quarta-feira, 25 de julho de 2018
Rui Chafes sobre Cavalo Dinheiro
Para lá das nuvens, auscultando o etéreo, e com todo o peso e fatalidade terrestre. Uma gravidade insólita.
domingo, 22 de julho de 2018
Cavalo Dinheiro em Bracara Augusta
A arte brutal de Rui Chafes ressuma do
choque entre matérias brutas. A mão e as sinapses do artesão em
luta contra a substância resistente. Prumo e esquadria defronte do
fogo-fátuo e do gelo. A paciência. O tempo como único aliado. O
olhar indesviável. Moléculas. Bicharocos. Deformações cósmicas.
Ferragem orgânica. O diálogo com a morte. Chafes busca a redução
como a única via para a transcendência. Clangor final do universo
pacificado. Pedro Costa, o realizador, trabalha com a bruteza da
memória e da sensibilidade de gente real comungando da mesma
brutalidade. Gente real que para a raça dominante é somente pó.
Ambos carregam um mundo consigo – a
catedral do metal e a parte lendária do povo. Sobre isto António
Reis, o poeta, escreveu:
Aquele homem que ali vai e que tu
vês,
— é um atlante.
Um atlante, sim! Suporta um mundo
enorme!
(tão grande, como não podes
imaginar...).
Cavalo Dinheiro é pura electricidade,
confronto com o fluxo original das sombras; escorre de cada partícula
da carne ou da palavra alta tensão; electricidade sanguínea, alta
voltagem geral, decibéis, nervos, relâmpagos. Olhos a escorrerem
água e faíscas. Membros programados para embater no império do
medo. Nobuhiro Suwa, trabalhador próximo, comparou-o ao afinar
delicado de uma guitarra. O melindre do toque, do ajuste ínfimo e
essencial entre a matéria do humano e a matéria da luz, tudo o que
sabemos.
Dos espelhos de Juventude em Marcha e
da luta longínqua da figura contra o seu fundo vamos ser queimados
por superfícies aterradoras de compostos visuais puramente físicos
e puramente maquínicos, combinações de carne e de sangue com
pixels vergados, o acabado peso do silêncio e a revolução
expressionista reinventada num passado de mortos inaceitáveis. Os
olhos, a pedra, as curas, os anjos, o sussurrar, a magia, as lápides,
energia e epiderme no comprimento de onda do "Star Spangled
Banner" de Jimi Hendrix ou dos rios cegantes de Conrad. Não
paradoxalmente, Costa busca nessas ondas contíguas a redução como
a única via para a transcendência. Cavalo
Dinheiro é uma hecatombe comprimida.
Ainda absolutamente Fordiano. Mantém o
homem no centro e toda a descarga voltaica é questão de justiça.
Vamos ver melhor, vamos ver o fogo desta gente mítica e real. Do
interior para fora. Os seres, o Ventura, a parte que vai continuar a
ser espezinhada é a parte original. Os olhos choram e fuzilam. Os
membros e a verve prometem guerra. E unidos vencidos vencerão.
Ventura continua tão enorme despido contra um tanque de guerra ou na
máquina do tempo terrorífica do elevador tal como todo este
inaudito big-bang apenas purifica a essência. Que continua a
ser o que podem os homens. Depois de todas as mentiras terem sido
contadas, passadas as chacinas e as revoluções falhadas, ainda um
grito de resistência.
Cavalo Dinheiro passa na próxima
terça-feira em Braga pela segunda vez; urgem os choques eléctricos
das reposições e do amor escondido na noite.
Com apresentação de Chafes, o magistério do tempo e a visita do divino.
quarta-feira, 18 de julho de 2018
Marlowe... Burke Devlin... Joe Gillis... Ben Bradlee...
Nunca “choraremos” demais (uns
happy fews...) as fabulosas personagens de detectives ou de
jornalistas incorruptíveis e fumadores como se não houvesse amanhã que o professor
Carlos Melo Ferreira foi recusando aos seus alunos em filmes de
género que nunca saíram do papel ou que ficarão para sempre
envergonhados nas poeirentas gavetas ao abrigo de qualquer
investigador...
Mas dos filmes de Pedro Costa ele
sempre aceitou falar em conferências ou nos cafés e escrever muito,
mesmo que nas aulas fosse ultra misterioso e fascinante a respeito
deles, como se para conservar todos os segredos, elipses, não-ditos
dos monumentos – não usurpando o significado daquela preciosa
palavra americana milestones que só brilha se não cair na
rotina.
«Vejam, e formem a vossa opinião.
Depois conversamos.» Dizia classicamente, para que ninguém andasse
a falar do que não sabia ou a papaguear opiniões alheias. Mas ele
escutava sempre mais do que falava, pelo menos sobre Juventude em
Marcha.
Porém desta vez permitiu-me filmá-lo
e para mim foi como se tivesse concretizado um pouquinho de todos os
noirs ou policiais conjuntos com que sempre fui sonhando.
Thanks, sir!
segunda-feira, 16 de julho de 2018
Juventude em Marcha em Bracara Augusta
O meu encontro com Juventude em Marcha aconteceu no Outono de 2006 na semana da estreia em Portugal. Em plena cinefilia destrutiva e farto de escutar dos professores que o cinema é uma coisa cara e para os “escolhidos” alguém me mostrava que com uma câmara digital perfeitamente banal aliada a uma pesquisa sobre essa nova tecnologia (codecs, color correction, masks, CCD vs CMOS, etc., a confusão aproximava-se mais de uma patologia recentemente descoberta e sem cura à vista) num vórtice sempre a confundir-se com o amor mais acabado se conseguia alcançar a desmesura e a dignidade de John Ford.
Entrar no filme foi um soco seco no
estômago oco. Primeiro apareceu o som no negro, um rumorejar humano
algures e um vazio atordoante, logo coisas a caírem, depois veio a
imagem, umas ruínas e um céu tão negro que devorava tudo,
imediatamente objectos monstruosos a serem largados por uma
janelinha, o seu cair a ensurdecer o mais surdo, a pequena luz
bruxuleante que pelo filme todo tentaria alumiar a escuridão de um
bairro condenado, uma luzinha a tentar salvar o que podia, a tentar
deixar ver, fazer justiça – este era o primeiro plano e o cinema
na minha cabeça a redefinir-se, pareceu-me o primeiro plano que
alguma vez vi.
Pasmo que não se quebrou até ao
último plano, em que Ventura, o heróico Ventura filmado por Costa
com a mesma dimensão e aura com que o maior dos cineastas filmou
Woody Strode, o Sargento Negro, em Sergeant Rutledge, se encontra no
centro de uma cama que parece uma Via Láctea numa postura ao mesmo
tempo livre e tão hierática como uma estátua de Michelangelo, e
uma criança absolutamente estupefacta por tal visão, no cantinho
inferior direito do derradeiro dos enquadramentos sem margem para
dúvidas, tentando aceder ou escalar uma montanha; depois outra vez o
negro e um vento que só pode ser o inaudito das revoluções e das
fidelidades.
