domingo, 29 de março de 2009

“Baseado na paixão sem reciprocidade de uma das filhas de Victor Hugo, por um oficial inglês, este foi o filme que lançou Isabelle Adjani, então com 19 anos. É um dos mais pungentes da obra de Truffaut, uma daquelas obras em que ele “filma os sentimentos como se filmasse uma missa”, segundo as suas palavras. Para melhor mostrar o encerramento sobre si mesma da personagem, vencida de antemão, Truffaut recusou-se a filmar o céu neste filme. Adèle persegue o homem por quem se apaixonou, do Canadá até às Caraíbas, antes de naufragar na loucura e ser trazida de volta à casa do pai.”


Diz assim o resumo da cinemateca. Truffaut “filma os sentimentos como se filmasse uma missa”. Perfeitamente correcto. Já o disse por aqui, é bem capaz de ser o meu Truffaut favorito, para mim uma experiência perfeitamente vertiginosa e arrasadora. Já sabemos o que acontece aos homens ou às mulheres nos filmes de Truffaut que se versam sobre o amor e a loucura (quais não são?), o amor na loucura, a loucura no amor. Ou seja: as personagens ficam tolas por amor, descem aos infernos, martirizam-se, desfazem-se, desfazem-se brutalmente, descarnam-se, aterrorizam-se, flagelam-se, descabelam-se, enrugam-se, humilham-se, descolam da realidade, deixam-se em sangue, vomitam, suam febrilmente, ficam em pele e osso, habitam os piores pesadelos e acabam fatalmente por passar para uma outra dimensão, para o outro lado. Consomem-se. Ficam loucas. Sem volta a dar.

Tudo isto: radicalíssimo. Por isso sempre tive Truffaut como um dos mais radicais cineastas. Se quisermos e como alguém disse: do centro para a periferia. Começa assim-assim, acaba terrivelmente. Ao contrário de Godard, se calhar, mas para mim tão radical como. Cineasta da paixão, da ternura, da criança em muitos casos, mas nos filmes mais graves – este “Adele H”, “Jules et Jim”, “La Peau Douce”, “Les Deux anglaises et le continent”, “Le Chambre Verte” e mesmo “La Femme d'à côté” – tudo é fulminado e rasgado por uma morbidez, uma negrura e um irremediável destino que tudo leva à frente e tudo apanha. Sem possível escape. Sem concessões.

“L' Histoire d'Adèle H.” é porventura o cúmulo de tudo isso, do paroxismo dos sentimentos. A maneira como Isabelle Adjani/Adèle H. passa da rapariga mais linda e graciosa do mundo a um ser completamente desfeito, rendido, enlouquecido; a forma como a câmara trabalha, sempre captando silenciosamente, com uma distância religiosa, de missa, de um interior para um exterior ou vice-versa, pelas janelas e pelas fendas, por vezes analiticamente, sempre compulsivamente, como que consciente da eminência da demência, não ousando por isso chegar perto – neste aspecto um filme quase velado – mas, grandíssimo paradoxo, temos o milagre ou o pesadelo de podermos aceder ao processo gradual da loucura e da sua instalação, de forma privilegiada e por isso mesmo masoquista. Se a coreografia da demência nos é subtilmente transmitida por uma espécie de dança lúbrica entre os espaços e as personagens (num trabalho de câmara e numa iluminação prodigiosas, é abismal a quantidade de sombras nos cenários, sem espécie de pompa alguma, sem resquício de decorativismo, filme plenamente anti-académico), e por aqui é também um dos filmes históricos menos históricos da história, é para sentirmos as entranhas e a descida aos fundos absolutos de uma pessoa, toda essa estranheza do desconhecido – tudo isto em primeiro grau, de maneira bruta.

Mas que se repare, temos a pulsão e a obsessão em praticamente todos os ângulos, na forma como Adèle precisa tanto de escrever como de respirar, os pesadelos e suplícios causados pelas recordações de Leopoldina (outros mundos e leituras se abririam aqui para o filme), a espiral de mentiras com esperança de redenção em função de uma suposta verdade interior e profunda, na planificação das suas diversas caras e personalidades que auto-conscientemente vai distribuindo, nesses bailes de máscaras dela como dos outros – aquele espectáculo de hipnose é bastante significante – os diversos mundos que o filme vai percorrendo, mar afora, pelas cartas, o tanto que ela percorre Halifax, etc…e sim, como diz o texto em epigrafe, sem nunca vermos o céu. È assim o fechamento total, filme de câmara agudíssimo, com falta de ar, precisamente, como numa…missa.

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