“B-grade western with a twist: mysterious gunslinger-for-hire Drake Robey is really a vampire, and it's up to Preacher Dan to save the town and girlfriend Dolores Carter.”; “The cinema's first vampire Western!”. À primeira vista este tesouro sombreado a mármore e a luar faz lembrar o cinema de John Carpenter e alguns derivados Tarantinescos que conhecemos muito depois de “Curse of the Undead" ter sido forjado; remetendo atmosfericamente para os seus contemporâneos Jacques Tourneur ou Terence Fisher. Mas progressivamente, em encantada filigrana tormentosa e sexuada, questões e choques de diversa gravidade tomam conta do espaço num tempo não mensurável. O plano sequência e a fusão dissolvente trabalham cirurgicamente, e da mesma forma que mesclam o escuro e o claro, as árvores tocadas pelos ares da noite e as luas apossando-se de rostos, a terra gélida e a pele clamante, também metem em relação a figura do Padre e a do Cowboy desconhecido e longínquo, transcendendo o todo à velha dependência entre o bem e o mal, a fé e a impossibilidade de domínio, entregas no absoluto versus ausência de apelo. E se o género americano por excelência teve um fim e uma hecatombe outra que não a do progresso, ele está neste desenrolar imemorial ao para trás, destruído no duelo que acontece entre entre a lei das armas e a falta de lei mística, depois de morta e enterrada a ciência. Carl Theodor Dreyer poderá ser uma chave, até mais o de “Gertrud” do que o de “Vampyr”; há em halo e carnalmente, na massa movente do plano que resiste, um impulso de desejo que nessa hipnose selvagem – e a questão dos vampiros e do sangue perde os códigos para acentuar ainda mais o risco e a pulsão – o eleva para lá da paixão, pelos terrenos inomináveis da posse desamarrada. Com meia dúzia de tostões e um poder de sugestão realmente sem barreiras técnicas e simbólicas, Edward Dein e uma equipa tão famosa como ele chegam a terrenos tão gastos como virgens e perigosos que se saibam. Para lá ou para cá da nossa luz.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

“Gus died alone, as he had mostly lived, in Greece on January 29 at the measly age of 45 from the complications of untreated diabetes. His death coincided eerily with the 25th anniversary of the Tet offensive, the campaign so graphically described in The Short-Timers.” - “The Killing of Gus Hasford”, Grover Lewis, LA Weekly, June 4–10, 1993

Neste babilónico reencontro e agradecimento (mais do que obituário), em tamanho e em generosidade, Grover Lewis fez tudo para evocar o mais inteiro possível o grande escritor que possibilitou a Stanley Kubrick o seu “Full Metal Jacket”, contando pequenas histórias das milhentas que o rodearam efectivamente e em mito, tentando fazer entender aos outros e perceber ele ainda a complexidade e a riqueza de uma sensibilidade aflorada, um temperamental esquecido em vida para além das fitas de cinema e dos interesses publicitários - “It's like fairy gold, the leprechauns' gold. I don't think I ought to make too much money. I'd just sit around all the time reading my Civil War books. “, diria novamente Hasford como nos fuzileiros ou como numa das suas bibliotecas que eram a sua casa. Morreu sozinho, preferindo o desmesurado e o longínquo, a sua cerveja e os seus milhares e milhares de livros, a qualquer remédio ou sujeição imposta. Mas basta voltar à sua demanda e sentir do ódio e da paixão em estado puro que faz qualquer grandeza com ou sem ordem - “Pode ser-se um herói durante algum tempo, por vezes, se deixarmos de pensar em nós durante o tempo suficiente, se nos estivermos nas tintas.”



“In the tradition of Stephen Crane, Hemingway and James Jones...”, cito ainda Grover, “The Short-Timers” é de uma dureza e de uma tensão que não permite julgamentos aos leitores de sofá que não tenham que ver com a prova física e psíquica que se experimenta na cadência do presente humano e infernal em propagação. Crane, Hemingway ou Jones, homens do limiar, mas Gustav Hasford conserva uma voz e uma presença únicas, e não foi à folha para provar que domina melhor os substantivos cortantes do que os adjectivos gloriosos, mas amarrou nelas e disparou constantemente com o que tinha à mão ou com o necessário, sendo piedade e emoção as resultantes do instinto acossado. Ou se entra no turbilhão de uma escrita incisiva como as balas e os fogos tracejantes que devoram da terra até aos nervos oculares e cerebrais parando ou não parando na madeira ou nas folhas das árvores que nos cedem o papel, ou legitimamente se atira a toalha ao chão e não se está para isso da mesma maneira que não se está para qualquer guerra desse formato. É uma tarefa hercúlea e será o mais perto que se estará dos treinos e das provas de recrutamento antes do palco demencial já sem margem para erros, num epicentro da competição vil, e há que reformular, redimensionar, ajustar e desajustar os conceitos de realidade e de lógica; para se sobreviver, quer dizer, para se continuar no livro. Primeiras páginas, depois de Walt Whitman, de Michael Herr e de John Wayne, ou sempre com eles, e o leitor incessantemente à procura da causa e do efeito, do nexo que lhe possibilite estar seguro, qualquer fórmula que permita encaixar e avançar e perceber os horrores, o busílis, as equações trucidantes; até ter de jogar fora capas e toalhas e protecções corriqueiras, num entendimento férreo e de nervos em franja - não há lógica nenhuma, eis a questão. “Depois da minha primeira morte confirmada, comecei a compreender que não era preciso compreender. Aquilo que fazemos é aquilo em que nos tornamos. As implicações de um momento são confundidas pelos acontecimentos do momento seguinte.” E etc., há que aceitar alguma coisa da lengalenga dos soldados que afirmam como quem cospe da rotina e do ofício da morte; “A guerra é feia porque a verdade pode ser feia e a guerra é muito sincera”.

Não há lógica e uma das soluções é deixar-nos ir no arrasto dessa sonoridade metálica que expõe todas as possibilidades da nossa natureza, música maldita em que “cada tiro é uma palavra pronunciada pela morte”, sinfonia do indizível “rolando sempre em frente, para sempre, ao som da negra poesia mecânica do ferro e dos canhões”. Hasford, rigoroso e lúcido não perdoa uma e essas ambiências que de catastróficas adquirem a sua beleza, horrorosa ou simplesmente inata, nada tem que ver com estéticas sugadoras do incomum, tratando-se de uma observação directa embora implicada, límpida dentro da sujidade, contemplativa sem contemplações. E não poderia ter ido ao Nobel ou ao Pulitzer e derivados pois as palavras não seguem o curso dos ensinamentos e das normas esperadas e confortantes, da escola ou do crítico literário em sentido; as palavras só seguem a morte em acção, no mais antigo dos processos, agora exacerbado. O inescapável momento medonho, a alegoria e a recordação e o sempre, o riso com noite cerrada, Mary Jane mamalhuda inseparável do sargento de ferro, a estupefacção a volver-se costume, pão nosso de cada dia inerente ao Homem. “The Short-Timers” acaba caminhando e acaba perpetuando-se. E é assim mesmo.




♪ I don't want no

teenage queen.

I don't want no teenage queen.

I just want my M-14.

Perda da inocência. Renascimento. Cowboys. Violentação original. Nascença. Piadas. Índios. “Full Metal Jacket” prova a possibilidade de vergar a natureza dos seres e mesmo das coisas, torcer ainda a predestinação, gozar do determinismo; a energia cinética a engravidar potência bastarda. Pelo voz off do raso e matador Joker – certíssimo Miguel Marías a enaltecer o bom uso deste recurso como privilégio do cinema – o processo de desumanização e naturalização da morte vai do embalo pop e da ironia até ao aterro e ao grito sepulcral, numa compreensão do fundamental em Hasford que passa não por um processo linear mas sim por uma circularidade que nos enleia no degredo e no abraço, na merda e na coragem. Gomer Pyle, ou Leonard, é a representação ou a espécime acabada disto, pois começa como soldado inapto, passa a topo de gama e acaba a matar e a matar-se ainda na América – o Vietname na América, portal do realismo e da intelligentsia metafísica. Só que a segunda parte do filme, já no Vietname puro, torna-se a América no Vietname, o que também quer dizer o Homem a ocupar o que deveria deixar estar em sossego, ali ou no planeta mais distante, utopia sem nome, choro infinito. O olhar derradeiro adquirido até à velhice pelo já profissional Joker, a profundidade e a violação ganha pela morte do próximo perpetrada de frente, ata-se ao diabolismo de Gomer Pyle, sabendo-se que basta perder o medo para o Tudo estar em aberto. Na carnificina com que a primeira parte fecha e na outra que não fecha o filme mas que regressa à anterior, que rima com ela em impossível desacordo, Kubrick atinge um Apocalipse que nada tem a ver com simbolismos canónicos mas sim com algo muito preciso, na guerra licenciada ou na da calada política, nos compartimentos culturais como nos mexericos civilizados – o coração e os sentimentos em elipse, duros e mortos como a resposta bruta da técnica e dos recursos utilizados para o enforme. E eles continuam a andar em frente. Ainda. Sempre em frente. É assim mesmo.

sábado, 26 de dezembro de 2015



O silêncio e a fúria - notas sobre alguns irmãos diferentes.