Pelos meios dos 155 minutos fui
percebendo que um rosto comum ou a maçaneta de uma porta de
contraplacado sem qualidade, um quadro Bíblico de Rubens ou a Vanda
Duarte mais inchada a falar de fraldas têm de ser respeitados e
trabalhados da mesma forma, com o mesmo empenho e fé – qualquer
dos quadros me apresentava o peso de séculos, a espessura do eterno,
o tempo sem tempo, o fatal presente. E uma inocência que despertava
no espantoso e imprevisto movimento de câmara nesse anfiteatro novo
e mesozoico da Gulbenkian que ia das árvores para os bancos a
misturar todos os elementos e prosseguia até ao sumptuoso rasgar de
uma barca entre nevoeiros e aparições, a aurora de Murnau oferecida
aos deserdados.
E as cartas a uma mulher escritas e
reescritas mais uma e outra vez até às estrelas que nunca vamos ver
mas que brilham até ao fim... o sofá vermelho à porta de casa com
o fato negro e a postura certa traçadas pela força expressionista
do Fritz Lang de aço... o compasso lento e supersónico de uma
tensão vital entre as trevas brancas e os esconderijos luminosos...
o choque entre o asseptismo abjecto das habitações modernas e a
escuridão das velhas barracas a cederem a possibilidade da comunhão
e da partilha... a desmultiplicação dos filhos, do pão e das
dádivas.
E assim a maior das dádivas foi
conhecer toda uma outra parte do mundo e de uma humanidade e ficar a
saber que com o nada se pode fazer tudo. Depois fui descobrindo em
sucessivas revisões que Juventude em Marcha contém a épica de
Hollywood e a intimidade dos grandes amadores. Quem me indicou o
filme foi o professor e “Hawksiano” Carlos Melo Ferreira, que
secretamente quase implorou a trinta jovens com sede de acção e
muitos deles “Godardianos” a irem ao cinema ver uma obra com tal
título e figura enigmáticos.
Por muito disto e pelo muito que não
percebo nada, é um dos filmes da minha vida.
Juventude em Marcha passa amanhã
(terça-feira) no LUCKY STAR - Cineclube de Braga com apresentação
em vídeo de CMF.
sexta-feira, 13 de julho de 2018
No Quarto da Vanda em Bracara Augusta
Parafraseando Truffaut acerca de Abel
Gance, hoje em dia Pedro Costa liga a câmara na sua terra e em
frente aos seus e já só sai poesia; poesia sem género arrancada
aos dias e noites de rodagens consecutivos em meses e anos
inaceitáveis para o “cinema normal”, arrancada à noite, ao
sono, cavada na noite, no suor, no sangue, na luz, na pedra,
estripada à tecnologia e aos filtros profissionais em transplante
milagroso, aos reflectores de supermercado; tempestades de uma
intensidade precisa e inegociável.
Mas houve um tempo em que tudo era
desconhecido, terra queimada, susto, um homem e uma mulher na solidão
do derradeiro jardim, a guerra, e nisso a possibilidade de recomeçar
de novo, tudo, o cinema, uma moral, uma humanidade.
Na terra queimada escutou-se um passo
para o abismo, com os ditos drogados, indigentes, a escumalha para
queimar que não interessa a ninguém, agarrou-se na tocha pioneira
de Griffith, na talocha de um pedreiro do Gênesis e na fúria
silenciosa de Faulkner (cada vez mais e visto à distância é o fogo
primordial desta obra gigantesca) para obter formas, cores, as
escalas de um Rembrandt.
Nos lámbios desta nova e banalizada
raça digital, há alguém que dedica todo o tempo do mundo ao outro
e não grita isso; antes ou depois das festas promocionais, fora de
moda.
No Quarto da Vanda, a obra do século
XXI, passa hoje em Braga.
terça-feira, 3 de julho de 2018
terça-feira, 12 de junho de 2018
segunda-feira, 11 de junho de 2018
Breathless, Jim McBride, 1983
No vídeo de apresentação
ao Breathless
americano
o seu realizador conta-nos demoradamente a sua quota-parte numa das
narrativas mais fascinantes e trágicas da história de Hollywood –
a luta entre os realizadores e os estúdios, os autores e a
indústria, a visão pessoal contra a necessidade de vender bilhetes
e pipocas. Jim McBride esteve na Cinemateca Portuguesa a 2 de Maio do
presente ano para introduzir a sua primeira obra e conversar com o
público. Não no âmbito de qualquer retrospectiva sobre a sua
multifacetada carreira, não como homenageado num festival qualquer –
apesar do director da Cinemateca, José Manuel Costa, ter referido
que a McBride cairia como uma luva o rótulo de herói independente
no Indielisboa que acontecia por aqueles dias – muito menos por
estar a tentar realizar um filme no nosso país, mas sim porque veio
visitar Portugal e tinham-lhe falado muito bem dessa instituição.
Foi ele mesmo a mandar um email, a pedir encarecidamente que lhe
dessem a honra de mostrar um dos seus filmes em tão mágico lugar.
David
Holzman's Diary foi
então a escolha, que José Manuel Costa considerou uma das primeiras
obras que mais marcaram o cinema desde aí, filme independente não
por moda mas por vontade irrefreável. A introdução do realizador
foi breve, simples, right
to the point:
como em 1967 ele não imaginava o mundo da blogosfera, do youtube,
dos facebooks ou do instagram, e inspirado pela revolução da
nouvelle
vague
francesa – a sua obsessão definitiva, como estamos a perceber –
e aproveitando a nova leveza dos meios técnicos, decidiu
ficcionalizar um diário, com uma certa distância mas metendo lá
dentro muito da sua vida e experiência. Convidou amigos, captou o
seu quarto e o seu tempo, fixou as rotinas e os rituais de uma
geração e de uma época, saiu para a rua e foi ao encontro do
outro, deu a entender e lançou para futura análise o ar daquele
presente, do existencialismo ao Vietname.
Isto disse ele e disseram alguns dos poucos espectadores de uma
sessão que não foi badalada, sessão a que ele assistiu sem
“problemas de consciência”, tendo sido consensual que o Big
Brother
não trouxe revolução nenhuma e que um gesto destes já continha em
filigrana e terrível o embrião desse monstro anestesiante da
preciosidade de cada ser, antecipando-o sem a sua abjecção. Visto
hoje, o filme pode até já não ter o impacto da época, a frescura
da descoberta sem aviso, essa intimidade e despudor
chapados
no ecrã que em 67 não estavam profanados, mas além de uma
delicadeza e de uma verdade intrínsecas no instante sagrado, quando
a câmara sai largada porta fora e se torna puramente observacional,
ontológica mesmo, entregando-se às gentes e aos seus espaços num
registo puramente etnográfico de quem quer conservar a memória
envolvente, o esquema e a estrutura despegam para a emoção do
descerramento de um artefacto humanista e por isso mesmo inigualável.
Na dura Needle
Park
à beira dos anos 70 e nos seus passeios próximos redescobrimos
espantados toda uma parcela do mundo que tanta ficção tentou
emular, tal como quatro anos depois em The
Panic in the Needle Park,
um tocante filme de Jerry Schatzberg que como este prova que a
ternura não tem palco, nem raça, nem condição estabelecidas.
Voltando
a Breathless,
que foi aparecendo durante toda a conversa como o ponto de maior
estupefacção na sua caminhada, e regressando às descabeladas e
maquiavélicas aventuras oferecidas pela meca do cinema a quem tem
uma ideia contrária ao sucesso vigente, McBride apareceu diante dos
poucos mas bons que decidiram perder a última novidade ou o primeiro
premiado em grande forma, absolutamente jovial e leve, risonho,
simpático e a falar com qualquer um, inclusive num português bem
aceitável para quem teve um ano de aulas nos anos oitenta.
