sábado, 11 de outubro de 2008

"The Shootist", 1976. Um dos filmes finais de Donald Siegel. Último filme de John Wayne. Western estranhíssimo e doloroso. Uma das peças mais apaziguadamente necrófilas já produzidas pelo cinema americano. Pelo cinema. Abre com o símbolo da Paramount a preto e branco e com imagens de velhos filmes de Duke Wayne – de "Rio Bravo" a "El Dorado" – numa espécie de resumo de uma vida e de uma ética. Entramos logo numa daquelas paisagens que imprimiram o mito do velho Oeste. Mas já aí, no tom das cores, no ritmo e na maneira como se mexem e falam aqueles homens, dá para vislumbrar que se está a findar um tempo e umas espécies. Corte, Wayne/Books dirige-se para uma pequena vila, nem cinco minutos de filme e já sacou duas vezes a arma. Dirige-se a um médico. Desce do cavalo, encontra um velho comparsa dos filmes e da vida da personagem. É James Stewart. È fulcral essa sequência – temos de reparar como se mexem estes dois mitos e como falam e do que falam. Estão perros, principalmente Books, velhos, cabelos brancos e muitas rugas, a voz já não é a dos velhos tempos. Segue a consulta, e o médico – aquele que matou Liberty Valance – diz a Books que este está prestes a morrer. Sem salvação. Resta-lhe umas semanas. Diz-lhe que o sofrimento será de tal modo agudo que não o recomenda, percebemos o que ele lhe quer dizer.
Books foi, e é, um homem notoriamente violento, rude, que sobreviveu à custa de muita gente morta, e desse modo, estampou também a sua lenda. Nos comics, nos jornais, no boca a boca. É o mais temido entre mil. Mas já não interessa, só restam uns tempos.

A partir daí o filme é uma marcha funerária, uma ode à proximidade do fim, um canto fúnebre por um género e uma raça que estão prestes a entrar no cemitério.
Todo o percurso daquele homem que ainda é ferozmente temido e que é veemente idolatrizado pela criança de Ron Howard (foda-se...) é um percurso junto da morte. Ainda vai ter tempo para puxar do gatilho e aviar uns indivíduos que lhe querem apressar o fim. Ainda vai ter um género de romance – e algumas picardias – com Lauren Bacall, vai-lhe tocar no coração e vai com ela dar o seu último passeio. Numa bela carroça. Uma daquelas tão caras e sofisticadas que só para funerais se costumam ceder. Abriram para ele uma excepção. Vai dar negas – e enfiar-lhe um canhão pela goela abaixo – a um jornalista aproveitador que o quer imortalizar e pôr a pequena cidade no mapa. Vai dar a mesma nega a uma velha puta. Vai fazer de Howard uma espécie de filho que nunca teve. Vai andar em eléctricos e apreciar coisas que já não são do seu tempo. Vai pôr na linha o undertaker espertinho e tirar-lhe umas massas. Neste rodopio, que é tão lento mas que passa tão rápido, ainda vai ter tempo de comprar a sua pedra tumular, de a apreciar, de se olhar ao espelho e de combinar o duelo final. Num lugar que ainda parece, ao de leve, familiar. Onde de certo travou muitas e muitas lutas e puxou demasiadamente vezes a arma. Essa cena é notável, um tiroteio magnificamente filmado, uma dança da morte. Pum, pum, pum e acabou tudo. A partir dali é mito. Nem vemos a morada final de Books, vemos sim o miúdo a quem um possível (e impossível) testemunho foi passado e a sua retirada em direcção à vida. Só ele sabe como foi verdadeiramente. E aquilo que nesse momento Siegel dedica a Howard é tortura. Filma-o do mesmo modo insuportável e sinuoso como filmou Clint Eastwood em "The Beguiled."

"The Shootist" é tanto um ponto de chegada da arte de Siegel, um prego no caixão de um modo de fazer e de uma mitografia, como o mais temível dos negativos à ditadura do dinheiro e do espectáculo que estava prestes a explodir, lá pelas Américas.
Fotografia doentia e funérea, desaturada. Grão, muito grão na imagem. Ritmo enfermo e arrastado. Câmara ao nível do humano e das coisas. Anti-espectáculo. Cinema.

È preciso ver isto.