Visto agora “All the President's Men” dispensa candidamente a América de Nixon e o escândalo em causa para ser absolutamente um filme sobre a obsessão de dois homens por uma verdade. Quando a personagem de Robert Redford começa a escrevinhar e a personagem de Dustin Hoffman o começa a corrigir, a primeira não fica zangada pela segunda estar a querer os louros, mas somente por não lhe ter dito a coisa de frente. A partir daí não interessa o génio autorístico mas somente, e é tudo, juntar as peças que preencham o puzzle lógico. Uma correria entre fantasmas, medos, muita escuridão e ruído que é o caminho árduo do mal para o bem, da cegueira para a claridade, da injustiça para a justiça; seja como for, ideologicamente ou moralmente, a luta imemorial dos opostos. Alan J. Pakula e Gordon Willis não traem nada nem por um frame, acatam os silêncios e afastam o embalo musical, acolhem a atmosfera ao invés da ilustração, implicam-se no pormenor e no instinto para alcançarem um geral no trabalho e na constatação, o mais límpido possível e sem margens para desconfiança. O zoom final antes do veredicto e da História, o suor a entranhar-se nas aparências, o empenho a estilhaçar o embuste, as insignificantes personagens de Redford e de Hoffman a calarem o espectáculo global, é a prova de que a persistência e a dúvida são um par tão bonito como os dois em acção, fasquia sagrada dos muito antigos em espaços remotos. Que se pode pagar tão caro como toda a solidão que os envolve na cruzada, sem mulheres, sem “vida” digna das aspas, até sem carreira recomendável. Somente a pulsação da verdade algures entrevista sem pedido.




A lógica ou a congruência da obra ou desobra final de Robert Aldrich mede-se e une-se pela vida das coisas, isto é, de que raio são feitas e como trabalham. “The Legend of Lylah Clare”, não tão derradeiro e o mais funerário de todos, mete em discórdia a carne passada de uma estrela do cinema e os quadros em cima dos quadros antes da técnica do split screen ser ensinada nos cursos de artes e de ensaio, e o efeito nunca se torna vedeta mas antes descarna sem possibilidades de remissão o declive central – não se aceitando as rugas, como não se aceitando o tempo, aceita-se à força os cacos das máscaras quebradas. “The Longest Yard” poderia ou não poderia ser apenas um cavalo de corrida nas bilheteiras, ou um manual ultra avançado do filme de 1968, só que veja-se: 1) a sequência de abertura, onde se capta pela primeira vez um cigarro, a bebida incendiária ou salvadora, os vícios que não estes e a colisão do sexo com o permanente, sendo que toda a questão da película e do analógico surge sem retórica e tão em tudo ou nada como num diálogo entre Quentin Tarantino e Paul Thomas Anderson; 2) a troca de olhares e de fundos e de vísceras entre Burt Reynolds e Harry Caesar, onde de uma só vez os compromissos e a honra são tão consanguíneos como quando o segundo disse aos negros da sua raça que a irmandade existe muito para além disso; finalmente: o contraluz e a saída para o sol já em cima dos créditos, caminho para uma glória escrita nos altos, isto é, muito no dentro, sem actas; Conclusão: não se trata de um fresco glorioso e épico pela comunidade com fraternidade revestida como o atingido por Ted Kotcheff em “North Dallas Forty”, onde Nick Nolte entra simultaneamente nos terrenos da selvajaria e da hagiografia além pecado, mas é evidentemente um coração a salvar no caos. Em “Hustle” há um polícia bruto e uma prostituta delicada, ou um delicado polícia e uma prostituta ainda mais brutal, mas a maneira como os corpos de Reynolds e de Catherine Deneuve encaixam tão perfeitamente como se magoam sem definição no quotidiano, são o reflexo dessa luz sumptuosa fornecida pelas cores e pincéis dos anjos dessa terra mítica, ou de entidades similares por eles, em que os dourados dela e o moreno dele perfazem o tom singular e único permitido a qualquer par que realmente exista, e então eles respiram por inteiro nos espaços abertos ou na casa das bonecas, fazendo a tragédia parte do acordo com a beleza - “Hustle” não é um action movie e essa luz indefinível é mesmo tão potente como o “Cu Cu Ru Cu Paloma” que vem do longe para o perto no Sirkiano “The Last Sunset”, palco de punks negros e de crepúsculos ruminantes em convívio antes dos movimentos radicais.

O composto final de “The Candidate” é tão triste como aterrador e ridículo, sendo que todo o excesso posto em cena e em baile por Michael Ritchie e Redford se esvazia e se cala numa incerteza Bressoniana que poderia limpar o esterco de “All the President's Men” se esse possível reinício não estivesse minado pelas maquinações do acaso. Sendo que o acaso não pode aí ser irmão do encontro e do par, ou seja, do belo, pois é o cérebro abstracto que faz parte do grande circo e do aplainamento que apela à degradação. Ou então, esse vazio tão oco, ecoante, imprevisto e imprevisível é tão válido como o seu inverso, e seja o que Deus quiser. Seja como for, está lá uma porta e a fuga, a tranca e o descaramento.

Homens de pé pela sombra da dúvida, de onde o tema e o presente são veios, como pregas ou órgãos, desse espectro. Sendo a verdade, pedra de toque que alguns reconhecem sem dicionário ou bíblia, a gravidade que os segura. Tudo.

terça-feira, 22 de dezembro de 2015


Em 1939 já John Garfield Ran All the Way, mas como ainda estava longe das pulsações e das escalas mortalmente e sexualmente tensas de John Berry, embalado apesar da sofreguidão pelo movimento lancinante e concordante de Busby Berkeley, a meta negra lá foi sendo adiantada, na vagarosidade de um abraço final puramente terno. “They Made Me a Criminal” aguenta-se e evolui numa estranheza e numa moral que não advém de nenhum credo mas sim das vísceras singulares, e então já temos toda a sorte de Garfield, logo na largada. Na partida, um ringue, um lutador, um inocente herói, e logo a seguir a desmontagem de tudo isso, perdendo-se o herói quando a sua natureza não lhe dá hipóteses de retaliação. No último combate, o ringue, a tentativa de disfarce, o amor e os filhos como transcendência, mas a sua verdade, o seu orgulho não arrogante mas intrínseco como tantos que são fabricados heróis no cinema americano, impõe-se para surgir a rampa da perdição. Nos meios, em velocidade cruzeiro ou suando sangue, com a tentação e a mentira na cabeça mas a essência disponível, foi conquistando todos os corações, os de manteiga como aqueles trancados a ferros. Conclusão, nada óbvia, nada certa, não aconselhável, das únicas vezes que mandou a mascarada às urtigas salvou-se tramando-se – escondido para ser feliz, bicho-do-mato que nesse mato conquistou todas as luzes e notícias do mundo, com um empurrão do anjo improvável de que não se acredita. É doce e amargo, e pode ser que o Filme Garfield seja de facto só um, interrompendo-se em 1951, com peças espalhadas por todos os lados, mas num todo dolorosamente compreensível; pode ser que o provisório seja o centro deste filme, queimando ainda mais o abraço. Seja tal amor o ferro fundido que dobra toda a pulsão ou seja a pulsão dobra soberana, é o que este essencial Garfield nos propõe, em double bill com o muito menor “Nobody Lives Forever” de Jean Negulesco. Não é questão de pouca medida, sobretudo porque fala das escolhas dos loosers dos passeios da mesma forma que das escolhas dos reis do mundo. E também do instante como absoluto. O abraço, as raivas e o sorriso completamente inesperado de Ann Sheridan. “Force of Evil” enlaçado com “Gentleman's Agreement”. Todo o rugoso rolo e o Absoluto.  

domingo, 20 de dezembro de 2015


“The Breaking Point “ é um protótipo dos cinquenta americanos procurado por Michael Curtiz, quinta-essência dessa terra e desse ofício, definição de realizador, retomando águas, paixões, destinos e o muito fogo de “Casablanca” ou de “Passage to Marseille”. Que os pergaminhos e alguma alma tenha sido pedida a Ernest Hemingway só expõe vias e pulsões que não se previam assim, entrando estas de rompante e devorando as maquetas e a magia e o argumento, lado incontrolável dos mais recônditos fundos orgânicos. Pois os timings perfeitos do mítico filme de 1942, a encenação a milésimo de segundo calculada, essa luz prodigiosa e dramática dos estúdios mesmo que mais reais do que o real, fogem para o lado contrário e o que irrompe é a câmara solta e perscrutante de Rossellini, como que ao sabor das aragens e das marés; uma auscultação das vibrações do meio natural e do humano como coisa uma, antes de qualquer maquinação estilística, comunhão e compromisso do mesmo sangue do incaracterizável “Deep Waters” de Henry King. As misérias da terra e do mar, os problemas e o caos de todos os credos e desejos: dos refugiados tratados como dejectos até à negociata e corrupção rasteira que vai apodrecendo sucessiva e lentamente atingindo as medalhas dos genocídios apocalípticos dos imperiais topos. Mas do que se trata é evidentemente, e pela ordem inata, de histórias de amor, da perdição e da solidão contundente; concentração e circunscrição dos fulgores e dos rastos de uma existência. Para ser óbvio que é John Garfield que numa das suas maiores vivências dinamita qualquer planificação escancarando os abismos sem rede. História de amor dele para com a sua esposa resistente às tentações clandestinas e sociais – juntando o sorriso infantil dela antes do sexo (uma das cenas mais secas e belas do Cinema sem se dar por isso) ao choro limpo perto da morte no final; de Garfield para com o amigo e parceiro e mais lágrimas por não o conseguir escorraçar e assim salvar; e acima de tudo amor a si próprio que aguenta todas as penúrias e humilhações daqueles que insistem em fazer, ou tentar fazer, aquilo de que gostam pois nasceu com eles. A guerra do lobo dos mares não é tanto para com os criminosos – isso são estilhaços colaterais – mas essa do par e filhos e busca da felicidade a todos reservada no princípio. John Garfield está para lá de qualquer representação pois sabe-se da sua própria vida e sorte, sendo impossível que isso não lhe tenha alimentado a fúria, consumido as entranhas, dilatado as veias e tomado conta dos olhos na película que não atenua mas amplia e descasca. John Garfield é um vulcão jorrante e um poço sepulcral, ser comum que dá raiva e razão a biliões de seres vivos e mortos, seja numa pequena aldeia esquecida da nossa beira interior ou na desolada Nova Iorque dos genuínos. A conclusão de tanto afloramento e confessionalismo, fogo que não deixa de se misturar com o gelo em suores frios de pesadelos nocturnos temperados com nicotina, é a criança largada no cosmos, ao deus dará..., ponto insistente e final para onde confluiu tanta complicação e novelo da raça. O filme deixa-nos e nada mais veremos, a não ser um ressoar que continuará na próxima saída à rua, pelos passeios miseráveis ou num hospital insone. Curtiz e Garfield, o controle e a devastação, num abalo que é o movimento perpétuo que ainda nos aguenta.  