Ficando-se a saber da trucidante aventura que foi concretizar o
remake
da primeira longa-metragem de Jean-Luc Godard, esperar-se-ia uma
figura taciturna, talvez mesmo uma personagem na defensiva, o artista
maldito ainda e sempre vergado por uma cruz que carregou e levou a um
porto tramado, mas nada esteve tão longe de qualquer desses clichés.
Forever
young,
acompanhado da esposa, de um filho e de uma filha ainda jovens,
estivemos na presença de um puro saído de um filme de Frank Capra,
um Mr. Smith ou um John Doe no que ao coração diz respeito,
lembrando o James Gray que há uns anos apareceu no festival Lisboa /
Estoril com uma ninhada de filhos a agarrar-lhe a gabardina enquanto
este contava a rir-se as suas lutas com os executivos televisivos que
rapidamente o despediram. O tipo de sensibilidade, de desprendimento
e de humor de quem foi percebendo as regras do jogo, o significado
das pequenas mas únicas vitórias que importam, as mãos limpas e a
grandeza de quem não sugou o sangue oferecido em bandejas douradas
mas antes resgatou o brilho e a redenção essenciais de arenas tão
retorcidas. Homens que saíram da elevação do cinema clássico
americano para as terríveis aventuras do cinema moderno, não
vendendo a alma ao diabo. McBride filmou com dinheiro, sem dinheiro,
com a película de 16mm e a câmara na mão emprestada e a ferver de
ideias mas também com stars
e
muitos camiões de produção, deu o seu toque a um episódio de Six
Feet Under quinze
anos depois de ter caído na The
Twilight Zone.
O esfomeado
que se perdeu de amores pelos falsos raccords,
pela energia renovadora e pela juventude de Godard ou de Truffaut é
ainda um dos últimos representantes da dura cepa dos valores de John
Ford ou Howard Hawks. Sem resquício de bazófia ou de ressabiamento,
apreciando nos dias de hoje em que não vai filmando tanto Wong
Kar-Wai como Nuri Bilge Ceylan. Nascido em 1941, é um iniciante.
«About
the future, which I don't know, you don't know! Nobody knows it! So
fuck it, roll the dice!»
Quando
se sugeriu a McBride a realização de um double
bill em
Braga com os dois Breathless
a
sua humildade voltou a dar cartas, disparando imediatamente que
talvez fosse uma seca para os espectadores, ver a mesma história
duas vezes... E apesar do fascínio, da admiração de fã número um
ou da aproximação sempre imprevisível ao monstro sagrado – Mc
contou ainda que uma vez falou ao vivo com Godard mas ele, já
taciturno, quase só deu os bons dias – não existe nada de
reverência contraproducente ou de citação fácil – mesmo que se
prove que a iconografia e a carga explosiva está do lado de Pierrot
le Fou,
não vai ser Rimbaud a esbracejar mas algo bem mais instintivo e
primário.
Godard, nos seus filmes e nos seus escritos, ensinou muitas vezes
como amar os «bons
americanos»
- de John Wayne a Manny Farber – e o filme de 1983 tem orgulho
disso. Richard Gere emula Jerry Lee Lewis e baila com Sam Cooke,
imita Jesse James ou os vertiginosos de Gun
Crazy do
filme de Joseph H. Lewis para encontrar a polaroid,
o super-herói ou a verdade crua e espampanante de si mesmo. O
movimento geral e a electricidade não vão sobre os trilhos e
estrilhos do jazz modernista ou da pirotecnia estilística mas antes
desliza na Americana
clássica da velha Hollywood de fundos falsos, céus encarnados a
fogo como os sentimentos em causa ou espalhando magia pela escala de
planos infalível dos tarefeiros
– e
neste ponto a participação, as viagens e a poética fascinante do
texano L.M. Kit Carson no argumento serão decisivos; Americana
que não significa nostalgia vácua, muito menos mediação
simbólica, antes fusão e luta com os quadradinhos da
banda-desenhada cósmica que se debate entre o amor mais puro e a
liberdade do absoluto, embate com o precioso cinema ele mesmo nessa
cena orgástica em que o fugitivo possui a miúda na parte de trás
da tela, numa assunção dessas imagens e sobretudo dos diálogos
míticos mas também numa violação desses códigos e da subtileza
de uma arte que sugeria mais do que mostrava, respiração frenética
do beatnik
de
Kerouak torcendo e digerindo as ondas jazzísticas. De Las vegas,
passando pelo deserto até Los Angeles e suspirando pelo México com
o mesmo fôlego ou falta dele com que Jesse deseja a miúda francesa
– a devolução principal de Mc a Godard – o Breathless
de 83 é uma
obra puramente americana e que mete em causa toda essa mitologia. Um
filme com tomates,
como tudo o que é singular.
Sob
o signo de um nova Americana
que
aglutina
e mete em guerra o classicismo e a Nova Hollywood dos anos setenta,
mas capitalmente
sob
o domínio ou a tragédia da figura primitiva do hustler.
Que pode ser o citado Jesse James, Theodore Roosevelt, o Paul Newman
do filme de Robert Rossen, Michael Jordan, Sean Combs ou qualquer um
dos biliões de anónimos nessas pradarias ou bilhares que perderam
e dobraram a parada. Para
mesmo aqui a questão e a moral ser fugidia, ambigua, sem centro, em
dialécticas essenciais, precisamente actuando à maneira dos
hustlers
originais
– cowboys
ou
matadores,
colonizadores
ou índios – ao exemplo da inacreditavelmente bela e perigosa cena
da piscina, em que ele assume a ela o
“tudo ou nada” do
seu credo, para lá do “tudo”
ou do “alguma
coisa”;
ou, talvez ainda mais sintomático, quando William Faulkner é
contradicto para se preferir o “nada”
à
“dor”,
chegando-se mesmo a utilizar o maior escritor americano como quem
ousa cortar a rede do abismo sexual. Pelos fundos barrocos ou
pós-modernistas de neons
tipicamente anos oitenta, composições fotográficas ludibriantes ou
ruínas plásticas,
estamos mais uma vez no Romeo
and Juliet
de Shakespeare e soterrados na profusão de símbolos, estampas,
iconografias e lixo dos novíssimos tempos. Talvez por aí o mais
bonito, a dádiva deste remake
parido viciado e virgem a um mesmo tempo, seja o movimento da bela,
da Monica Poiccard feita por uma Valérie Kaprisky bazada
da idealização da BD para a carne bruta desta paisagem suja, aura
total utilizada assim por uma única vez: inicia-se cheia de medo, a
tremer e a pedir ao delinquente
que se vá embora, “não fode nem sai de cima”, preservando as
cunhas
e
as saídas profissionais a todo o custo, para... lentamente,
percebendo e vendo o incêndio no corpo e no espírito do Jesse
ressuscitado do mito e da lenda e do pó americano, se entregar toda
e nada como no mundo do cinema, esticando a ilusão até ao tiro
final que como nas fitas
irá ficar suspenso. Suspensão e fôlego, são estas as velocidades
e o tempo que importam. Obrigado pela coragem, Mr. McBride. E volte
sempre que quiser.
