terça-feira, 25 de novembro de 2008

“Honkytonk Man”, de Clint Eastwood, foi um daqueles filmes que me arrebentou todo. Mais, o que eu ia pensando para mim durante o visionamento do filme era algo de absoluto, reconfortante e seguro, e, reconheço, um pouco infantil. Reacção semelhante às imagens e sons (e neste caso à personagem de Clint) que ia recebendo do ecrã, só me lembro de ter tido com “No Quarto da Vanda” do Pedro Costa. Na altura disse para mim: "foda-se, o cinema é isto, só pode ser isto e nada mais, o resto é merda!". Uma estupidez que nesses momentos de arrebatamento é impossível, pelo menos para mim, escapar.
Durante e de depois da experiência transformadora de “Honkytonk Man” tive a certeza absoluta de que o classicismo, os actores e o respeito pelo mundo real são a razão de ser do cinema, a maneira imbatível de o praticar. A única. Pelo menos a que me interessava. Pelo menos a que eu queria praticar, com aquela câmara à altura do homem, aquela découpage extraordinária e serena, aquele trabalho orgânico sobre a luz (inacreditáveis as cenas em que Eastwood destila a sua música), aqueles homens em vez de bonecos. E a secura, uma drenagem primitiva que jamais permite qualquer efeito de cinema que não advenha do real ou da carne. Obviedade para trás, obviedade para a frente (inventar o quê?), jamais depois de Ford e Hawks vi o cinema desenrolar-se assim, com tal acalmia, com tal saber, com tal simplicidade e evidência. Não precisamos de truques de narrativa ou de maneirismos formais quando estamos a seguir as motivações e as pulsões de uma personagem assim. Jamais depois de Eastwood, excepto nos seus próprios filmes, senti que o cinema clássico e puro ainda acontece.
O filme começa em plena manifestação dos elementos naturais, com a poeira da terra e o vento a mandarem aquelas pessoas do interior americano para dentro de casa. É o panteísmo de Eastwood a rimar com o panteísmo do Ford de “The Grapes of Wrath”. E vão existir tantos reenvios, uma sensação tão próxima a esse filme, mesmo no que diz respeito à viagem e à procura, à utopia de fixação, à resistência. Uma das personagens (o comovente Grandpa) vai pegar num pouco de terra com a mão e exaltá-la, exactamente como no monumento de 1940. As sensações são as mesmas, o tom crepuscular também. Ainda vale relembrar aquele extraordinário plano em que a família, já dentro de casa, observa através da janela a chegada de Red Stovall – que ali, bebedeiras e estados físicos e psicológicos aparte, se podia chamar Ethan Edward, como o John Wayne de “The Searchers” – o homem que apareceu do vento e do nada.
Só um homem como Clint, já em 1982, para se encenar numa longa e dolorosa caminhada, numa última caminhada, com essa consciência do fim. Se aquele tivesse sido o seu último filme, diria que o cinema da velha Hollywood tinha acabado ali. Sem dúvida. Como foi possível um homem, acompanhado por um rapaz – numa relação e afectação muito próxima com um filme que Eastwood faria nos anos 90, “A Perfect World” – atravessar assim a América, a sua mitologia e os seus espaços, cultivando e espalhando a sua arte, a música country e o cinema, tão junto daquelas gentes e daqueles lugares, para se auto emular por um sonho. Para eternizar o que lhe está no sangue, na sua origem. Do nada viemos e para o nada vamos, a importância do legado e da memória, por mais singelo que seja, é agudamente exaltado naquele final simplesmente brutal. A personagem de Red Stovall, um homem simples que sabe que está a morrer e que mesmo assim recusa qualquer iniciativa de tentar uma cura para a sua doença, que recusa tratamento e que bebe mais e mais, que se consome mais e mais, que vais aos limites num objectivo e numa relação, que não desiste nem olha para trás por nada deste mundo, fica como paradigma da grandeza de um cineasta e de um homem. Vale a pena relembrar o que Olivier Assayas escreveu num célebre texto para a Cahiers du Cinema: “A obstinação que leva Eastwood a filmar puros e simples arcaísmos, destinados a público nenhum e pegando ostensivamente o contrapé de todos os valores que a Hollywood de hoje coloca como os mais altos, não vem de um ator egocêntrico, de um cineasta azedo ou de um produtor revanchista. Esse cinema familiar, ao lado da fogueira, vagamente elegíaco e inteiramente impregnado de paisagem americana não tem uma utilização polémica, não pertence a alguém que deseja dar uma lição ou de um nostálgico da velha Hollywood, esse cinema é simplesmente o cinema de Eastwood.”
Nada de mais justo para este cinema do humano e da terra, dos valores e da reminiscência, da humildade e do sagrado. Uma caminhada para a morte que significa uma caminhada para a eternidade. Como no último plano, câmara baixa e quadro rasgadissimo, os dois jovens em direcção ao infinito e à vida, o passado a fundir-se no presente. Todos os tempos naquele bloco de tempo.
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Crescendo de euforia e comoção. "Gran Torino" está quase aí. Que imagens, que voz.

1 comentário:

Luís A. disse...

Uma belissima análise a um dos mais esquecidos e inspirados filmes de Eastwood. Vi-o muito antes de Unforgiven e para mim marcou é o 1º grande sinal do nascimento de um magnifico autor.

abraço cinéfilo josé

http://grandesplanos.blogspot.com/2008/06/filmes-da-minha-vida-xi.html