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015


“Framed” não é a suposta despedida crepuscular nem mesmo apoteótica de um grande realizador de cinema como é o caso de Phil Karlson. Decorria 1975 e os holofotes estavam virados para tudo menos para estas pequenas intimidades justiceiras, e no lusco-fusco há coisas que importa reter. Da porrada até à morte que lança o filme e começa a escancarar a podridão da montagem social, até ao piscar de olhos e juntar de lábios que o plano final congela marimbando-se para o disfarce em direcção ao intervalo do amor, há novamente uma cruzada que continua visceralmente a de “Walking Tall”. Porrada mortal em seco, em ossos, em pó, como a morrer de sede, esganiçada, num campo contra-campo concentracionário que aprisiona toda a tensão e brutalidade para a soltar num silêncio apocalíptico que é a imagem e cerne do filme. Junção de corpos derradeira que só aponta à dissidência para a junção familiar dos que se reconhecem, e que é apontada pelo polícia negro, possa começar a ser verdade. Verdade, precisamente, é a fome de Joe Don Baker, que estando agora do lado contrário em relação ao filme anterior – de que este é sequela ou prequela – se faz pedra salvadora na destruição da engrenagem que importa. Num mundo onde bem e mal já há muito vestiram as mesmas indumentárias e partilharam os mesmos cabides, só o lado animal é capaz de ousar a distinção e destrinçar, roendo, roendo e estraçalhando, roendo e descarnando, passando por cima de hemorragias e implosões, até uma nova camada original começar a vir ao de cima. Karlson continua a utilizar o zoom para o trabalho porco e para lavar roupa suja, insistindo no estático como reforçamento de fundações invioláveis. Neste chão escorregadio, palhaçadas onde as identidades e entidades se desmultiplicam, atrapalham e baixam ao grau nulo, só olhar olhos nos olhos – resulta até com cães raivosos, como se prova numa cena fulcral – e o assumir-se plenamente – a cena final ou a evidência de que o talento de JDB é o jogo tal como o de Billy the Kid são as pistolas e a liberdade – procedem na procura de limpidez, que é o que Karlson ainda continuou a procurar desde os anos 1940. A aço e a fogo, com zoom e frontalidade. Tarefa e crença que justificam todas as caras e peles rasgadas que o duro Baker aguentou neste díptico. Do lado dos bravos. Luminosamente, antes ou depois do crepúsculo.    

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015


Exemplo acabado da poverty row e da sucata escondida pelos dourados da Hollywood no seu auge, série-b em plena carburação e inventiva, o “Dillinger” dirigido por Max Nosseck, produzido pelos irmãos King para a Monogram Pictures e libertado da biografia para ser metido nas sombras e nas teias das decisões e dos caminhos puramente humanos por Philip Yordan, é um filme luxuoso. Primeiro: as peças de cenário mais ordinárias que sobraram, os curtos planos perfeitamente enquadrados nos limites possíveis da sugestão e do realismo duro, a fumarada em sintonia com o destino e os actores lançados a estas feras, são centrados, concentrados, dependentes mutuamente num universo em que confluem todos os eternos e corriqueiros dramas sem nunca serem ditos boca para fora, antes em plena evolução e luta. Segundo, a via nada sacra de Dillinger volve-se via-sacra pois a tentação é o seu cerne na medida em que é o cerne da nossa civilização e do nosso mito. Irresistível o próximo passo, o patamar seguinte, o poder absoluto, de onde a mulher e o seu feitiço pairam e apelam subliminarmente. Entre o mundo do cinema e o grande legado humano, um corpo e uma mecânica correspondente que nos insere a todos; jamais se dúvida do fim e jamais se mata a pulsão. Max Nosseck, o fabuloso Lawrence Tierney, técnicos e companhia, formaram uma cápsula ou uma capela acabadíssima e harmónica, comungando os restos e a totalidade do mesmo luxo, a inteireza. Inteireza e falha, encontrando-se cada elemento no lugar propício e lógico do universo lato. Se se começasse a olhar e a trabalhar o digital nesta medida e neste alcance, sem a condicionante do disfarce e da película, o luxo de “Dillinger” poderia servir para todos e cada qual que não gastasse mais do que a essência; como o tanque de combustível destinado (bela imagem sugerida pelo Bruno Andrade). Entre cidadelas e miragens, já se queima borracha e óleo e alma pelas belas e terríveis estradas de "Mad Max: Fury Road".

terça-feira, 15 de dezembro de 2015


“The Chase”, a obra-prima de Arthur Penn, acaba com o xerife Brando e a mulher a virarem costas a um solo e a uma missão que já fedeu mal demais. “Walking Tall”, penúltima obra de Phil Karlson, começa imediatamente a seguir. Estamos perante um dos filmes mais representativos dos anos 70 americanos – porque um dos seus melhores e metido das unhas aos cabelos na fossa em causa – e absolutamente afastado das imagens de marca, sempre a trabalhar ao lado do instante e da emoção como por aí só me lembro do Richard Fleischer de “The New Centurions”. Joe Don Baker, ex-fuzileiro (fuzileiro para sempre), ex-domador de feras, decidiu voltar as costas ao Sistema para todo o sempre, ámen, e chega a uma nova terra disposto a esquecer tudo e a ser feliz de novo com a mulher e filhos e cão. Só que, deve-se aprender antes do tarde demais, os problemas não passam por causa da terra dar uma volta sobre si mesma nas horas estudadas, as coisas não se esquecem num amanhã perfeito e novo, mas devem resolver-se antes de mais, olhos nos olhos, no agora, questão de vida e de morte sem volta a dar. A aurora de WT é bela, idílica, cheia de grandes-planos pequeninos e a lembrar a candura e os paraísos ainda possivelmente virgens de Robert Mulligan. O pai de família volta à casa de onde nunca deveria ter saído, disposto a não errar a segunda vez dos idiotas, compra o novo lar doce lar, vende as coisas antigas e jura paz e amor. Mas os problemas, como as resoluções de ano novo, não se resolvem mudando as aparências e as superfícies. Imediatamente os planos começam a torcer-se, o clássico cineasta começa a descobrir e a decifrar e a rejeitar o zoom, as lateralidades que a frontalidade e verticalidade sempre desdenharam ganham o quadro, e os fundos e os cancros começam a ganhar posição e a alimentar uma fealdade que não mais parará de crescer entre crânios arrebentados e casamentos para sempre. Daí para a frente essa câmara, o olhar, a encenação a ferros domada, dirigida, torna-se fazedora de justiça, ora expondo para si as leis sempre ambíguas e fantásticas dos homens, ora entrando em terrenos Salomónicos. Don Baker entra onde Brando tinha estado na fúria triste de Penn e junta um negro clamante de comunidade e uma prostituta a morrer de solidão que pede um só carinho, um só que seja. Os tiros entram nos quartos das crianças, nas cabeças dos amados, a papelada vira o feitiço contra o feiticeiro, a beleza é cuspida e emporcalhada por quem não mais viu um sol a bater num lago e tais revelações, uma criança vai à cama do hospital amarrar a mão do Pai e uma arma lamentosa que nunca poderia ter sentido nessa composição mas que tem pois o mal passou a fronteira permitida; a explosão final coloca alguma coisa no devido lugar, unindo finalmente o inseparável. A personagem mais abjecta do filme, aquele monstro engravatado que fala do choque entre o idealismo e a realidade como se fosse coisa para gozar, personagem que de certeza criou os tipos dos disparos gratuitos, vai ver nessa catarse redentora a nulidade da sua fórmula. Quando a Comunidade se faz um universo genuíno, infinito e sublime – mais do que justiça Salomónica é o natural em evolução – o sonho e o seu contrário, o possível e o impossível, utópico ou terreno, perdem a significância, mais do que isso, a convenção, para se alcançar o equilibro primitivo onde se deveria ter permanecido. O princípio, e quem tem razão já é o genérico final com o olhar para trás de Don Baker e a música de Johnny Mathis. Fabuloso, sobretudo porque a força da natureza e a moral, as coisas e os seres, se formaram um. O princípio. Daqui e da ponta mais longínqua.  