(texto escrito para o LUCKY STAR - Cineclube de Braga)
sexta-feira, 8 de junho de 2018
That Cold Day in the Park, Robert Altman, 1969
Logo um ano depois de Robert
Altman ter sido despedido do seu primeiro filme feito para cinema –
no meio de dois machões, James Caan e Robert Duvall e o sonho da
conquista lunar e da competição my penis is bigger than yours –
por causa de sobrepor diálogos
e tentar fazer coisas nunca antes tentadas em cinema num “Countdown”
que podia ter sido muito melhor, o cineasta por tantos considerado
outro machão sem par fechou-se com uma mulher no seu mundinho, e
quando a largava numa narrativa gelada mas carregada das mantas da
música das revelações primeiras da infância, era só para obter
ainda mais reflexos dela. Só
uma dica aparte para quem quiser tirar um curso de direcção de
fotografia de borla: László Kovács, o mestre dos road-movies,
ilumina e desperta cada partícula (interior que resplandece para
nós) desse mundinho pequenino que é a casa das bonecas assombrada
de Frances em constante epifania (existe outra filmada retoricamente
dessa forma para vermos o contraste entre o real e o simulacro); tal
como no “Brewster McCloud” posterior o igualmente genial Jordan
Cronenweth e Lamar Boren reteram do chão e de toda a atmosfera
viscosa cada ruga e cada fedor de metano dos sonhos do petróleo
americano e das ilusões supremas em plano-sequência.
Há
muitos muitos anos um jovem inconsciente fez a sua primeira grande
viagem sem família, acompanhado pelos colegas de turma do nono ano
português, todos eles finalistas e meios à deriva numa insularidade
atordoante. A ilha em causa e a sua humidade ainda puxavam mais à
transgressão ansiada, mesmo que não se saiba bem porquê e sem
obrigações quase todos tivessem ido ver “La vita è bella” de
Roberto Begnini”, fonte de purificação. Houve naturalmente
perseguições inacabáveis nas ruas entre locais e continentais,
espreitadelas nos duches femininos e jogo da bola, mas sobretudo uma
primeira noite acordada com muito barulho, algumas garrafas e saltos
na cama. Como fazíamos parte de um colégio de uma certa ordem
religiosa, um colégio de freiras,
veio a primeira das nossas acompanhantes meter ordem no galinheiro,
uma freira alta, espadaúda, feia e arrepiantemente masculina, aquela
que ensaiava connosco as músicas para a missa - “poe tua
mão na mão do meu senhor da galileia”
- e era a existência exemplar; espetou sem dó nem piedade uma
estalada ao melhor amigo do jovem inconsciente e tudo acabou num
milésimo. Sem saber o que fazer, já cada um no seu poleiro, cama
desfeita, entra mansamente a nossa segunda acompanhante,
completamente oposta à primeira, a quarentona loira, ousada no
cigarro e no andar e no decote, olhar selvagem de doce, aquela
senhora a quem dizíamos meia dúzia de palavras entre o corar e que
só estaria no colégio por causa de boas famílias ou da
inteligência irrefutável. Fez a cama ao rapaz, possantemente e
delicadamente que até dói, disse “para esquecer”, deu ou
pareceu que deu uma carícia, e deu boa noite. Tinha de ser tão
longe de casa e de modo tão estranho que a religião livre da
bondade me fazia a apresentação, me entregava a ficha de inscrição
e a recolhia assinada.
“That Cold Day in
the Park” é esse tal filme que poderia ser muito simples se as
regras do nosso jogo não tivessem sido tão viciadas, no qual uma
mulher sozinha numa grande casa sem propósito percebe que pode
convidar para ela um jovem que foi vendo à chuva todo o dia não
santo das suas janelas. Começa muito simples, muito franco, a câmara
singela a seguir os bons sentimentos e o filtro do silêncio a
envolver tudo. Ela quer fazer bem ainda sem saber porquê, ele faz-se
de mudo e lembra um animalzinho. E de repente parece que estamos numa
versão muda e com a psicologia desse período do cinema do “L'Enfant
sauvage” de Truffaut. Mas como a mulher continua a falar, e a
falar..., e o jovem tem uma segunda vida que ela desconhece, essa
atmosfera abstracta, vacilante, carregada de desfoques e de falta de
nitidez, de atalhos errados e de traçados desnecessários,
dessincronias não planeadas, começa a desprender-se dos medos que
vamos conhecendo à mulher, dos seus traumas, da sua teia confusa, do
seu nojo, e da sua ausência de idade. O que estava a ser tão puro,
lentamente, fica viciado sem domínio. Existe um instante fulcral,
ela a despir-se toda – sem tirar uma única peça de roupa – para
ele, mas no lugar dele só aparece a sua imemorial boneca já
desmembrada. Se ele lá estivesse e escutasse talvez tudo pudesse
encaminhar-se diferentemente e ao ministério do silêncio se
juntasse umas harpas da harmonia. Mas as sombras, os cristais
cegantes, a ínvia naturalidade das coisas e dos percursos conduziram
a esse instante e tudo convergiu para a torção final nos infernos
dos inocentes. Como quando se pensa que um segundo a mais ou a menos
teria evitado a hecatombe. Altman é um dos grandes cineastas do
não-linear, da recusa da atracção molecular e da sintonia, da
refutação das regras quânticas que nos unem e nos separam
aplicadas à alma - toca a perfeição e a condenação, não acaba a
experiência com um relatório definitivo a passar álcool nas mãos:
é o plano final de horror e compaixão.
Se a
professora à primeira vista não-exemplar, mas só à primeira, não
calhasse passar pelo quarto do jovem inconsciente... Se a freira
tivesse vencido e convencido para regressar em breves e infinitos
futuros... Se... Se tudo se tivesse passado ao contrário e o dístico
das aparências obliterasse a catedral da verdade, talvez,
porventura, uma faca final como aquela de “That Cold Day in the
Park” tivesse adensado mais um pouco o silêncio da perdição
inconsciente.
terça-feira, 5 de junho de 2018
À bout de souffle, Jean-Luc Godard, 1960
Jean-Luc Godard, o mais romântico e lírico dos críticos franceses da Cahiers du cinéma que no final dos anos cinquenta passaram à realização, segundo a opinião de João Bénard da Costa no primeiro dos catálogos da Cinemateca Portuguesa a ele dedicados. Godard que com À bout de souffle inventou e arrancou no contrabando o mais avant-garde dos petardos da Nouvelle vague que influenciaria inúmeros realizadores e artistas futuros, de Jim McBride a António-Pedro Vasconcelos, passando por Quentin Tarantino ou Wong Kar-wai. Que posteriormente teria períodos inclassificáveis numa obra inclassificável e estratosférica, desde a fase maoísta até se unir a Jean-Pierre Gorin e outros camaradas no Grupo Dziga Vertov, viajando até aos quatro cantos do mundo, de África ao Brasil, procurando a massa e os ecos de uma revolução política e artística. O JLG que flertou com Hollywood e sonhou com a sua reversão, que daí e de muitos outros lugares fugiu a sete pés para se enfiar em laboratórios revolucionários onde faria as mais impossíveis experiências com imagens e sons, sacando e testando raccords utópicos, revelando-nos ilusões e traçados possíveis, escancarando ou entrevendo as portas de novos mundos e linguagens... o intelectual furioso que à maneira de um James Joyce se apropriou da palavra gasta, da tecnologia, da filosofia, da história, da ciência, para ir muito além do conhecido, forjando limites e fronteiras... Puissance de la parole. O cinema e todas as histórias, inclusive a nossa, no monumental Histoire(s) du cinéma, uma das grandes obras do século XX, só comparável a Picasso ou à conquista da lua. Os emocionantes ensaios de poucos minutos, encomendas, cartas a amigos ou a falecidos, Dans le noir du temps... Tribute to Éric Rohmer. Jean-Luc Godard, que recentemente, depois de há muito usar o vídeo sem legislação alheia, enveredou pelos sinais, ondas, cores e combinações mais esconsas e oblíquas das 3 dimensões. O “eremita” que no passado festival de cinema de Cannes cumpriu a sua conferência de imprensa oficial via video-chamada, para deleite e espanto dos presentes e ausentes. Seriam precisas centenas de folhas biogáficas e hagiografícas para se começar a entender ou a perceber um pouco de toda esta complexidade, mas acreditando que cada um tem o seu Godard e o entende à sua maneira, fica-se por aqui. De resto, a irresistível juventude das suas primeiras obras, das cores às mulheres, são uma das primeiras e mais carinhosas lembranças de qualquer cinéfilo, estudante de cinema ou curioso.
