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Pixote: A Lei do Mais Fraco, de Hector Babenco, 1980
Pode elogiar-se a candura, a ternura e a violência
concentracionária nos espaços e nos corpos de O Beijo da Mulher Aranha,
monstros e crianças encancerados pelos adultos demasiado responsáveis e libertos
pelo sonho e pela irresponsabilidade que o devaneio e a ficção acarretam. Pode
elogiar-se e até analisar e querer fazer parecido, na vida ou na arte. Sublime
e duro conto de desejos e de aceitações puras. Deslindada a verdade, o oposto
faz sentido. E, como sempre em Babenco, o universo paralelo, o realismo mágico,
a fantasia, é tão presente, concreto, onde tudo É, como no suposto aqui e
agora. O tempo não existe como convenção simplista, apaziguadora ou mercantil.
Assim como não existe realidadezinha. Dentro do filme do filme ou fora
do filme do filme plana um permanente véu de sublime irmandade, da comunicação
e necessidade de todos os seres, coisas e contactos. Inesgotável fonte de
sentidos.
Mas teorizar sobre Pixote: A Lei do Mais Fraco, ou
mesmo analisar, ou porventura escrever, já tem muito mais que se lhe diga, pois
o risco de falar sobre o desconhecido e opaco, seja o terror total ou a empatia
absolutizante, de discorrer por discorrer, sem conhecimento de causa, sem
experiência, sem vislumbre ou dor, é quase certo, quase total. Talvez se deva
apenas recordar (ou nomear) o rosto de Fernando Ramos da Silva, anjo caído,
infância dos mortos como no relato de José Louzeiro, território de todas as
emoções e vidas, crimes e castigos, alegrias e perfeições, rosto que comporta
toda a história de milhões próximos e distantes e toda a ficção doutros tantos;
o momento de Lilica a cantar Caetano Veloso num pôr-do-sol que cai por magia
com Pixote a abraçá-la, e onde mais uma vez Babenco sai da realidade granulosa
para o sonho e para um momento perfeito sem necessidade de efeitos ou
transições anunciadoras:
“Eu vi um menino correndo, eu vi o tempo brincando
Ao redor do caminho daquele menino
Eu pus os meus pés no riacho, e acho que nunca os tirei
O sol ainda brilha na estrada e eu nunca passei”
Não especular nem querer saber mais sobre meninos meninas e meninas meninos a cortarem os pulsos por estarem confusos e o excesso de realidade a adormecê-los… todos os dejetos e tripas e vómitos inexplicavelmente comidos e expelidos… a extraordinária fuga e a descompressão/compressão total em relação ao enclausuramento inicial e iniciático… não discorrer sobre o aborto… não discorrer sobre o olhar de Lilica antes de se extinguir como a vela de material mais fino e puro… a solidão de orfandade e de inocência ao deus-dará de todos os meninos no grande meio e a solidão cósmica da arrepiante Marília Pêra, divinamente apelidada Sueli… amar as duas cenas finais como cúmulo do sagrado e ao mesmo tempo da perdição eterna neste vale de lágrimas que é a terra por nós regrada e regada: uma pietá proibida pelo tempo domesticado… uma deambulação Chaplinesca que não o é porque sabemos demais sobre aquele corpo, aquele rosto, emoções, passado e futuro. Deixar as cenas que nos fogem da memória habitar o nosso desejo posterior de querer fazer o bem. E talvez esquecer o resto nunca esquecendo, nunca perdoando. Pixote: A Lei do Mais Fraco é uma experiência indizível e irrepetível na História do Cinema e da Arte, um ponto de impossibilidade concretizada entre a energia de corpos e mentes, sublime e abjeção, ponto-de-vista e rarefação, certo e errado, neorrealismo e encantamento, bruteza e filigrana, catarse e silêncio, máquinas e mãos, vulcões e mãos que embalam o berço, cinema e vida e os limites comuns mesclados - para além do Bem e do Mal e de qualquer julgamento.

