigo uma verdade antiga.
Constitui ainda um díptico com o anterior “American Sniper” tão inseparável como “Flags of Our Fathers” é campo ou contracampo para “Letters from Iwo Jima”: no céu ou na terra, dentro do quarto de casal ou na toca do bicho, o mérito e a maldição depende tanto do coração de cada um como do batimento ou da garra do resto do mundo. Épicas e serenas lutas com o Éden violado.
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