O filme de hoje será o último do nosso ciclo de cinema Francês, ponto de chegada de tanta experimentação e poesia até à sua data e constante inspiração até aos dias de hoje. Muito se escreveu, se estudou e comparou a propósito de À bout de souffle, desse filme breve como uma bala perdida e jovial como os primeiros amores, dedicado à Monogram Pictures que produziu filmes por tuta-e-meia de um Budd Boetticher, e de resto o nosso vídeo de apresentação no qual temos a honra de escutar Joel Yamaji já tudo isso nos resume, fornecendo-nos novas, pessoais e humanistas luzes nesta actualidade dominada pela vontade de poder e de falso brilho a custo de guerra mundial. Peça com diferentes velocidades, à imagem das reduções gripadas numa caixa de mudanças faiscante ou aos fôlegos arrítmicos de uma caixa torácica de limites excedidos em vícios ou em demasiada saúde, a oposição natural e trilhante entre um solo distendido por muitos minutos num quarto de casal improvisado e provisório em relação com os sopros e nervos dos fogos-fátuos das fugas, não fazendo sentido tal andamento sem o seu oposto. Gesto artístico e selvático que preferiu o fluxo sanguíneo à encenação e à idealização, a febre ao controle, a intempérie e infiltração da alma e o perigo da perdição ao racional e à lucidez dramatúrgica, pessoal, industrial ou outra para qualquer caso, soltando a máquina de filmar, a montagem e vergando toda a atmosfera para os estremecimentos em causa, sob o ritmo do Jazz em equilíbrios precários numa corda bamba absoluta, arestas cortantes, desarmonias vitais, síncope acossada, como o título português e a perseguição deste mítico filme.
Obviamente que a partitura de Martial Solal é decisiva e descarna ainda mais as ruas, as personagens bamboleantes, os ínvios caminhos, a colagem modernista; é ela o motor do descentramento, o pistão que se solta da engrenagem e que reduz a cinzas a gravidade conhecida no terreno. Tudo isto, esta pressão entre as massas concretas dos meios e a metafísica desprendida dos corpos e dos cérebros, funde directamente com Miles Davis, desta época o artesão e artista que tanto se poderá ligar a Godard. Na monumental História do Jazz erguida por Ken Burns em 2001, define-se assim Miles: «Davis tinha apenas vinte e três anos em 1949 quando começou a frequentar o apartamento de Gill Evans. Ele queria encontrar uma nova moldura para o estilo distinto e introspectivo que estava a desenvolver. Bem, Miles tinha de encontrar um som, um estilo que contivessem a delicadeza da sua natureza. Ele mantinha a aspereza cortante lá dentro. A sua música não era chorosa nem fraca. Porém, tinha uma nova delicadeza. Um sentimento que faz o romance aflorar e o transmite às pessoas. É um som bastante delicado para ser de um homem. Lester Young, antes dele, era assim. Miles tem uma vulnerabilidade e não teme partilhá-la com quem o ouve. Quando ele permitiu que essa vulnerabilidade permeasse o seu som, a sua música tornou-se irresistível.»
Para além da possível boutade, consegue-se arranjar paralelos para cada uma das comparações: também Godard frequentou apartamentos decisivos, mesmo que só com a sua caneta, o de Renoir e o de Rossellini, depois Fritz Lang como seu actor ou estátua, obtendo neles toda a frescura e liberdade; uma delicadeza, uma sensibilidade e uma aspereza cortante que segue da lembrança de Jean Vigo como do trompete para a câmara e para as convulsões de Belmondo, mais à frente para os grandes-planos de Anna Karina, chegando à ficção-científica toda nesta terra e não na lua de Alphaville; sem choro, nem fraqueza, mas sempre introspectivo, desbravando sendas dadas como seguras e combinando o que tem propensão para se afastar, nos anos 80 planaria pelos altos voos filosóficos mas mesmo assim cacofónicos de Passion até Prénom Carmen, atingindo eternos retornos e avessos na Nouvelle vague, já nos anos 90; Miles, que na sua missão desconhecida tocou no rock'n'roll, na electrónica, no noise, tirando o trompete de base ao jazz, também foi desconcertando todos os seus admiradores, seguidores ou puristas, em fusões e choques perfeitamente produtivos, isto é, esfomeados de humanismo, com todas as sensações; mas de tudo lhe chamaram, mal tratado como um suposto maluco ou chico-esperto, mano de Godard, não lhes perdoando supostos visionarismos ou atitudes herméticas.
Uma certa delicadeza e uma certa aspereza. Um certo lirismo e nervo. Contemplação desassossegada. Nem mais. Cada um que aproveite e use o que quiser. Que deite fora. Recuse. Se aproprie. Que se salve. Contradiga. Redima. Se perca. Todos os caminhos em aberto.
(texto escrito para o LUCKY STAR - Cineclube de Braga)
quarta-feira, 30 de maio de 2018
Tirez sur le pianiste, François Truffaut, 1960
François Truffaut, o enfant terrible da nouvelle vague Francesa. François Truffaut, o mais violento dos críticos da geração de Jean-Luc Godard ou Jacques Rivette, que antes de passar a meter a mão na massa da realização atacou uma geração anterior de realizadores do seu país acomodados ao prestigio e à qualidade literária, aos grandes meios, o tal “cinema de papa” conivente com a ocupação nazi explicado e desmontado no mítico artigo dos Cahiers du cinéma nº 31 apelidado “Une certaine tendance du cinéma français”, dado ao prelo em Janeiro de 1954. O protegido do pai de todos os que escreveram e não escreveram nessas revistas, André Bazin, O crítico. Há todo um universo Truffaut que chega da sua infância contada e recontada pela pena ou pelos seus filmes, quase trinta até falecer precocemente com 52 anos em 1984, até às suas grandes aventuras privadas com as mais belas actrizes e não-actrizes, passando pelas amizades com grandes mestres como Roberto Rossellini ou Alfred Hitchckok – cujo livro-entrevista partilhado é o saint graal da cinefilia – até servir de actor para Steven Spielberg no fabuloso Close Encounters of the Third Kind, dádiva e concretização de um sonho escrito algures na parte mágica da sua efabulação incomparável pela mão do generoso cineasta americano. Há vários Truffauts, todos eles convergindo na emoção, numa emoção violentíssima porque interessada nos abismos da paixão, do amor louco, até aos delírios vomitados da sua impossibilidade e finitude.
