segunda-feira, 6 de abril de 2020

caminho de volta...



Com quarentena ou sem ela o facebook de Jorge Silva Melo continua uma preciosidade, um oásis potável no centro da fossa comunitária, um raio de humanidade e de esperança no eterno último reduto dos cobardes. Não sou contra as redes sociais, sou contra o mal inato dos homens a ser posto em evidência nessa superfície das superfícies, a obrigação de ter opinião, a necessidade de aparecer a todo o custo para ter relevância e não cair no esquecimento, tudo a custo da trampa que for. Num post recente Silva Melo mandou uma tirada daquelas que costuma mandar, dizendo que já viu muitos filmes maus salvos por bons actores, mas nunca viu um bom filme cheio de maus actores. Talvez se possa arranjar excepções, do cinema clássico do pechisbeque, esse cinema sem suposto autor que não tinha condições para escolher os actores certos mas apesar disso conseguia articular uma narrativa, fazer maravilhas com a câmara, inventar raccords de montagem ou cerebrais, promover choques entre realidade e pura ficção, maquetas de estúdio e antros de perdição, etc; ou convocar a fase Mexicana de Luis Buñuel; ou então, caso mais complexo, quando se prefere o peso da veracidade, da herança, da verdade de alguém a representar-se a si próprio ao invés de se contratar uma vedeta, ou mesmo um bom actor, para tentar mentir sobre aquilo que não sabe. Perde-se perfeição e polimento, ganha-se honestidade. Muitas vezes, os grandes actores conseguem-no, mas há casos, tradições (mineiros ou treinadores de desporto), verdades, que não dão para fingir.

“The Way Back” é um desses casos, embora não consiga dizer que é mau pois é mal realizado, provar que a câmara treme muito sem justificação, que a escolha dos ângulos de filmagem é confusa, contraditória, muitas vezes saltando o eixo e a regra dos 180º sem grande lógica nem impacto; não o consigo condenar totalmente por isso, nem pelas distâncias duvidosas de certos planos afastados em combinação com o perto e mesmo os rostos, ou essa música que não traz nada de novo e que pode simplesmente embalar… não consigo dizer que é um filme inofensivo ou inútil pois eu percebi totalmente a personagem de Ben Affleck, os seus dilemas, a sua tragédia, as suas feridas, a sua necessidade de não cicatrizar nada, de pelo contrário as agredir e abrir, de fazer a paga própria e terrena já que a justiça divina se parece ter esquecido dele. Se tudo isso aparece a uma vez limpo, escancarado e protegido, não podemos estar em presença de um filme dispensável.

Na abertura começamos por saber que Ben Affleck é daqueles que poderiam ter sido alguém, como o Berlamino de Fernando Lopes, desses que na infância e na adolescência tiverem o mundo e o futuro a seus pés para depois o chutarem ou lançarem para longe devido a opacos motivos que jamais entenderão. A cruz carregada por Jack é um castigo e uma auto-flagelação auto-imposta, a insistência de permanecer no calvário para lá do aceitável é culpa dele e não de um «outro» culpado. Nessa zona sombria e luminosa da Califórnia ou aqui ao lado onde moramos, miúdos já de trintas e quarentas anos que sofrem de saudades dos tempos remotos congelados algures, dos tempos em que o jogo da bola era o dom sem margem para dúvidas, o divino e a religião, a justificação da vida que não pediram, a maneira de desafiarem a perdição prometida, e agora sofrem pela perda do Paraíso Perdido.

Quem fala no jogo da bola pode falar do pianista prodigioso ou do físico prodigioso, a infância e os sonhos carbonizados por dá lá aquela palha, de uma maneira que não se consegue desculpar nem tolerar, como as criazinhas arrancadas ao leite materno muito antes do tempo. Vamos encontrar Jack a fazer-se de trolha e muitos de nós vão falar com ele, vão ver novamente a sua ferida a abrir-se, um reenviar para o passado sempre presente, nosso ou de alguns casos que conhecemos assim na infância sem sabermos que iríamos ser semelhantes. Lembro-me do prodigioso jogador de snooker na sede do clube de futebol da minha aldeia a derrotar qualquer um em breves segundos e utilizando o taco ao contrários na últimas bolas para humilhar o adversário, o amigo que o compreendia e que não levava a mal. Provavelmente foi fã do Tom Cruise do “The Color of Money” nos sumptuosos anos oitenta das salas gigantescas de cinema, estudou-lhe os gestos, sacou-lhe a pinta, namoriscou umas raparigas à pala dele, mas vinte anos depois também caiu na trolhice ou na fábrica de torneiras da periferia, a brilhar nos sábados à tarde, pela noite adentro. Lembro-me de um fabuloso rapaz loiro, fabuloso atleta, apanha-bolas do Sporting Clube de Braga, que aparecia na televisão amiúde a devolver a bola aos seus ídolos, prometendo-lhes que iria ser como eles, e que uma vez humilhou a minha turma, lembro-me da frase que me soltou quando só decorriam alguns minutos de jogo: «uma dúzia fica mais barato», e minutos depois perdíamos por 12-0, num fabuloso mergulho da pequena cabeça. Esse loirinho de cabelos cortados à tigela-anos 90 chegou à equipa-b dos profissionais, foi titular, continuou a brilhar, mas um dia teve de tirar uns meses de folga para cumprir o serviço militar e quando regressou nunca mais foi o mesmo. Ninguém soube explicar bem porquê, sempre pairaram versões várias e opostas, o certo é que começou a fumar cada vez mais, casou-se, começou a engordar, a beber cerveja a metro, um mistério a adensar-se, foi dispensado e hoje passeia pançudo pelas ruas de Braga, onde muitos o reconhecem e o tratam como a vedeta que ainda é, mito urbano, espectáculo ambulante, o para sempre possível João Vieira Pinto que por momentos o chegou a ser; lembro-me das meninas «modelos», a próxima Claudia Schiffer, hoje e para a eternidade belas a trabalharem nos cabeleireiros e nas lojas.