domingo, 13 de dezembro de 2015


Vale sempre recordar a doutrina de Phil Karlson, cineasta: veracidade, natureza, osso, implicação. “5 Against the House” pertence ao género dos heist movies mas está no oposto deles. Nada tem a ver com os Ocean’s Eleven pois o que é estilização, cool, maneirismo ou acessório não passa no filtro moral que entende a arte como razão de existência. Interessa saber como todas as coisas que a câmara capta, seja a realidade ou a ilusão, respiram e transpiram. O grande golpe, aqui pequeno, ridículo e inverosímil, só acontece por causa do grande medo, do tédio (com desemprego e sem desemprego) e da rejeição que os homens tremelicantes, apesar da aparente ligeireza com que soltam as piadas, auguram e sentem mesmo ao arrepio nas desprotegidas espinhas. Homens que não só viram a guerra mas que a transportam na carne e nos nervos como constituição orgânica, facto que nos anos 50 do século transacto serviu de dínamo para o irracional e para o extraordinário tal como nestes nossos tempos as drogas políticas e publicitárias. A guerra é a pressão que a todos devasta e a imagem do mal que a raça humana sempre teve necessidade de sustentar para que as coisas se mantenham na ordem da farsa produtiva. Assim, a personagem famosa e “sem problemas” de Kim Novak é tão decisiva e central como a do atormentado e fabuloso, porque sem margem para encenação (traição), Brian Keith, arrastada pela corrente da escória do seu tempo que como hoje tudo aplana em silogismos e genocídios. Mal, farsa, medo, depois disso ou nisso, só à selvajaria compete regressar – os elementos do golpe regressam aos primórdios, ao tempo dos cowboys, tudo viram do avesso, lei e caos no mesmo raio, as piadas cessam e as lágrimas vertem, e aí sim, pela ousadia parece haver uma nova esperança. Repara-se como no começo (voltando depois nos finais e nos meios) Karlson nos deixa a ver tempo demais para as regras dramatúrgicas os elevadores dos carros; ou como no primeiro engate o rapaz pede ao competidor que se chegue para lá e deixe a rapariga para ele, e logo o plano de conjunto de três passa abruptamente para dois - veracidade, natureza, osso, implicação, e faltou intuição, que nos perfeitos timings com que tudo é rodado e unido permite entrar todo o ar do documento e do indomável. Se rareiam músculos e sensibilidades destas, se calhar porque não têm uma fábrica propícia ou uma comunidade, lembremo-nos do “Thief” de Michael Mann ou das prisões de Ventura em “Cavalo Dinheiro”, para se voltar sempre à conclusão que interessa o génio ou simplesmente a pintura emocional que está à frente e não o espectáculo técnico, essa ilusão de poder.  


Frank Sinatra faz 100 anos, uma rádio passa durante 24 horas os seus êxitos cantados por ele e pelos seus herdeiros, o jornal da noite diz qualquer coisita da praxe antes da meteorologia, numa tasca ou noutra consideram-no o maior, e fico feliz pois ele resiste a tudo isso e continua grande. Só que, ao exemplo dos últimos anos, penso ou vejo ou escuto Sinatra e só me lembro de “Some Came Running”. Da complexidade da sua vida e da sua obra, das luzes da ribalta aos buracos e brilhos negros, o que sei dele, muito mais do que as ligações à máfia, aos bordeis ou às garrafas de whisky sem dó nem piedade, tem a ver com o movimento torrencial a que ele se entrega, movimento que por consequência apanha os que o rodeiam. Mas antes de ir a Vincente Minnelli, a Shirley MacLaine ou a Dean Martin, vou a James Jones, sem o qual nada disto seria assim. É lá perto do final das 1000 páginas originais deste contundente e contraditório altar humanista que se lê: «a essência, o sumo do que queria dizer, era que o homem constituía por si mesmo um universo sagrado e ao mesmo tempo um balde de porcaria, que infectava o ar do jardim e do qual era preciso desembaraçar-se o mais rapidamente possível. Estas duas coisas não só se misturavam indistrinçavelmente, sim formavam uma entidade só e única, não existindo portanto mais do que uma evolução». É assim que Dave Hirsh – livro ou filme, o mesmo corpo – volta à pequena terra da sua nascença, muitos e muitos anos depois, para tudo isso repelir e insultar, não admitindo que, de facto, os sentimentos não enganam, são sempre fieis quando recordam. E a sua violência, perdição, esse vórtice devorador que o consome nas deambulações, é de uma vez a recordação daquilo que certo dia em certo tempo árido julgou para sempre e assim não foi; e o que se lhe apresenta e se lhe agiganta como um presente prometido e estável que assusta por assim se voltar a apresentar de chofre, sem pedido. Esse embate entre o que foi a infinitude e o que se apresenta a prazo corrói-o inexoravelmente. Era uma vez... e não se sabia da morte, já foi uma vez... e tanto dela se tacteia. O filme, o livro, a vida, acontece: Sinatra a insultar MacLaine indesculpavelmente num segundo para no seguinte lhe pedir ajoelhado que esta se case com ele. Dean Martin a explanar que nasceu para beber tal como o seu amigo nasceu para escrever e por isso vive e morre conservado na bebida como Dave na fogueira literária. Alguns, como estrelas cadentes, tudo em milésimos, de passagem, amando o efémero, à maneira de Eugénio de Andrade.

Demorei muito a perceber tantas coisas do filme de Minnelli. Tantas coisas que não se dizem em palavras mas sussurradamente em olhares e expressões, vazios e silêncios. Mas certa vez, já não imagino a data, descobri que na infância, nessa casa vasta demais e sem contador, quando se é pequeno, vi tantos e tantos tipos como Dave Hirsh. Magalas, fugitivos, imigrantes, desistentes, seres sem rei nem roque que apareciam no lar já não doce ao fim de anos impronunciáveis e causavam sem querer uma hecatombe não muito pequena. Quando se estava no café e se via que algum estranho com uma aura devastadora se encontrava no bilhar e o ruído era mais do que o costume, já estava a ver o “Some Came Running”. Quando na missa as velhinhas e os adultos viravam a cabeça para os lados e para trás e tossiam mais do que o habitual, o “Some Came Running” já estava a ser visto e revisto sem o saber. Se na paragem do autocarro ou no jogo da bola domingueiro uma garota de saia curta e cabelo perfumado e arranjado não olhava para o estranho mas corava, o “Some Came Running” projectava-se sem freios em desmesurada janela e com toda a vibração e todas as cores e melodrama. “Some Came Running” é o mais antigo dos contos e dos dramas, e o grande realizador como o grande escritor que foi aos campos de batalha (sabe bem dizê-lo, sem falar em segundas linhas mesquinhas ou doutas) deram a ver pela primeira e derradeira vez essa ferida e esses desabrochares pois meteram-se no meio, por dentro das dúvidas e nos círculos contínuos, suicidiários e irracionais, talvez salvos pela paixão demasiada, sem distâncias gélidas.

Dou os Parabéns a Frank Sinatra e tenho de os dar igualmente a Dave Hirsh, bruto, caloroso, contraditório, seguríssimo. Não se trata do anti-herói pusilânime ou do escritor bloqueado que redescobre a inspiração, mas de um indefinível genuíno, um puro, uma fonte de confiança e um berço (ventre) seguro; resumindo, tarefa impossível: muito longe do virtual e das máquinas e da convenção, cheio de carne, sangue, suor, amor e raiva, sublime e esterco. E assim, de confiança. Sem lições ou conselhos: cada um como cada qual: um universo sagrado... Sinatra, como Hirsh ou Martin, são velhos como o primeiro cepo do primeiro jardim e novos como a eternidade. Todos os anos de vida.

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

LUCKY STAR - Cineclube da TOCA

 
 


Situado no centro da cidade de Braga, no espaço TOCA - Trabalho de uma Oficina Cultural e Associativa, este Cineclube tem como principal objectivo ser um ponto de encontro de todos quanto gostam de cinema mas igualmente daqueles que o pretendem descobrir. Através de uma particular atenção à história de uma arte centenária, todas as terças-feiras à noite um filme clássico poderá conviver com outro feito nos nossos dias, ou vice-versa, em relações que se pretendem produtivas e que suscitem o interesse e o debate. Fundado e programado por João Palhares e José Oliveira e com o apoio da SYnergia - Centro Jovem, cada sessão contará com uma folha de sala escrita originalmente para o efeito, que contextualize e analise o filme, bem como uma apresentação prévia. Sempre que seja possível ou se justifique, um convidado especial apresentará o filme e participará na discussão. Em resumo, quer-se devolver ao Cinema o seu estatuto belo e humilde de arte puramente popular que certo dia foi, pondo Braga no mapa da cinefilia que verdadeiramente importa, isto é, esse gesto simples da partilha.
 
 
 