Sempre surpreendente, começando por fazer filmes uns contra os outros, gestos antagónicos, tentando desse modo atingir o essencial nos mais diversos espaços, épocas e tons, que exemplo mais claro do que comparar a sua longa-metragem inaugural, Les 400 Coups com o filme que hoje vamos ver, Tirez sur le pianiste, realizado logo um ano depois dessa data de 1959 tão fundamental para a história do cinema? A primeira foi a biografia filmada, terna, filmes e livros no centro, cheia de nostalgia e de um pudor ferrado, almejando a veracidade mas amando a aura cristalina, dando ao escuro lancinante Jean-Pierre Léaud para o seguir para sempre, até hoje. O segundo, que num certo sentido paga mais dívidas ao cinema do que o primeiro, é a carta de amor aos realizadores americanos que tanto marcaram essa geração, realizadores que eles trataram como ninguém, mostrando a sua importância e génio inclusive aos mesmos e a essa nação, amor ao filme noir – termo inventado pela crítica francesa – e à literatura policial, aqui segundo o poet of the losers David Goodis, entre referências várias. Um filme que é vários outros e vários livros e tanta memória do escuro e da solidão.
Um golpe inesperado, uma pedrada no charco, quando todos estavam à espera que Truffaut aproveitasse imediatamente o sucesso atingido no tiro de partida. Seguindo de perto os acontecimentos do livro em que se baseia, Down there, conservando os flashbacks, a voz-off e outros mecanismos típicos desse universo tanto fílmico como literário, Truffaut começa logo a virar tudo do avesso, a reinventar em cima das regras e da atmosfera, usando um formato largo de filmagem (2.35 : 1 nada convencional para os filmes de género), um preto e branco sujo aonde a luz está constantemente a escoar e a fugir, transtornada, e sobretudo uma movimentação nervosa da câmara, sempre solta e atrás da personagem ou da causa, tão acossada como o protagonista principal, numa forma que estala qualquer verniz pressuposto.
Personagem acossada é o pianista de Charles Aznavour, que aparece como um falso culpado, um inocente acossado à maneira do mestre do suspense Inglês – como escreveu Carlos Melo Ferreira no seu apaixonante livro O Cinema de François Truffaut – para mais tarde percebermos que se calhar o seu passado sempre o puxou para os acontecimentos rocambolescos que irão urdir e abrasar a trama, não perdoando certas decisões ou falta delas. Pianista num bar rasca, um simples empregado de diversão, tarefeiro anónimo, que vive com prostitutas e não liga por aí além aos amores platónicos a ele dirigidos, fantasma que matou a esperança própria e sempre merecida, mudando de nome e de alma, morto inconfessado. Quando o passado lhe acaba por lançar a pesada e ansiosa garra aparece-lhe um dos irmãos que certo dia escolheu maus caminhos, mortais desígnios, de seguida ainda outro irmão em pior estado, e ao ter de fugir para o proteger e os proteger recorda-se das outras vidas, de quando foi um pianista famoso mas pagou por isso um preço impossível, recorda-se ainda de ter renunciado a essa família, de ter almejado a diferença dos semelhantes, de uma certa renuncia ao sangue, mesmo sem culpas.
Entre um novo amor que surge e o “regresso a casa”, bate-lhe de frente a possibilidade de retomar ao nome de baptismo, de voltar ao auge, mas, não saberemos se por ele querer ao não, tudo retoma ao ponto inicial, como um fatalismo inelutável, depois de uma arma lhe ter sido oferecida e da segunda paixão ter sido ceifada de modo tão trágico como a primeira. E por este lado, pela imposição do destino e de uma natureza, pela impossibilidade de escapar ao meio e à lengalenga da infância, Truffaut filia-se a Goodis e ao cinema negro mais desesperado e lírico, nos quais o mais duro dos homens é vergado por esse peso primordial e primogénito. Na Philadelphia do escriba das mil vidas ou na Paris dos intelectuais sedentos, cada qual é mesmo cada qual, uma constituição única que produz efeitos, seja o Behaviorismo ou o célebre “eu” do existencialismo francês, sem automatismos.
E Truffaut, tão fiel a si como à verdade intraível da história de Goodis, vai cavando nesse escuro novas maneiras de trazer ao lume as imagens e o drama, como na primeira conversa ao piano entre os dois irmãos e o dono da espelunca, onde tudo o que é subjectivo e frontal, dos ângulos de câmara às intenções, surge torcido para um melhor entendimento; ou os véus em penetração nas sombras e na luz rarefeita nesse encontro do pianista com a prostituta que acaba na cama e na rotina, manto espinhoso; culminando na voz-off da empregada que demora a entregar-se ao amado, começando do nada a narrar os segredos mais inconfessáveis até se deter nela mesma. Ainda pulsões e vipes de montagem a ensinarem Martin Scorsese ou Spike Lee, nesse bater horrendo à porta do agente ou nas divisões fotográficas e lúgubres do ecrã em daguerreótipo experimental.
O final na neve, antes do oblívio calado, tem o chamamento de David W. Griffith e as vísceras a ferver de Nicholas Ray. Truffaut a tentar a claridade mas a escuridão e os fundos da alma a imporem-se. Truffaut, o não académico que depois iria flertar com a máxima transgressão ligada umbilicalmente ao máximo apelo e beleza (desafiando e lutando para afastar a perversão) em La peau douce, preferindo ainda a loucura, as tripas e os vómitos de fora à rendição na L'histoire d'Adèle H., contradizendo perfeitamente o filme de hoje; o homem que amaria a mulheres para lá do racional mas também as crianças desse modo puro. Até ao infinitamente purificador altar dos mortos de La chambre verte. O cineasta mas acima de tudo o homem que se zangou algures no caminho com Godard pelas velhas oposições entre a arte e a cultura, é assim tão radical como, por isso incomparável, consumindo-se livre e comprometido na máxima busca interior e na máxima contradição. Não se sai ileso do cadente Truffaut.
