por José Oliveira
Quando pela metade da primeira década deste novo milénio Quentin Tarantino começou a propalar aos quatro ventos a sua admiração pelo italiano Enzo G. Castellari, este já tinha a sua carreira de uns quarenta e tal anos e quarenta filmes praticamente concluída. Na verdade foram bem mais de quarenta e tal anos, pois, como podemos ler na sua monumental autobiografia – Il bianco spara!, lançada em 2016 – o seu primeiro contacto com uma câmara de filmar teve lugar logo depois do primeiro biberão. Com poucos anos de idade deixou-se encantar pelos estúdios de cinema italianos, dos pequenos aos grandiosos, com a mítica Cinecittà à cabeça. O seu pai, Marino Girolami, campeão europeu de boxe nos anos 1930, precocemente retirado devido a problemas de coração, abriu um ginásio e especializou-se em massagens terapêuticas. As suas mãos fazem furor e uma das muitas estrelas do cinema que se entregam a elas é Anna Magnani. A grande actriz italiana pede que Marino ajude o seu filho com paralisia a ter uma vida com mais qualidade e este consegue-o. Nascerá entre os dois uma amizade eterna e, já nos anos 1940, Magnani levará uma das milhentas histórias que Marino escreve por diversão à tela, começando uma grande aventura para os Girolami, pai, filho e depois os netos.
Tal como Marino, que acabaria por realizar mais de 70 filmes, também Enzo Girolami (Castellari é uma adopção do nome de solteiro da sua mãe) aprenderá toda a técnica do cinema a observar a prática, primeiro, e a meter as mãos na massa, depois. Os seus estudos em Belas-Artes e em arquitectura, em Roma, onde sobreviveu com a sua família aos bombardeamentos da Segunda Grande Guerra, ombrearam sempre com o trabalho nos filmes do seu pai e, quase sem pré-aviso, nos seus próprios filmes, que chegariam a meio da década de sessenta. Pochi dollari per Django, de 1966 (tentativa de capitalizar a personagem de Django, de Sergio Corbucci, realizado esse mesmo ano), onde Enzo não surge creditado oficialmente em favor a León Klimovsky, fica como momento decisivo da assunção do seu génio criativo e trabalhador, tendo Klimovsky e os produtores percebido imediatamente que Castellari era um prodígio que dominava todas as etapas de feitura de um filme e que não havia dúvidas sobre quem decidiria – da planificação ao storyboard, do trabalho com os figurantes aos movimentos de câmara intrincados, da montagem à dobragem, tudo Enzo dominava, à imagem e semelhança do pai. Passadeira estendida para vários westerns cada vez mais sui generis, sobretudo depois de descobrir o maverick Sidney J. Furie e os seus enquadramentos e grandes-planos bizarros, aparentemente desequilibrados e por isso mesmo riquíssimos, comparando-o a Matisse, Pissarro, Renoir, Modigliani ou Tiziano. E dentro do sistema italiano Enzo tornar-se-ia, de maneira especial, um Maverick, invejado tanto pelos êxitos como pelos engenhos. Desta fornada, talvez Johnny Hamlet, de 1968, hiperbolização shakespeariana a cores garridas e erotismo também garrido, seja o mais tórrido e o que contém mais marcas e figuras de estilo inauditas a serem exploradas futuramente – como a câmara a girar impossivelmente à volta da cabeça de Hamlet na gruta e os flashbacks estonteantes.
Logo no prólogo da referida autobiografia, é Franco Nero, um dos seus principais colaboradores, que o define com precisão, afastando o fantasma de realizador fascista e reaccionário que muitos quiseram ver por causa da forte musculatura dos seus heróis, das permanentes cenas de acção que fizeram história ou dos vários êxitos de bilheteira de produtos considerados “divertimento descartável” pelos grandes estúdios: «Hoje, com a devida distância temporal, quase todos já compreenderam o mesmo que o espectador que então pagava os bilhetes para os seus filmes: eles não eram de direitas nem de esquerdas, sim um espectáculo feito de uma maneira específica, com a ideia de que o público deve ter um leading man, um actor protagonista capaz de fazê-lo sonhar, que represente na tela o Herói Belo e Valente. Uma concepção clássica e reconfortante do cinema como sonho, e não como espelho de uma realidade feia e cinzenta, criada por homens sem qualidades.»