"Tarrafal" (2007) inaugura mais uma fase bastante especial da obra de Pedro Costa, composta por várias curtas-metragens em remontagem de sentidos, depois das durações, amplitudes e respirações largas de "No Quarta da Vanda" (2002) e "Juventude em Marcha" (2006). Nesses filmes tratou-se de regressar às Fontainhas e à comunidade Cabo-verdiana sobrevivente em Lisboa depois de aí ter estado em "Ossos", só que, factor decisivo para tudo o que se seguiu, Costa dispensou as grandes equipas e meios do cinema dito industrial, para com os recentes e leves equipamentos digitais chegar realmente junto das pessoas, estando com elas todo o tempo necessário. Desse tempo, dessa disponibilidade incondicional para escutar as histórias de vida únicas e o quotidiano de um bairro, aboliu-se qualquer tipo de género ou fronteira cinematográfica, registando-se pessoas em vez de personagens, o seu movimento e por consequência o movimento do seu mundo, nunca deixando de lado um romanesco fortíssimo que irrompe da memória e do coração de cada um desses seres que vivem e habitam intensamente. "Tarrafal" abre com um plano de conjunto que ocupa praticamente metade dos seus dezassete minutos, imóvel, duro e no escuro como o que é dito, onde uma Mãe e um filho, aglutinando as promessas da infância e a desilusão adulta, vislumbram um passado na sua terra natal, fazem uma cartografia familiar e afectiva, um estado das coisas político e uma denúncia feroz que na sua extrema crueza e realidade ostenta laivos feéricos. Composição e fundo que reenvia directamente para "Casa de Lava" (1994), onde os vivos da ilha esperavam os mortos, os pesadelos, as notícias e os fantasmas dos que tinham saído para Portugal. Se "Tarrafal" apresenta uma inversão geográfica e sentimental em relação a esse filme decisivo, o facto de se passar numa zona abstracta e árida - uma barraca sem nome nem lei, no meio do mato e longe das rendas, fora dos prédios brancos de "Juventude em Marcha" e dos quartos de Vanda - acentua e aprofunda todas as perseguições, misérias e genocídios a uma raça e a um povo que como tantos outros corre o risco de ficar sem pátria, futuro ou dignidade. A conversa que escutámos acaba por versar sobre uma entidade sem rosto nem identificação que persegue, expulsa e finalmente mata quem decide não poder fixar-se no País acolhedor, e da boca de quem o conta ficamos a saber que também eles ou já foram apanhados e morreram ou estão em risco de o serem. Entidade que vai ostentando dimensões do mal em forma absoluta e fantástica, imemorial e contemporânea, e que será figurada em elipse na segunda parte do filme. Lá fora, em agrestes extensões que deixam apenas vislumbrar resquícios recentes da civilização, um velho procura e bate violentamente com um pau em algo que nunca veremos; Ventura, o Pai de "Juventude em Marcha", entrega os pesares fúnebres ao jovem da barraca; e do dia viajamos repentinamente para o âmago de uma noite cerrada que tudo absorve, cara do inimigo fugidio surgido inteiro na rememoração; lamento pelos mortos que nem enterrados podem ser, como os vivos que não podem escolher. Voltamos à barraca e já só com aqueles que já morreram mil vezes, habitantes da sombra que ainda contemplam horizontes perdidos, mantendo-se em pé por uma força superior de quem viu o inaceitável e não se rende por isso mesmo. Para o punhal e a expulsão final fazerem ainda mais sentido agora, depois de "Cavalo Dinheiro" terminar com facas, cantos e promessas de justiça, pacificado e grave, avisando agora Ventura e todos os seus da mesma maneira como antes foram avisados e agredidos. Pedro Costa, Ventura, José Alberto Silva, como em outras horas Vanda ou Pango, e à semelhança da desmultiplicação de filhos e logo de primaveras florescentes asseguradas, o rebaixamento ou a demagogia não entram, para na treva e no finca-pé se apelar a toda a luz e a todo o cósmico humanismo. O poder das formas cinematográficas e a força irredutível do amor.


O trabalho do Escocês Bill Douglas, nomeadamente a trilogia inaugurada com "My Childhood" (1972), comunga de uma mesma intensidade, rigor e, por consequência, generosidade formal, que engrandece e transcende o que à primeira vista já tantas vezes se viu. Num universo igualmente árido e compacto onde a descoberta e assombro da infância se vai desvelando num austero preto e branco que acentua a dimensão assombrada e o peso do real a um nível idêntico, o fora-de-campo pressentido ou sonhado tem um poder comparável às desilusões e anseios presentes nos filmes referidos de Pedro Costa. A orfandade é lugar de abandono, deambulações, magia e terror do inaudito que surge e se agiganta sem aviso, e Bill Douglas, secamente e liricamente, utiliza-se do manancial vasto e sempre por desbravar do cinema e da sua técnica para nos devolver o estado de candura inerente a essa idade. Nunca desprezando o genuíno classicismo, utiliza a escala de planos e a profundidade de campo necessária a cada evento, assim como a subjectividade e a temperamental fusão entre a fixidez e o varrimento; já os ímpetos sonoros, carregados de rugosidade e personificação assustadoramente orgânica, em correspondência com o acolhimento do génio da natureza, essa imprevisibilidade vulcânica do indominável, colocam estes filmes no campo liberto e fulgurante do que se acostumou chamar modernidade - constituição de um primitivo inclassificável. "My Childhood" atinge o máximo de lirismo nas cenas onde o comboio promete paraísos outros ou nos campos ventosos onde se ganha um Pai, apelo do desconhecido e da libertação calorosa que pertence à família de Jean Vigo (o plano da almofada esventrada no segundo filme é prova da consanguinidade); e chega ao máximo de drenagem e de silêncio nesses afectos subtis ou negados, nos abafamentos que potenciam a fuga do seio progenitor estilhaçado, quadros absolutos e ruído em surdina que reenviam para Robert Bresson. Entre embates corriqueiros e passeatas transgressoras, desemboca-se no longe, que é o destino da criança no plano final, recomeço ou destino a todos prometido. "My Ain Folk" (1973), filme do meio ainda antes de sequela, está ainda mais cravado de mistérios e de circularidade, levando-nos até vias-lácteas insondáveis - a cena da aula é apenas uma parte do universo dependente - em rostos de espanto que alumiam dentro da sala de cinema iniciática, únicas cores que fatalmente se desvanecem. E do cinema não é certo que se saia, tal a ordem de acontecimentos e de visões que decorrerão no suposto real. Ainda mais sozinho e emancipando-se cada vez mais do irmão mais velho, o miúdo que acompanhamos vai, para além de continuar boquiaberto com as confusões e misérias dos crescidos, descobrir que as pessoas morrem, que a morte existe e que talvez seja a meta última e assegurada. E é dessa luz que rasga uma fenda e ferida para um sempre que brotará a luz descarnada sobre os olhos desprotegidos desse ser ainda novo demais. Mineiros e camponeses, sinais de uma Escócia rural - dados pela música exígua e por outros dados reconhecíveis - claridade estelar e negrume inescapável, deriva entre os avós e mais Pais inventados e fieis, o movimento do filme permanece o movimento e fluxo grave e maciço da queda da inocência. Fatalmente, caixões entram e saem por janelas, acentuando o irreversível e a passagem, para tudo se deter na mais perene das conclusões, o aceitamento. Nos mais secretos recantos de "My Ain Folk encontra-se um miúdo e um Avô, escondidos para não se magoarem e tentarem a felicidade, debaixo da coroa de estrelas protectoras, fora de mapa e de cronologia, longe da doença do tempo. Rimando com o aceitamento e a lógica, essa marcha final em que tudo faz parte e comunga de tudo, os templos longínquos e a tradição em acção, o presente e os ecos, como em Yasugiro Ozu. Cinco anos depois Bill Douglas fecha com "My Way Home" o périplo de Jamie (Stephen Archibald), aqui mais do que nunca parecido com as atribulações e errâncias do Antoine Doinel que François Truffaut viveu com Jean-Pierre Léaud, legado natural de Vigo. Se no filme anterior entramos pela ilusão do cinema, neste será pela encenação e frontalidade teatral, no mais cerrado dos três. O teatro, o retrato familiar retido, a imobilidade e o regresso a casa como tentativa de todas as redenções. Mas a volta é breve, talvez porque as casas continuam umas iguais às outras, as disfunções caseiras irresolúveis, a respiração cortada. O paroxismo latente que a trilogia sempre meteu em centro arrebenta, para uma primeira explosão que será apocalíptica no término - a guerra entre o dentro e o fora, a casa impossível contra o desejo irreprimível, a ignorância e a morte. Jamie volta do orfanato decidido a ser artista, é recebido pela avó louca como um príncipe que merece o David Copperfield de Dickens, o irmão continua a projectar-lhe a sombra atordoante. Plana por castelos desfasados do meio, minas hereditárias e pianos quiméricos. Impõe-se o barulho dos adultos, esse ruído determinista, que o faz recusar a narrativa matricial em direcção à alma, numa ascese que quebra toda a estética e ambiência passada rumo ao interior. Das estrelas do segundo tomo passa-se para as pirâmides, desertos e enigmas ancestrais na terra, e Jamie entrega-se ao exército sem guerra e com tédio para auscultar as profundezas da vastidão humana e do natural em conjugação. Aí, as repetições e a repercussão, o pequeno e o incomensurável, os horizontes rasgados e o nada próximo, o quente e frio indestrinçável, convergem num ponto e num lugar limite para a grande explosão advir. O dentro, a casa, as paredes, as fundações. Abalo último, vilipendiação da matéria, criação de um novo mundo, renascer, Acto de Primavera e eternos retornos assegurados. Jamie ficou, como qualquer um, entregue a si. Bill Douglas partiu do berço de "My Childhood", passou pela condição onírica do Cinema para acabar no mais mítico dos palcos ou jardins da nossa existência. Foi da infância ao fim dos fins e atingiu o reinício. A juventude do mundo e o peso dos séculos e séculos. Para nos deixar a imagem mais acabada da solidão e da memória. Por entre os círculos e os elos e o sumo da Maçã partilhada.


Texto escrito para o catálogo: "Nos Caminhos da Infância", ciclo realizado no CAM (Fundação C.Gulbenkian) e programado pela associação Os Filhos de Lumière.

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

"O homem criativo não é um homem comum ao qual se acrescentou algo. Criativo é o homem comum do qual nada se tirou" (Abraham Maslow).

grande, grande Felipe M. Um abraço.

quinta-feira, 26 de novembro de 2015


Nem o mais medalhado script doctor, o mais pró-activo dos estagiários da coluna de humor do último grito em suplementos culturais ou a vedeta da agência de escrita criativa que faz o horário nobre conseguiria conceber algo tão ridículo e inverosímil como o genial Philip Yordan conseguiu em papel para "The Chase" (* mais de dez anos antes de "Thunder Road", Robert Mitchum, indómitos, liberdade, Coreia), em 1946, a partir de Cornell Woolrich, o tal de Janelas Indiscretas. Um veterano de guerra que depois saberemos atormentado, sem cheta para um hambúrguer, encontra uma carteira cheia de dinheiro, gasta só o pequeno-almoço, devolve-a aos donos que são saídos de um conto de Edgar Allen Poe, esse mundo e essa luz começa-se a parecer também com Poe, e ainda por cima ganha a razão e a mulher da sua vida, e ou é tudo isto ou mesmo nada disto? Como se não bastasse semelhante tratamento ou descaramento, no centro do filme temos um flashback que pode ser o mais rápido e nefasto dos flash-forwards como premonição divina ou infernal, em sintonia com o deus na terra que é a anátema do veterano - flash que é o mais verosímil e, tem mesmo de ser, realista. Neste chafurdanço todo, a confiança que Yoarden teria de ter nas atmosferas escorregadias do destino e dos estúdios e na fibra dos rostos como na movimentação dos corpos (com o caparro de Robert Cummings estava metade ganho), em Arthur D. Ripley e nos restantes artesões para apagarem e vergarem as luzes quase todas do planeta câmara e ficar só o susto e o choque da descoberta do segundo seguinte ainda a brilhar tremeluzente (a janela do barco como espelho quebra mais do que 7000 anos de má sorte), bem como nos bichos desta terra e desta selva que não vivem pela matemática nem pela lógicazinha mas antes nos raios imprevisíveis e imprevistos da emoção, foi total, e assim não temos nada de especial nem de inteligente, somente a continuação e a sequela do corte umbilical. Quer dizer, antes de estarmos moldados, formatados, crescidos. Entre a primeira palavra do bebé e o carimbo bélico. Possibilidades e aventuras infinitas do cinema. Aceitação olímpica da vida.