(texto escrito para o LUCKY STAR - Cineclube de Braga)
quinta-feira, 24 de maio de 2018
"The Last Day of Leonard Cohen in Hydra", Mário Fernandes, 2018
E
aqui está mais uma estreia de um filme de Mário Fernandes na
Cinemateca Portuguesa, o que tem significado, quase sempre, uma
oportunidade única para os ver – one shot. Esperemos que
desta vez alguém atento e merecedor consiga convencer o realizador a
levar este filme longínquo para outras paragens. Muitos ainda nos
lembramos do seu magnum opus que estreou nesta catedral em
2011 e que voltou a passar recentemente num ciclo dedicado aos
“novos” do cinema Português, Lost West. É um western
de quase três horas que de uma só vez abarca todas as
variações desse género pioneiro – dos clássicos americanos de
John Ford até ao estertor de Sam Peckinpah passando pelos spaghetti
e seus sucedâneos - sendo na mesma medida uma radiografia à
passagem devastadora de uma grande corporativa pelas minas da região
do Fundão e mais abrangentemente da Beira Baixa, com uma clareza
documental impressionante, carta de amor a essa terra que é a sua e
um filme de amigos. Amigos que continuariam a trabalhar nos filmes
seguintes, atrás e à frente da câmara, nos argumentos ou na
montagem. O Debate da Loucura e do Amor, de 2012, partiu de
Louise Labé para se tornar numa luta entre a imagem, o som, e o
movimento confinado dos corpos num espaço bem definido, desafiando
todas as durações e sincronias. Logo no ano seguinte, mais um gesto
passional, desta feita ao Bob Dylan das Beiras, em Jerónimo, como
é que vais?, outra vez um cowboy, livre e inadaptado,
fiel demais, numa obra que volta a violentar todos os géneros e
formatos – misturando a biografia, o musical, o road-movie, o
digital, vhs, ecrãs panorâmicos e caseiros, etc. - com um único
alvo: a emoção e a verdade daquele ser. Mais recentemente, já em
2016, colocou um recepcionista anárquico e obcecado pelo escritor
inglês do século XVIII Henry Fielding num hostel lisboeta de baixo
custo para meter na linha quem o merece e favorecer os
desfavorecidos, a preto e branco e com um tipo de humor mais negro e
logo realista do que os cedros do cemitério para onde o Pastor da
Noite se dirige nas suas folgas. Feito o apanhado, e descontando
as suas co-realizações, vamos ver The Last Day of Leonard Cohen
in Hydra, que novamente não vai corresponder ao esperado nem às
expectativas, numa atitude e num trabalho que é menos experimental –
modelo já completamente viciado e académico e que hoje em dia vai
correspondendo ao anunciado nas sinopses e na imprensa – e que tem
tudo a ver com a aventura, com o desbravar terreno, neste caso,
captar, perseguir, transfigurar, reter a luz em questão.
Dedicado
a Leonard Cohen e a Marianne Ihlen, logo tudo nos remete para o
conhecido tempo em que o cantor e poeta viveu na ilha de Hidra, na
Grécia, com a sua companheira, uma vida de outrora ainda não
esquecida, amada, que vive na espinha, a amante e uma criança, os
dias de ternura, as lágrimas e a nostalgia... coisas que são ditas
pela própria voz de Cohen, num genérico a negro mas já cheio de
imagens e de sentidos, poéticos e concretos, que serve igualmente
para traçar os mais diversos caminhos, abrindo secretas fendas no
solo conhecido dos filmes (ou no modernismo) e cavando narrativas que
vão aglutinar ou conciliar, por exemplo, versos de Paul Valéry, a
voz de Ray Charles, de Marta Ramos e de Loukia Batsi, a mitologia
Helénica e as subtis referências à nossa cultura e envergadura
tuga.
Uma
narrativa detectivesca de um Philip Marlowe apátrida obcecado com o
retrato de alguém que um dia lhe calhou em sorte num caso talvez
indesvendável que o levou aos confins de um mundo? A claridade e
essa luz diáfana de um país em que cada coisa é trazida à luz
/ trazida à liberdade da luz / trazida ao espanto da luz,
segundo Sophia de Mello Breyner? Assim, esse homem destroçado
encarnado por Rui Pelejão – também não muito longe do cowboy
no fim da linha de Lost West e dessas deambulações eternas –
vai perguntando a uma fotografia, a uma imagem fixa, Quem és tu?,
afirmando e suplicando Vim à tua procura, apaixonando-se por
ela, pedaço inanimado e inorgânico em lenta combustão que irá
ressuscitar precisamente através da luz e das sombras, do sol e do
ar límpidos e únicos que puxaram esse corpo vestido com calções
portugueses e de feitios próximos à literatura e ao universo pulp
para o cosmos estatuário e mítico de um absoluto em que esse
milagre se torna possível. Quando a imagem se torna movente, nesses
belíssimos quadros em que é preciso pedras para a segurar das
forças intempestivas do vento e do fogo solar, ou em que ela surge
emoldurada e numa comunhão, fazendo mesmo corpo com os malmequeres
amarelos (também remotamente conhecidos como flor-das-almas) que são
como estrelas num céu, flores prestes a devorar a noite, começa a
ser possível deixar partir para sempre essa memória, uma memória,
um inaudível murmúrio que talvez tenha sido tudo – Amo-te,
amo-te – que talvez tenha sido a ilusão das ilusões, a
assunção de uma natureza condenada a errar, como na letra de Ray
Charles ou como o plano final, todo o mar, toda a terra e todo o
firmamento abertos.
Entre
mulheres suas semelhantes que escrevem cartas em penedos nas águas
celestes da ilha e mulheres que utilizam essa claridade também lunar
e cegante para ler, passando por rituais mágicos e jogos de azar e
sorte, duelos contra o vento e contra si mesmo em arenas despovoadas
aonde todos os ecos são possíveis, sobretudo os da alma, talvez a
opção de não utilização de som-directo em preferência por uma
voz-off de diálogo interior – para lá do óbvio monólogo,
diálogo com todas as coisas que o cercam e díspares – surja como
natural. A questão da esfinge, da miragem e da quimera, de um
paraíso possível e perfeito sempre fugidio como a medida e condição
do horizonte, bem como as tangentes a esse paracinema e a uma
metafísica funesta da imagem e da memória que uma certa Hollywood
meteu em primeiro plano (Laura, de Otto Preminger e seus
derivados) reenvia-nos muitas vezes à potência do cinema mudo, da
hiperbolização da imagem e da sua composição, das passagens
ambíguas entre a treva e o dia, do primado da imaginação, da
fantasia, da feérie, ao invés da descrição e do sublinhado
que o som “normal” pode trazer como armadilha. Na primeira vez
que o detective (talvez seja óbvio que ele é um escritor, mas nos
bons e velhos tempos todos os grandes escritores eram detectives, à
maneira de Truman Capote ou de Samuel Fuller) se senta a uma mesa
para escrever à máquina e para beber whisky, não é imediatamente
que o notamos lá fora na janela e no negro da noite, antes vai-nos
sendo revelado pelo lume de uma vela, dessas velas que descarnam a
noite num filme ou iluminado por elas ou pelo sistema solar, pelo
branco da camisa que tenta que o corpo não desapareça e pelo
cigarro. A entrada em cena é assim modulada em minúsculas gradações
que recuperam uma certa hipnose puramente cinematográfica que o
digital tem vindo a limpar e a higienizar.
Tudo
se parece passar realmente num único dia, como nos diz o título, no
último dia. E numa luta e numa tensão primordiais. Uma luta entre a
incandescência e o fogo com a claridade e a água. Nunca se sabendo
quais destes representa o negro, a consumição. Não é seguro que
seja o fogo a devorar o que há para devorar e que o branco
signifique a alvorada e o recomeço. Estamos no princípio da tensão.
Nada é preto no branco e o entrelaçamento, a comunhão e a ruptura
são a matéria principal e em causa deste abismo; que tal como a
voz-off e toda a musicalidade intrínseca, a partir de um
certo ponto, algures naquela floresta de símbolos, se volve
sonoridade concreta, parecendo, como por golpes mágicos ou naturais,
pertencer à imagem e à sua envolvência, cinema puramente sonoro. O
resto é um mistério, ou sem história ou com as histórias de todos
os seres que amaram e destroçaram algo por uma educação no mundo,
é a impossível combinação do policial sem pais nem filhos do
Professione: reporter de Michelangelo Antonioni com o lento
cerimonial de Sergio Leone aparentemente contradicto pela lembrança
de F.W. Murnau. Mais uma vez, vamos estar aonde nunca pensamos.