O hustler das mesas de snooker tem vários filhos e a vingança infligida aos compinchas amansa-lhe constantemente o ímpeto, salvo raras explosões impossíveis de conter; o João Vieira Pinto número dois compensa nas grades de cerveja e nas equipas dos campeonatos amadores em que continua a brilhar já quase aos quarenta anos, facilmente, devorando nos terrenos pelados o mistério e uma possível culpa; as cabeleireiras, as modistas, essas de quem desviamos o olhar nas caixas ou na secção da padaria do Pingo Doce ou do Continente, alienam-se em revistas, séries de televisão, nas discotecas de fim-de-semana onde são desejadas como as super-modelos a que um dia aspiraram. Príncipes e rainhas, outros nem por isso, talvez todos nessa história de uma humanidade que certo dia vislumbrou e tocou numa luzinha única, bruxuleante, talvez ambígua ou ilusória demais. Talvez pudessem ter feito um pouco mais, talvez não, teve que ver com a senhora sorte?

O Jack de Ben Affleck trabalha até rebentar, bebe como um Dean Martin no “Rio Bravo” e magoa-se para se esquecer disso, porventura para meter, como diziam os adultos na alvorada da sua vida, juízo na cabecinha. O filme desenrola-se e vamos ficar a saber dos problemas que ele teve com o Pai, de um casamento talvez precoce e logo uma vida estável que já não dava para mudar quando começou a ter consciência da troca que teve de fazer sem querer, de um filho amado e perdido, e da tragédia consumada num «para sempre». E de como Jack tentou substituir a tragédia adulta pela oportunidade perdida no Paraíso das magias e assim não dar chances de ruptura ao compartimento do cérebro que fecha a sete chaves os foguetes mais brilhantes e sonoros de toda a consciência. Não dar chances ao coração abafado. A nostalgia e o imperdoável em retrospectiva a perderem a substância original, como quem martela álcool e o bebe como sendo a colheita certa. O destino e o inexorável a adormecerem as teimosas melodias da infância que teimam em não cessar.

Gavin O'Connor não parece ser um grande cineasta, nem um realizador com talento, mas também não é um criativozinho do argumento, da dinâmica mentirosa e espectacular, da pro-actividade dramática, tudo vocabulário desprezível. De certeza, pois Ben Affleck encorpa toda essa fatia gigantesca da desilusão ao «Deus-dará» de um modo e com um peso que parece não advir somente do empenho de actor profissional, nem do método reinventado, da grande mentira. Inchado e não somente gordo, sem centro de gravidade e não apenas bamboleante, atormentado e jamais apenas bêbado; a pele estriada, o olhar sem centro, os gestos desencontrados, o caminho perdido, tudo fruto da negação existencial e sensível. Há cenas no filme de verdadeiro realizador, como aquele primeiro encontro ao ar livre com a ex-mulher, no qual os silêncios e os olhares desencontrados, a câmara a recuar constantemente até nos sonegar o que não podemos aceder, o que não temos direito mas compreenderemos pela experiência de cada um, se torna na única possibilidade daquela cena existir. Esse Jack que saberemos perdeu um filho, e por causa disso perdeu a mulher que certa vez ou para sempre amou, pensando ter perdido filho e mulher da mesma forma que perdeu a oportunidade de ser jogador de Basquetebol; Jack é o mesmo que implora a um dos miúdos que vai treinar,  nessa oportunidade caída do céu ou escrita nas estrelas, que assuma a posição de líder, daquele que lançará a bola decisiva nos derradeiros segundos, retirando-lhe o medo de jogar e logo o medo de viver, simplificando-lhe os problemas caseiros e devolvendo-lhe o Pai aos pavilhões e ao amor mútuo.