Fascinado pelas potencialidades espectaculares e ainda novas do cinema, vai tocar em vários géneros, inventar outros e misturá-los de forma explosiva. Realizando westerns, filmes de guerra, policiais (com La polizia incrimina la legge assolve, Castellari permitiu à sua variação italiana, o poliziesco, descolar com sucesso), fantasias, tangentes à ficção-científica ou mesmo o giallo (o thriller à italiana tocado pelo terror, género que Enzo nunca gostou), entre outras variações e sub-variações, poderemos aproximar Castellari aos cineastas clássicos americanos dos géneros, genealogia que ele, com certeza, não negará. Também ele aceitou encomendas, argumentos alheios, pegou em filmes a meio, não teve medo de presentes envenenados, salvou produções desastrosas, concretizou desejos de actores importantes, etc. No entanto, com Castellari, a ideia de um autor total, dentro do cinema de grande espectáculo e de acção, impõe-se sem reservas – de resto, chegou a recusar convites de Hollywood por não ter assegurado o final cut.
Será sempre ele que reescreverá, à sua maneira, cada guião que lhe chega; que lutará pelos actores certos para cada caso; que decidirá cada posição e movimento de câmara; que inventará as mais descabeladas e bombásticas ideias para transcender diminutos orçamentos ou desinvestimentos radicais durante o processo; que no final dos dias extenuantes de filmagens em partes longínquas do planeta, não só selecionará os takes ideais com os seus diferentes ângulos, como montará tudo, cena a cena, fazendo que no término de cada rodagem a montagem esteja praticamente finalizada e o filme pronto para uma primeira exibição – num caso deveras singular na história do cinema. Como singular é a forma como Enzo concebeu os ritmos dos seus filmes de maneira musical através de baladas e temas famosos, criando atmosferas e melodias que depois terão de ser reinventadas pelo compositor escolhido – para Keoma, por exemplo, utilizou faixas de Leonard Cohen e Bob Dylan, e será fascinante tentar achar esses ecos na música dos irmãos De Angelis no filme que conhecemos.
As suas invenções e genuína criatividade podem ver-se em múltiplos exemplos ao longo dos anos, sempre com grandes colaboradores na área técnica e artística: o espectáculo das maquetes e das miniaturas pela mão delicada do genial Emilio Ruiz, que bem antes da frieza digital asséptica e virtual não tentou esconder a crueza e a fragilidade do falso, bem pelo contrário, numa celebração do analógico, dessa beleza cândida do cinema como jogo infantil e regresso ao berço; a ilusão das perspectivas, os enquadramentos e as composições pictóricas que advêm dos seus estudos de arquitectura, pintura e cenografia, e que lhe permitiram dar uma sensação de grandeza dentro de quadros limitados de produção; o trabalho com os duplos e com as equipas de efeitos-especiais que materializaram no ecrã acrobacias impossíveis e explosões visuais sem limites; as câmaras lentas e os zooms dramáticos. E, no que se refere à carne e osso, as extraordinárias e tão variadas interpretações que conseguiu de actores tão diferentes, em grandes ou pequenos papéis, como Franco Nero, Fabio Testi, Fred Williamson, Michael Sarrazin, Vic Morrow, Fernando Rey, Woody Strode ou o amador Mark Gregory. A simplicidade (e os gestos) com que Castellari muitas vezes fala destes e de outros actores lembra mais um professor de arte a falar de esculturas de Michelangelo ou de Bernini – pois cresceu no meio delas – do que de chavões de representação.
É bem verdade que, como muitos realizadores italianos da sua era e da sua esfera, Castellari poderá ser acusado de emular filmes americanos de sucesso. Mas a inteligência do seu trabalho de escrita, sobretudo quando aconteceu com outro grande amigo seu e fundamental parceiro, o argumentista Tito Carpi, resgatará quase sempre a cópia conforme e o pechisbeque. Das obras que os Encontros de Cinema do Fundão irão mostrar este ano, The Big Racket, de 1976, para muitos o Citizen Kane dos policiais italianos, faz lembrar, estilisticamente, os filmes de acção de Don Siegel, Peter Yates ou Sam Peckinpah, mas se podemos considerar a perseguição de carros de La polizia incrimina la legge assolve mais apurada e temerária do que a de Bullit, e o lirismo da vida privada do detective extasiante, também fica claro que em Racket as câmaras lentas e os tiroteios descarnados fazem uma catarse de muita da violência que a máfica italiana infligiu nessa altura e que ficou na consciência e no medo colectivos. Um grito de rebelião contra as várias espécies de subordinação pelo terror – tanto as oficiais como as criminosas – é uma peça essencial que rima com o humanismo vingativo de Il cittadino si ribella.