* O Robert Mitchum de "Thunder Road" é o Mitchum de sempre, impassível no centro do dilúvio. Guia a mil à hora pelas estradas ensarilhadas com o bucho do seu carro pejado de álcool. Fá-lo pois os seus antepassados vieram para aquelas terras sem nada e com quase nada conquistaram o essencial. É o tramado do whiskey que despoleta a tragédia como poderia ser qualquer outra coisa. E fá-lo porque obviamente também gosta. Do perigo, isto é, fixar-se nos limites; só assim se justificará ainda a ideia da empreitada ter sido dele, lançando-se depois à música e não tendo pruídos em cantarolar, nas calmas. A sua sombra, a sua massa omnívora e omnipresente tudo abarca, tudo abafa, cega. Morre tão de pé como as suas palavras e actos, e entrega o seu irmão limpo à menina dos sonhos. Os funerais que se espreitam ao longe, tão arrastados e penosos, tão dolentes, são o reverso e o lamento dessa medalha. Ficamos a saber, em menos de meia dúzia de apontamentos, que Mitchum veio da guerra, mas nota-se, em cada acção e reacção e nada, que por ter visto nesses cenários o que nenhum homem necessita ver, o desassombro e a convicção estão tão inerentes nele como o respirar. Portanto, nem a Mãe, nem a amada, o irmão ou o Pai poderão chegar-lhe ao coração ou ao exemplo da forma conhecida - eles estão com ele e estarão para lá da conformidade e da lei. Um homem que viu demais e não aguenta a promiscuidade terrena. A ligação final, a marcha funerária e as mãos para sempre, são uma e a mesma coisa, já medalha una, numa certeza que eleva o amor, realmente e sublime, à selvajaria. Bruto e sem tempo nem espaço. Crepuscular e novo. A morte e a nascença a flutuar no cosmos misturado - "Birth was the death of him", segundo Samuel Beckett. Só umas luzes cinzeladas no grande mistério. Como o vento no deserto para a flor solitária.

terça-feira, 24 de novembro de 2015



Mark Robson teve de largar as casas dos loucos e as ilhas dos mortos para se enterrar numa realidade bem mais medonha e delirante, o quotidiano normalizado, a realidade e o espectáculo do dia-a-dia, o que nos dão a provar e a comer no sofá da engorda. Philip Yordan escreveu e produziu uma história que se é tão autobiográfica como aparenta e se diz, nos continua a condenar a cada dia que passa. Quanto a Humphrey Bogart, aparentemente tão ignóbil e sujo como os restantes que rodeiam a sua esposa e o boxeur-criança, teve de esperar pelo fim da vida para a sua cara inchada e os seus olhos a desfazerem-se de tremuras e de medos poderem expressar genuinamente a fonte de todos os ódios pelo que viu e a possível salvação de todos nós arrancada a ferros. Os cigarros, o whiskey, as mil vidas, e a correspondente consumição pelos meandros andrajosos da fama e do poder que todos os três experimentaram para atingirem o desassombro de passar do negro do cinematógrafo à luz de um bom sentimento final. Então, todos os temas eternos são convocados: o pecado e a perdição, a maçã e o inferno, honra e orgulho, a mãe e o fim; e todo o momento em pressão e tensão: o desemprego, a imprensa, a publicidade, o cinema e o desporto correspondentes da guerra, políticos e atentados. E o que é mais impressionante é que não estamos perante o supra-sumo da encenação de Robson, da caneta de Yordan ou do mito de Bogart: as cenas de boxe não são credíveis, os diálogos são brutíssimos e estão longe das sinfonias de "Johnny Guitar", Bogart está quase a estourar ou a mirrar. E por causa disso, porque se prefere a veracidade e o sujo do que já não cola nem se pode polir perfeitamente, este amontoado de arestas acinzentadas e feias, um coro indomado e primitivo de tão inteligente, o glamour calcinado pelo humanismo estropiado, o falso e o mais do que real entram em choque frontal. No desenlace, uma nova página e uma nova história estão prontas a ser rabiscadas, com todas as fraquezas da carne e da alma asseguradas. "The Harder They Fall" é o espelho disponível e o nosso ponto de chegada constante; com apelo de remissão lá pelos fundos. Tão perto da vida e tão perto da morte. Fechando no intervalo do quadro composto com o homem e a mulher. O intervalo do amor. Então, cada qual que se atire. Ou a um abismo ou a outro. Mas a um abismo.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015



A conversação só é fecunda entre seres empenhados em consolidar as suas perplexidades (Cioran).

quinta-feira, 19 de novembro de 2015



Com “Wild Horses” Robert Duvall tentou ainda um lamento por aquilo a que chamam velho estar constantemente a ser engolido por aquilo a que chamam novo; belos e selvagens cavalos em colinas resgatadas e resistentes ao betão e ao combustível. Mas falhou, falhanço que tanto mais dói quando se pensa no enorme cineasta que estava em “The Apostle”, união de Mark Twain e da grande literatura sulista americana com os crepúsculos dos últimos clássicos de Hollywood. Ou porque os executivos (Zanucks do Martim Moniz) lhe sacaram as mãos da massa, ou porque já não é possível contrapor ou conciliar tais coisas – sentimentos, paisagens, arquitectura - num mundo já definitivamente outro e irremediável, o certo é que tirando os olhos fundos e aterrados de Duvall tudo o resto é supérfluo e surpreendentemente mal fabricado (quando se montam silêncios como se montam explosões, é o fim sem princípio dele).

O velho cowboy e a sua sesta pela sombra na desmesurada extensão agreste, o sol queimante fustigando as pedras chamuscantes e o chapéu que faz parte do corpo, a valente cigarrada a rimar com a fogueira da ordem, o cavalo ao lado sentindo tudo e também não descansando... mas, grande mas, o som alheio a esse quadro perfeito já fazia adivinhar a desordem e a tragédia. Aviões e cowboys não é o habitual e a essa estranheza Kirk Douglas ainda não se habitou, nem se vai habituar. Seguidamente são as cercas, arames farpados, propriedades privadas... depois os fumos e os químicos, os monstros motorizados, toda uma sujidade a conspurcar o que era o límpido género cinematográfico americano por excelência. Só nos podemos recordar do raivoso “Man Without a Star” que King Vidor fez apenas sete anos antes de David Miller ousar “Lonely Are the Brave” e termos ainda mais pena desses homens e dessa única mulher que sofrem por não se saberem integrar. John Huston tinha acabado de falar e de mostrar disso no dolorosissimos como o rosto esfrangalhado de Montgomery Clift “The Misfits”, e Wim Wenders iria depois comentar o mesmo em alguns filmes sensibilíssimos e noutros menos bons, só que a definição que Douglas dá à sua estirpe e o final há muito prometido nas paralelas do progresso cravam outra ferida que ainda hoje não sarou. É logo depois de ele ter estado com a mulher do seu melhor amigo e de percebermos um amor para a vida e para a morte entre eles, logo depois da inexplicável e óbvia bulha no saloon, logo logo depois de forçar a prisão para poder estar um pouco com o tal irmão e de perceber que esse homem que odiava as mesmas coisas que ele, esse homem amante da liberdade que ajudava refugiados e não punha limites no que a sua vista alcançava, já prefere aguentar a lei e as suas cordas fortes para poder voltar para a mulher e para o filho e para o lar. Douglas, que jamais conseguiria mudar embora se calhar o quisesse, foge mesmo e volta à mulher para contar do que pensava não ser possível. E redime então infindáveis seres e infindáveis destinos: a doença ou a cruz da solidão; não se escolhe nada disso por moda ou posição, nasce-se assim, aleijado; a única pessoa com quem esses aleijados podem viver é com elas mesmas; matando quem a elas se ouse juntar. E foge, foge, livre como o vento e condenado pela sua natureza. O seu Whisky, nome do seu cavalo inseparável, com brigas e reatamentos incluídos, vai com ele fazer a subida aos céus que costumam fazer tais teimosos, provando a sua razão e os seus motivos, mostrando que se existe para além do carimbo burocrático. Longa caçada e outro ser extravagante para as novas regras e tempos, o xerife de Walter Matthau, tão calmo e pacificado e certo como o fantasma que tem de meter na jaula, ficando feliz pelo inimigo ter escapado para assim poder fazer brotar novos anacronismos, balões de ar e carne e osso que possam falhar, gente contrária aos autómatos que comanda. Opostos nas farda e no ofício, compreendem-se numa paz dos anjos que guardam só para si – esta criação e esta correspondência só o impagável Dalton Trumbo a poderia ter sonhado e concretizado, aposto. Mas, desconfiávamos, aquele adamastor TIR que ia aparecendo sem lógica pelos interstícios, teria de ter alguma função. Quando o xerife só pensava num bife e na cama encontra na autoestrada o cowboy por terra, por lama, vencedor e acabado, grande e imóvel. Sozinho e bravo. A câmara sobe classicamente e alguém vai gritando para se ser rápido, Rápido, Rápido, Rápido, até à exaustão. Para descer novamente ao betão e encontrar o chapéu de toda uma humanidade sem dono, vilipendiado, esquecido e em grande-plano. E as infinitas conclusões para tirar desses choques. Sem legenda necessária.