Uma oportunidade, uma última oportunidade, one last shot at redemption, diz a sinopse e muito do espírito americano. Jack é contratado para orientar a equipa em que certo dia brilhou de um movo inultrapassável, retira-a dos últimos lugares, devolve o orgulho aos miúdos humilhados, sai por instantes da sua carapaça de coitadinho. Outra das cenas mais fortes surge num dos momentos capitais do campeonato, quando estão em jogo os playoffs que esse liceu não atinge desde os tempos de Jack, e ele diz a todos e a cada um que não os trocava por ninguém; depois de lhes devolver a honra e acima de tudo a alegria de jogar, coloca-se como um deles, joga com eles, volta a ser um deles, altivo e não coitadinho, não envergonhado; e como sempre prova-se que os palavrões são linguística essencial mesmo num colégio católico. Jack, vamos pressentindo em todos os sinais, da maneira como brinca com os sobrinhos até às segundas oportunidades que parece oferecer aos pupilos e que na verdade são primeiras - esses cálculos de quem passou por aquela situação e é generoso sem inveja - é um bom ser, integro e honesto, que só faz mal a si mesmo e por consequência a muitos que ele ama e que o amam. Jack é um bom ser e teve boa formação, mesmo que essa educação tenha sido «a bola», por isso não será a derradeira oportunidade, e tudo o que ele faz medrar nesse hiato oferece-lhe a definitiva regeneração que não é só bandeira do cinema Americano desde a formação sanguinária mas um resguardo de todos os comuns, de alguns no acaso, de quem decide enfrentar um pouco os espectros.

Sem final feliz, sem pontas atadas, nem mesmo ciclo fechado, redondo, Jack faz uma viagem no tempo e oferece aos ofendidos e humilhados da pior equipa do mundo todas as armas essenciais à perda da inocência e ao embate em seco na realidade adulta, proporcionando mais um pouco de conhecimento das encruzilhadas reservadas a qualquer um de nós em certo tempo e em certo espaço. Uns vingarão, outros serão novamente Jack, mas alguma coisa daquela entrega, daquela igualdade e fraternidade, daquela troca, ressoará um dia, e outro Jack irá em auxilio de um sonho aterrado.

“The Way Back” é, sem contestação, uma história mil vezes contada, mil vezes melhor narrada, mil vezes superiormente dramatizada, apurada. Mas por uma vez (ou por mais uma vez, não muitas) consegui apreciar uma estrela de Hollywood com a mesma carga, o mesmo cheiro, a mesma temeridade e fragilidade do Tom Cruise de trazer por casa da minha aldeia, do loirinho genial já careca e deformado, da Barbie para sempre apetitosa, todos eles complexos monumentos Bracarenses, estátuas errantes, mitos desmitificados. Com a mesma carga e perigosa verificação verista do citado Dean Martin, naturalmente atormentado pois uma amado o largou, naturalmente atormentado pelo seus sonhos falidos de Wyatt Earp ou de Jesse James, lendas do oeste a degladiarem-se com o fim de um tempo que o apanhou desarmado, literalmente.

E um realizador a apagar-se, a não querer saber mais dos que esses seres fugazes, a refrear-se, para tentar estar à altura do protagonista. Não o conseguiu, Affleck é superlativo e mais do que tremente, mais do que ancestral e novo na terra, mas pelo menos não lhe espetou, nem um, golpe baixo. O cinema a não partir do pequeno, dos pequenos sentimentos, para atingir o grande, o épico, o exemplar, a receita, mas antes a aguentar-se na nota baixa, fina, melodicamente perfeita mesmo que torturada. A lengalenga da infância e a lengalenga da decadência. A comoção não nos é atirada, ilustrada, escancarada por diálogos e fúria audiovisual, mas invisivelmente desvelada para um semelhante à procura de cura. “The Way Back” é um horizonte da sempre possível felicidade. Não existem sonhos ou perfeições perecíveis de serem apagados. Nenhum trilho será dizimado.

No final de “You Can't Go Home Again”, Thomas Wolfe escreveu assim, impossível de traduzir ou explicar, pertencente aos amplexos negados: «You can't go back home to your family, back home to your childhood, back home to romantic love, back home to a young man's dreams of glory and of fame (…) back home to places in the country, to the cottage in Bermude, away from all the strife and conflict of the world, back home to the father you have lost and have been looking for, back home to someone who can help you, save you, ease the burden for you, back home to the old forms and systems of things which once seemed everlasting but which are changing all the time--back home to the escapes of Time and Memory.»

Dilema, perdição e paixão.  Jack tanto poderá ser perdoado pelo padre e voltar às quadras como continuar nas obras mais orgulhosamente. A vida continua, como nos Renoir. E isso já não tem tanta importância.

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