Um aparte: para uma reavaliação crítica decente da obra de Castellari, que vai lentamente em marcha, continua a faltar, de maneira gritante, notar o extremo romantismo e lirismo que irrompe aquando das breves cenas da vida privada de certos protagonistas. Breves, mas intensíssimas, nos melhores casos sobre relações condenadas a não durar, tanto pelo modo de vida escolhido pelos personagens, como pelos seus demónios e fantasmas íntimos. Outro dos casos mais belos e magoados está na relação pai-filho que novamente assombra Nero em Il giorno del Cobra: no espaço paradisíaco do reencontro e da redenção cai constantemente uma treva indestrutível e indizível que vai lentamente esvaziando todas as durações, todos os horizontes e promessas – e a célebre câmara lenta alia-se à música de querubins (música sacra da infância e nostalgias insulares de tons asiáticos, quase Manga) em funções microscópicas passionais. A cena de beisebol é o jardim do Éden (tal como a cena do arco e flecha de Keoma ou os crepúsculos de La polizia) do cineasta da acção trepidante: simetrias na métrica do enquadramento e na métrica da montagem que abraçam e assemelham os dois numa eternidade.
Começado ainda na finalização de Racket, Keoma, de 1976, é uma das obras máximas do cineasta, o seu favorito, e um dos melhores westerns de sempre, spaghetti ou não. Começado e acabado sem guião, com as cenas a serem escritas diariamente e de improviso a partir de um tratamento em bruto, filmado em cenários já calcinados pelo êxodo industrial, é uma história de contornos bíblicos, fantasmática e apocalíptica, carregada de órfãos e de discórdias de sangue, onde vários tempos se misturam, muitas das vezes dentro do mesmo plano. Ingmar Bergman, pasme-se, foi uma influência, não só porque uma das personagens representa a Morte, mas sem dúvida pela irracionalidade temporal e devaneio estético, fora de qualquer mundo conhecido, atingindo o sublime horrífico. Também obrigatório é The Inglorious Bastards, de 1978, e não só por causa da homenagem e das palmas que Tarantino lhe concedeu, considerando-o o seu filme de culto. Inserido num sub-género obscuro, o macaroni combat, é o apogeu das maravilhas artesanais e ostenta dentro o máximo de personagens subversivas que sempre complexificaram as suas narrativas. Por último, o segundo tomo dos seus filmes realizados no Bronx, com um orçamento bem decente, mas também com algumas das cenas de acção mais delirantes – Escape from the Bronx, já de 1983, uma época complicada para o cinema de ação italiano, produzido com a mente em Escape from New York, de John Carpenter. Especuladores imobiliários, ditadores clássicos e ditadores New Age, extermínios, reféns para trocas, moral sem moral, num tipo de relato onde a possível demagogia serve para ir de maneira directa e assustadora aos cernes das questões. E, com esta consciência e ousadia, a veia punk de Castellari agiganta-se, ajudada por toda essa iconografia (das roupas aos penteados) e comportamento altivo que os personagens ostentam orgulhosamente. Que importa que se vejam defeitos ou arestas não-limadas se a outra face da moeda é uma moral elementar, justiceira, e por isso certíssima?
Filmes a rodos pelo mundo fora, do Mar Morto à União Soviética, e já nos anos 90, depois de mais um western apátrida com Nero, Jonathan degli orsi - mais um dos pontos altos de Castellari, com riscos e mergulhos, nomeadamente no grande meio natural e espiritual, no insondável cósmico, absolutamente inauditos na sua obra. Corbucci… Malick… Enzo… - começou a experimentar a televisão do mesmo modo que concebeu o seu grande cinema, primando sempre pelo domínio pessoal da encenação e dos meios, desprezando a linguagem Chapa-5 dessa indústria. Os anos 2000 foram para pequenos experimentos quase caseiros, entre amigos, alguns com temas fascinantes (Gli angeli dell'isola verde, que Enzo caracteriza como um western moderno de carácter ecológico, mas que infelizmente não passou do episódio piloto), terminando a carreira de realizador em 2010, num filme sintomaticamente chamado Caribbean Basterds (vénia ao Inglourious Basterds de Tarantino), utilizando as mais recentes tecnologias de som e de imagem, rodeado de jovens aprendizes, mas também de velhos cúmplices, que para ele não se importavam de trabalhar de graça nessas pequenas produções ou nas escolas de cinema onde Enzo partilha amiúde as suas experiências.
Houve uma época em que o cinema foi pessoal e popular, onde a cópia serviu como molde para uma miríade de obsessões intransmissíveis, nas quais os desejos particulares e porventura inconfessáveis conseguiam achar eco no mais universal. Enzo G. Castellari, aventureiro de mil e uma noites e de mil e uma vidas, estará no Fundão para nos contar mil histórias e conversar a partir de um rol imenso de memórias inscritas tanto na mente como no corpo. Era uma vez… um autor popular.
NOTA: os títulos dos filmes a exibir nos Encontros encontram-se em inglês, pois são essas versões que serão mostradas.
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