quarta-feira, 18 de novembro de 2015


Cy Endfield pelos caminhos e velocidades de “Hell Drivers” já se apelidava C. Raker Endfield. O que um Homem tem de aturar... E como estava ele e a sua garra em 1957? Cada vez mais amador, isto é, tradicionalmente selvagem, usando o que aprendeu e o que sabe que resulta, mas sempre a deixar que o vulcão do instinto se manifeste. Um navegante da vida, desempregado, saído da prisão, rasgado de cicatrizes, não segurado socialmente nem fiscalmente, aterra em terra de ninguém e vê-se obrigado a seguir as regras do jogo. Começava a ensinar Sam Peckinpah por essa indefinida era: a honestidade e os pactos podem ser uma e a mesma coisa, levando-se o que importa levar para a frente. À primeira vista o pica-boi consiste em conduzir camiões cheios de areia ou pedra de um lado a outro, velozmente e em concurso de vale tudo, então ele e nós ficamos sem perceber nada de nada. O estóico grupo Hawksiano de outrora está estilhaçado e a atmosfera reenvia para os anestesiados de Monte Hellman a fazerem coisas sem saberem de lógica, de entusiasmo, de sentimentos e pulsões comuns. Visto daqui, do século XXI, tudo se parece com as globalizadas corporativas assépticas a sujarem-se na sombra, os capitalismos encapuçados que empobrecem o próximo, tais liberalismos cobardes e trucidantes que reinventaram ou inventaram o genocídio moderno; fica-se à nora e isso nada tem que ver com o talento do argumentista ou com o plot fora de gancho, e é muito mais lato do que o ajuste de contas político mencionado nas duas linhas de qualquer calhamaço histórico do cinema. Do lado de Stanley Baker vão estar os bons, os que querem entender ou só entrever alguma coisa para lá do cheiro fétido que os enleia; da parte de Patrick McGoohan, marioneta num palco que o ultrapassa, aqueles que só almejam o vil metal e a vil ambição, não se importando que, como agora, os mercados, as agências, os ratings, o abstracto mal que passa por bem prepare o Apocalipse e a próxima guerra. Entre as opostas facções conhecidas vão estar as mulheres, leves e carregadas dos problemas essenciais, mulheres que ainda continuarão a resgatar. Porque órgãos como o coração ou o incompreensível que se percebe nos sentidos e nas dores, a alma ou o que for por ela, existirão enquanto o último da raça não apagar a luz e meter ponto final na terra e na existência; então, do virtual começa-se a entrar lentamente e de rompante para o visceral. Visceral – as porradas e o sangue derramado pela dignidade, os derradeiros suspiros por amor, a vingança animalesca com causa depois de tantas outras faces oferecidas em vão, o irracional superior, o absoluto em causa. Endfield, isto ninguém lhe roubou, continuou a sentir os choques que Eisenstein causou entre o inconcebível e o patético; e lembrou-se daquilo que lhe tiraram, dos choques sempre por inventar, sempre a urgirem. Os líricos ventos finais, as explosões como uivo no deserto, o abraço reservado ao par e a nós enquanto quisermos, são do gesto da reposição, da violência da reposição. Disto ninguém nos pode tirar. Mãos à obra. 
* Que hoje o filme se encontre nos escaparates mais expostos das Fnacs ou das Wortens, com promoção incluída e imagem bem tratada, talvez junto a um Lang ou a um Fleischer e longe dos Autores, armado e disponível, é mais uma prova dos certos e dos errados e da arte do tempo.

terça-feira, 17 de novembro de 2015



Os gritos, os uivos, o gelo dos pesadelos e a melodia fantasista e assombrada do Over the Rainbow criada para Feiticeiros de Oz entrelaçam-se em “I Wake Up Screaming” para uma ultra realidade assomar monstruosamente entre o caos urbano e as mentes ludibriadas pelos sentimentos e pelo caos outro e ainda mais mortífero das paixões. Em 1941 “Citizen Kane” partiu do mítico para ir escavando até à infância e aos pretéritos empoeirados pelas películas do tempo, mito novamente; nesse mesmo ano, Bruce Humberstone, um Orson Welles a olhar das valetas e dos tascos e becos das luzes indefinidas das sete e pico da manhã, instala-se nas delirantes espirais da sede de fama e do clamor das luzes da ribalta para descarnar e estripar as lendas e mitos da sedução Hollywoodiana. Toda a parafernália e paracinema em revelação ontológica. Não há culpados por aragem assim viscosa e por chão assim deslizante, caldo espesso de brilhos lânguidos onde a mulher sonhada no berço e redimensionada adultamente escancara a perdição mais antiga, imemorial, inata. Mulher que se desmultiplica, magnetiza, fende, solda, tudo a uma imagem autofágica; em visões impossivelmente ideais que ao perderem a nitidez e o humano encorpam o altar dos mortos; mulheres que regressam dos túmulos em salas de projecção e logo perto, em espelhamentos, nos quartos de dormir ou nas paredes do cérebro. É assim o paradoxo que atravessa todo o Cinema Americano que importa, a sua esfinge e a sua bruteza: Victor Mature é apanhado numa massa ferruginosa, em ângulos desequilibrados, coberto de luz escanifrada e dura, exausta e enforcada, condenado; e todo esse pesadelo inenarrável, sonho Kafkiano, teia Freudiana, Vertigo (semente, bastardo, remake de outra vida do filme de Hitchcock) que cobre igualmente todos os outros bebés grandes e medrados, é enformado e imediatamente superado por um Agora absoluto de ruídos, texturas, morfologia, enfim, corpo que é o do nosso mundo quotidiano e sensível, antes de Deus e da prece; para se chegar ao fundo das coisas, passa-se pelo delírio delas; aceitação e libertação. Over the Rainbow, Street Scene orquestrada por Alfred Newman em cima de noites de mil olhos e mil perfurações. No desenlace, nenhuma conclusão, ponto de chegada, apenas mais um enlace de corpos que nessa bruteza à Botticelli promete todos os imprevistos. Entre “Citizen Kane” e “I Wake Up Screaming” tanto caem os patamares e os juízos de valores como os filtros e os pilares da patenteada realidade. Para uma dança e um vínculo e uma solidão perpétuos. O que os novos mestres do motion grafics, dos after effects, das composições photoshop e afins, especialistas e opinion makers para Curriculum Vitae, o que tais não lhes cabe na cabeça é que aponta-se a chamada câmara ou a língua, foca-se, pensa-se, e a complexidade bruta da paixão ou do ódio, o nosso ajuste e a nossa construção singular, comporta os filtros mais avançados alguma vez criados em laboratório. Sem acordo. Sem compromisso. Inatos. 

domingo, 15 de novembro de 2015


Agora que o ouro se foi, podemos voltar a ser amigos. Leigh Brackett (numa concentração e compressão à "Rio Bravo") elucidou em percurso linear toda a tortuosa história das relações e dos desejos. Gordon Douglas seguiu o rastro e a marcha e só lhe aparecendo poeira, mortandade, fossilização, forçou a câmara de tal maneira ao necessário enquadramento e foco que dominando a orquestração cinematográfica tudo lhe parece ter fugido nessa sinfonia da danação rasteira, completamente junto ao chão que tanto relevo apresenta. Partículas e véus em confrontação, minérios e respirações. "Gold Of The Seven Saints" desponta de escarpas e texturas corrompidas pelo valor do tesouro em questão, onde os maquinismos e a técnica da encenação se vão perdendo trementes, tenta a redenção carnívora, uma estabilização e compromisso ancestral, mas a pequena ilha de serenidade e luminosidade volta e torna a emperrar; do possível conforto, do possível e impossível lar, os dois ou três ainda crentes são largados ao espectáculo das ambições e dos acordos outra vez e sempre rasteiros, únicas leis perenes da largada paradisíaca, e o vento conflui com as aves nefastas, as pedras cobrem os corpos sacaneados e o sol devora-os sem apelo nem bênção, o amor vale tanto como essa outra grande pedra que destrói quem olhou o brilho do ouro tão de perto e foi castigado pela ousadia. Pó, vento, dureza, suores, incompreensível, o trajecto inteiro. E dois homens, no principio como no fim, ainda a cantarem, ainda falarem, ainda juntos. Num eterno retorno dúbio que tudo escurece. Compreende-se muito pouco e percebe-se muita coisa. "Gold Of The Seven Saints" é negro e elucidativo; e prepara e destroca o dilúvio de "Rio Conchos", a fossa e o vórtice e uma paz em "The Detective".

sábado, 24 de outubro de 2015

They Live was a reaction to the Reagan years, but the income inequality, corporate ownership of the media — all of that is more extreme now than ever.

Yeah, it is. You have to understand something: It’s a documentary. It’s not science fiction.

