terça-feira, 22 de janeiro de 2013

No colectivo de 1975 “As Armas e o Povo”, onde Glauber Rocha tudo leva à frente e amplia numa desmontagem apontada ao individuo e ao seu modo de ser secularmente impregnado, circunscrevendo o monumental e o caldeirão em grande plano, ou seja, íntimo teatro ou ainda, como disse Fernando Matos silva: ópera do malandro; no realmente revolucionário enamorado zoom out de lá de uns cimos que Fernando Lopes aplica sobre incontáveis corpos e almas queimando nas suas finalmente catarses, e no justíssimo corte lógico para a bandeira nacional pingada a sangue de cravos, chegando aonde antes só Robert Kramer ou alguns foras-da-lei Russos tinham chegado, o que ainda mais me feriu, num certo sentido, e me lembrou das capacidade que o cinema no seu todo pode almejar, foi aquando do discurso de Mário Soares no 1º de Maio.

Falava ele dos bandidos que se escaparam aquando do golpe de estado, os Caetanos e os Américos, e antes disso, poucas dezenas de segundos antes, a montagem disfere um surpreendente golpe ao para trás, ou, no caso, muito para a frente. Saímos do plano aproximado a Soares e aparece-nos sem aviso o que logo percebemos ser a vista aérea sobre a janela de um avião, um pedaço de terra bem acastanhada e esculpida a cortantes arestas que quem já por lá esteve reconhece como a ilha da Madeira. Quem não a reconhece ainda, maior surpresa. A montagem vai-se aliando cada vez mais aos planos já interiores do arquipélago e a mesma voz em fundo vai-se cuspindo furiosamente até esvaziar tudo o que ainda a castiga. Vemos os manifestantes locais tão exaltados como, planos de um cais sem dúvidas e entrámos numa luxuosa mansão de finas peças a prata e porcelana. E, ainda em cima dos planos madeirenses, Soares dispara denúncias e epítetos sobre os que fugiram para a Madeira, sobre os que segundo ele não se devem deixar escapar. Revelação territorial e criminal e abertura da caça ao homem assim explanada numa confluência coral que amplia sismicamente os propósitos.

Prodigioso efeito teórico que se torna terrível prática vingativa, percebendo-se assim fazer parte das especificidades do cinema e logo nos dando conta do intimidante arsenal deste. O cinema e a mão e a cabeça de quem nele trabalha elisões, distensões, antecipações, retrocessos, cruzamentos, miscelâneas, misseis teleguiados, quer dizer, tal como passar roupa a ferro, pode tornar-se tão letal como os carrascos que capta. Hoje, hoje numa projeção assim fechada sob tão badalada democracia e felicidade lá fora, percebe-se bem em operações destas, ao real e ao surreal, obviamente, que o cinema como arma de fogo e confluir ejaculatório de todas as práticas, da literatura à musica à construção civil, não dá chances quando vai ao cerne e quando tem uma causa. Amor, guerra, mesmas coisas.

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Na sessão das nove e meia todos podemos comer pedaços orgânicos do Frankensteiniano Godardiano “Brandos Costumes”, cadáveres inclusos. A lata encenação de Salazar que encena subterraneamente todas as cenas, das actualidades informativas Riefenstahl wannabe aos quadros Brechetianamente distanciados à ficção familiar ao “Chaimite” de Brum do Canto à fotografia do morto, face à encenação de Alberto Seixas Santos, que ao efabular sobre costumes tão reconhecidos chega a uma matrioshka ficcional e, instantaneamente, ao acasalar isso com a farsa do real, provoca todas as faíscas conhecidas e as sempre novas entre o que se apresenta cópia conforme e o que dá asas à imaginação. Entre o oficial e o devaneio. A seriedade e o terrorismo. Tudo o que ainda hoje mexe no filme é como que uma luta de libertação de amarras. E às tantas perde-se a cabeça e a bússola e já não se sabe para que lado se anda. Ficam os ecos, espaços vazios, sentidos, experiência livre-trânsito até ao macabro, que são a coragem na tela de um realizador com tomates, tal como o movimento de câmara inicial em sequência sobre uma cara para a mesma cara no que aparenta ser o mesmo espaço. Ainda e para sempre um ghost film. O mesmo solo, tanto espelho, tanta sentença, tanto encontro. E é aqui ou nada.

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