J.C

Em "Rio Conchos" Gordon Douglas utiliza-se subtilmente (nunca pretendendo ganhar ou bater-se sequer com o colosso natural) das gruas analíticas de funda observação de Delmer Daves e potentemente das fundações e construção granítica de Budd Boeticher, para numa caminhada rumo a uma suposta paz no final da guerra civil americana, bons e maus, oficiais e dissidentes, sangue reconhecido e amaldiçoado, reverterem todos os pressupostos, livros de história ou carimbos, transcendendo assim este filme já de 1964, quando o western já tinha fixado o seu núcleo e mito, a um libelo ímpar pela complexidade e carácter singular de cada constituição; de cada um desses homens e da mulher, dos vales, das árvores, rochas, rios e escarpas a unirem o céu. Entre o comandante vacilante que quer subir de posto e um derrotado que perdeu a família toda e só cheira e fala com a morte, a questão da palavra e do olhar nos olhos vai ser fundamental, e aos motivos pessoais e animais vão-se impor, conhecendo o próximo e vendo o que não se deve ver, os motivos comuns, logo revolucionários. Quando os reinícios das guerras estão prontos e a vileza acordou e se acordou, quem viu de cima e de dentro, das gruas e da rocha, vai perceber que urge outro reinício, daí a explosão cósmica que promete outro estado e outra união além bandeira - o sargento e a pele vermelha, finalmente belos seres em conjugação com o animal ferido do fabuloso Richard Boone, e do negro. O mexicano que os tinha acompanhado, ludibriante Anthony Franciosa, afundou-se nos trilhos e desejos ínvios, mas os gestos e a forma como Douglas o protegeu, lembrando Nick Ray a proteger Dancin' Kid e irmãos, também lhe dá razões; como a outros peões num tabuleiro que os suga. O quadro final: desolação, quente e frio, sismos e cercos, caos e condensação, desesperança e o regresso. Círculo detonado, cogumelo, outra vez zero, que alcança e perfaz temporalmente e infinitamente com os círculos apocalípticos de "Acto da Primavera" do Manoel de Oliveira e "The Thing" de John Carpenter - no deserto, no gelo ou em chão sagrado, tudo desemboca no e para o mesmo, descarnando-se as entranhas da categoria ficcional ou efabulatória para se apurarem naquilo que somente foram - puros documentos da estirpe que aí habita. Em boa verdade, uma cantilena do mundo e uma janela aberta. Largo resumo, estado, semente.


1968 e cada vez parece pior. "The Detective" destapa a cortina com um plano estranho, invertido, onde a cidade assoma reflectida no que parece ser um charco pútrido e mal cheiroso; a câmara treme, desarranjada, nada elegante, e só depois se tenta recompor e recompor o panorama, mas não é nada convincente. O segundo plano, parece que não, que já está melhor, mas é tão estranho como, ou mais; o centro é ocupado pelo farol de um carro, corta o protagonista pela cabeça, desenquadra e desequilibra todas as regras e linhas e moral. Frank Sinatra, o detective, entra na esquadra, sabe das novas e dos mortos, conhece o novo comparsa que lhe agradece poder trabalhar com o melhor da cidade, e ele, a estrela, ri-se. Ri-se, e é sobretudo isso que o vai tramar. Não tarda, começa a bater nos seus colegas, a querer saber o que não se deve, acende luzes que deveriam estar apagadas para sempre, tenta aliviar a fossa em esgotos impraticáveis. Ou seja, faz as coisas bem e por isso está obviamente errado. E corre mesmo mal, é trágico. No fim, como no princípio que nada augurou de bom, devolve o distintivo e todas as consagrações pois também ele foi engolido, participou do cheiro putrefacto, duvida que esteve realmente limpo na postura e no ego, ou começa a questionar se isso é possível. Mas nós vimos, tivemos a oportunidade de perscrutar o seu olhar, uma chama do seu interior, e sabemos que ele acreditou - por isso Gordon Douglas tanto fixou a câmara nele, contemplativo. Nele e na fabulosa e desfabulosa de tão dorida Lee Remick, apaixonado ainda - a mais magoada das mulheres, sempre menina, incapaz de não o ser - que por causa de também não saber enganar se vai dar mal. Se estamos imersos numa cruzada à Otto Preminger, nos terrenos de Don Siegel mas também do implacável e generosíssimo Sidney Lumet, se conhecemos bem estes meandros da nossa Guarda Nacional ou de alguns abutres contíguos que em vez de protegerem as pessoas as humilham, o essencial e a ferida vai para o lado intimista desses dois que se perderam de amores quando já tudo tinham esquecido, e talvez o centro seja mesmo Remick, completamente desarmada, ainda mais do que com Elia Kazan. Deu-se mal até conhecer Sinatra, e vai continuar a dar-se assim, vai continuar a não conseguir crescer, dizendo sempre ao que vem. Pode ser que depois de o filme ter acabado eles sejam felizes para sempre, finalmente, largando ele a sua profissão que o devora todo junto com o Whisky, entregando-se ela ao único Homem que a fez Mulher. Mas até ali foi trágico e triste pois deu-se o encontro de dois seres sinceros demais, expostos demais, que preferem matar-se rapidamente pelo que pensam ao invés da morte lenta e penosa e nojenta da dissimulação necessária aos tais adultos reconhecidos. O mundo, a sociedade, as políticas, as pessoas, estão tão habituadas a que só se entregue um bocadinho da verdade para limpar almas e consciências, um bocadinho de elixir que lave o fedor só um instante, que não admitem o gesto completo - duas pessoas, o par, os amantes, absolutamente nus, eles, questão de carácter e sangue, é escrupulosamente escandaloso e proibido. No mundo, nos jornais e telejornais, discursos e plateias, só admitem meias-verdades, admitem um par em que um é bom e outro mau: Sinatra e Remick estão perdidos. Finalmente, os dois fundem-se ainda com os tantos fatalistas que habitam e se consomem por esse chão magnético, gente que não se domina, gente sugada e irresponsável, sempre a dizer da boca para fora a sua impossibilidade e sendo isso, assim dolorosamente, a prova do seu brio. Menos por menos fizeram dar mais e a equação cientifica é prova de facto. Rezemos para que depois de sermos largados do filme tudo se resolva bem, revolucionariamente. E que o tal arco-íris que tudo abrange e mascara e salva o mal, possa conhecer um pouco de apocalipse. Sinatra a desabafar que a psicologia ajusta os frágeis a um mundo patológico... Quanto à outra mulher, também meio escangalhada e a pedir salvação, Jacqueline Bisset aparição, bastava mais um milésimo de segundo de fixação da alma, e acontecia entre eles, mas Sinatra seguiu em frente. O último plano é um homem em direcção às luzes da cidade, atirando-se ao desconhecido, calmo e sem travões. Rezemos por ele.

quarta-feira, 21 de outubro de 2015


Há belas cenas no "The Unforgiven" a que John Huston se lançou por 1960. Um irmão a tirar as botas ao outro para um banho merecido no rio como um duelo benigno na poeira; a suposta irmã a correr para esse irmão nu que ama e os dois a ficarem um nessas águas resplandecentes como os firmamentos e os véus que tudo vão cobrir de mistérios durante o conto; Lilian Ghish e Mozart no cansado Oeste como existiu Tombstone e Shakespeare em John Ford, descarnado solo em tempo de passagens e de testemunhos encorpados fantasmagoricamente; o desejo de outros portos, bebidas, toques e finalmente fim da inocência. Mas a progressão vai misturando muitos tons diversos que não são a diversidade e desarmonia da existência diária e partilhada, essa violência do imprevisto, mas sim os apaga-fogos e sopas de cinema que banalizam o peso das questões. Não é dos meus filmes favoritos do portentoso Irlandês que gostava de beber, de ler, de ver e sentir em carne e osso o que lia, de mulheres e de se estar nas tintas; mas tem um crepúsculo sublime que vale tudo, só possível pela arte sinfónica e orgânica como a corrente do sangue que o Cinema pode. É ali, quando já tombaram corpos demais e a raça humana, toda ela, se sujou e humilhou, que uma cruz se forma; uma cruz liberta de significâncias Cristãs ou simbolismos inerentes, mas sim puramente religiosa, no amplo, belo e eterno sentido, a união da carne e do espírito e do amor sem freios. Então, Burt Lancaster, o irmão que descobriu na sua irmã uma pele vermelha e que mesmo assim ficou, junto e acreditando cada vez mais, abraça o outro irmão crente e a irmã que já não o é e continuará a ser; beija-a na boca, numa assunção completa, e o abraço ao irmão vale o mesmo. Todos os dilemas, tensões, degredos, o irresolúvel e irreconciliável dos Westerns e do contemporâneo, ficam sem dínamo e sem razão; envergonhados. Dali, só mais milagres, e tragédias por conseguinte. Outro irmão ainda que se perdeu regressa bem-aventurado e ajuda a uma limpeza que muito mais do que étnica é humana e existencial; e da supra tragédia sobeja um bem e uma claridade a que não há volta a dar; para o bem e para o mal, condenados, mas dentro disso o sol ainda brilha, o céu fica prenhe de radiâncias, a composição e a harmonia renasce; todos eles saem para fora, depois da podridão concentracionária, mortos e vivos relacionados e a participarem na fatalidade da raça humana inteira; fogos e vísceras em combustão negra, o vento a fazer valer-se, presente; um bando de aves a passar, esvoaçantes, absolutamente livres, leves e de um peso incomensurável e inaguentável para as misérias cá de baixo. Todos a olharem para cima, todos que são um, a perceberem tudo e boquiabertos. Soltos e estraçalhados - entre mortos e feridos alguma coisa se salvou. O grande paroxismo - o sagrado com o horrífico em planos alternados, em fusão, diluição, comunhão e negação. O alto e o divino a comentarem o oposto e o sem nome e sem nexo. Quando Porter, Griffith, Chaplin ou outro bravo sem medo do poder da síntese sonhou e concretizou disto, o mundo limpou-se e tremeu apocalipticamente. Huston também se pode ter perdido mil vezes, borrifado mil vezes, morrido outras tantas. Mas, como Peckimpah ou o devorador Ferrara, chegou a esta ponta do caminho e a esta bifurcação, a pressentimentos e visões inescapáveis, e a coisa piou fininho. Gravidade. Luz.