Mudo... Sou o mesmo... Mudo... Sou o mesmo...
José Oliveira
[folha de sala para a ante-estreia do filme na Cinemateca Portuguesa, 23/05/2018]
Visages villages, Agnès Varda e JR, 2017
E com a sessão de hoje vamos perfazer várias rimas, sendo a mais bela de todas o facto de Agnès Varda ter sido companheira e obviamente colaboradora muito próxima do inigualável Jacques Demy, do qual vimos faz agora um mês o sumptuoso e renovador Les demoiselles de Rochefort, que surgiu no ecrã gigante do nosso Cineclube como um novo amanhecer desta arte ainda totalmente jovem. O que Varda contribuiu para os filmes de Demy, e o que Demy ensinou por sua vez a Varda, será sempre objecto de fascinante especulação e fantasia, que vamos deixar ao critério de cada um. De resto, desde que Demy morreu precocemente, ela não mais parou de o homenagear, tanto subtilmente e em segredo nos seus filmes, como noutros que dele falaram literalmente ou como num sonho, em Jacquot de Nantes ou L'univers de Jacques Demy.
Tendo começado a realizar em 1955 com La Pointe-Courte Varda nasce sob o signo da nouvelle vague, do lado da Rive Gauche, cúmplice de Marker, Resnais, Kast, Doniol-Valcroze, e obviamente do fascinante Gene Kelly francês seu amado, e possui como quase todos eles uma carreira riquíssima e diversa que recomendamos cada um perseguir. Por hoje vamos destacar o obrigatório Cléo de 5 à 7 de 1962, corajoso e cru retrato de uma mulher sem posições "feministas" e já numa invenção formal perfeitamente singular, sem rede nem amarras; o duro e generoso Sans toit ni loi, de 1985, que reinventou Sandrine Bonaire e nos deixou vislumbrar ainda outros lados da mulher Cléo. Depois, eternamente jovem, cheia de sede pelas novas tecnologias e pelas suas possibilidades de diário filmado e da autonomia absolutas – perto dos quartos e do íntimo gigantesco de Marcel Proust que ela tanto ama – sacou, arrancou à frieza dos zeros e uns o revolucionário Les glaneurs et la glaneuse, humilhando o bug do mundo virtual à entrada dos anos 2000.
Hoje, Visages villages, forjado meio sem querer e sem expectativas a meias com o fotógrafo e artista visual JR, sem argumento escolar nem pressão de produtoras, com a buchinha no bolso e o pátio de recreio na memória, completamente imerso na bela irresponsabilidade e na curiosidade primordial, numa viagem iniciática como nos velhos contos infantis nos quais o velho e o novo, diferentes, de outras eras, se encontram e se descobrem na mais descabelada das aventuras. Nem sequer estamos diante de uma passagem de testemunho, jamais alguém dá conselhos definitivos ou certezas acabadas. Muito distante dos filmes finais de certos mestres que se embrenharam em metafísicas impenetráveis, Varda atira-se de cabeça ao risco do passo seguinte no desconhecido, obtendo sangue novo numa claridade jubilatória. Os dois vão ao encontro de anónimos pelos lugares mais remotos de França, ela com a máquina de filmar e ele com as fotografias e os grandes formatos de impressão prontos para imortalizar essas pessoas simples e grandes nas superfícies mais inesperadas em estampas magníficas como em planos cinematográficos justos.
Então, pela arte deles e por um coração aberto ao conhecimento e ao outro, ganham amizades e emoções impagáveis, diferentes do que é possível no cinema da ficção, e sobretudo muito muito diferentes da ficçãozinha dos dias de hoje. Divertido e terno, cheio de revelações e surpresas ao novo – por exemplo, ela a mostrar-lhe a campa de Henri Cartier-Bresson e a presentear-nos com histórias deliciosas e privadas ou a meter-lhe medo com a possibilidade de conhecer Jean-Luc Godard – como de insuflação do compromisso e da entrega pelo novo que ela agarra como elixir da longa vida, o mais bonito do filme são mesmo essas aproximações e entendimentos entre naturezas aparentemente longínquas. Um road-movie humanista sem mapa, nem lei, nem roque, muito menos beira.
Uma boa viagem. Eternamente jovens!
(texto escrito para o LUCKY STAR - Cineclube de Braga)
sexta-feira, 18 de maio de 2018
“Bangiku” prova cabalmente que a
mais antiga profissão do mundo é o dinheiro. Se recuarmos todos os
séculos e dias possíveis, mesmo antes da Bíblia, veremos que só
existe o apelo da carne porque existe o apelo do poder. Toda a
minúscula excepção confirma a grande regra. O último plano deste
terrível e aflito filme realizado por Mikio Naruse em 1954, a
descida (e não a subida, como no título mais famoso da sua
filmografia) de uma mulher por aquelas escadas num picado que perde
imediatamente a sua nominação técnica ou estética para ser a
imagem mais acabada da perdição e do abismo desse apelo mais antigo
do que o mundo, vale triliões de ienes ou de dólares. Kin, o
pêndulo ou o ritmo cardíaco que marca o ritmo a todos os demais
dependentes dela, a protagonista cobradora de rendas e de dívidas
várias (tipo a Emel dos carros multados e rebocados em Lisboa, o
fisco partidário, especuladores imobiliários no caso português ou
demais abutres citadinos engravatadinhos) que trocou todos os sonhos
e possibilidades de amor oferecidos em bandejas de prata, preferiu
casar-se com o vil metal e o castrado homem que a acompanha nessa
curva descendente não conseguirá procriar mais do que novos
esquemas para a desmultiplicação do metal.
“Bangiku” é um puzzle, um mosaico,
uma polifonia, tremendo nesses ziguezagues quatro mulheres aninhadas
pelo passado de maneira diversa, e só aquela que se rende ou não se
rende pode aceder a esse portal triunfante ou não. Quatro mulheres,
ou três, pois a personagem da menina muda pode ter sido tudo ou nada
na sua curta caminhada, foram mulheres da vida, e parece já
não lhes ser permitida a possibilidade da paixão para lá ou para
cá da moeda de troca. Vamos a elas: a cobradora, diz-se por lá
algumas vezes, era e continua a ser a mais irresistível e talentosa
de todas, e muitos anos depois da reforma ainda é apetecível para
muitos. Teve amantes e pretendentes sem conta descontando os clientes
ou mesmo com eles, mas vamos conhecer um que tentou matar-se com ela
(e aqui entram valores, lendas e tradições nipónicas), foi preso e
precisa de dinheiro dela; e outro mais, o soldado do costume que amou
até ao presente e de quem guardou o retrato, ainda belo e desejante,
mas que precisa tanto de dinheiro como o outro e que mesmo se dando
por inteiro a ela é literalmente queimado e trocado pela moeda da
ocasião; outro anjo, parecido com a muda, em mais um paralelismo
significante, que despoleta a voz-off dela como diálogo
interior e trucidante à Faulkner, cavalgante como Virginia Woolf,
cedendo degrau ao único momento onde ela se despe toda, quando lhe
oferece a música que busca o milésimo de redenção. Depois, a
mais comovente delas, essa viúva sem remédios químicos e
sentimentais para a pele e para a alma, a que tem um filho que se
encontra náufrago do dia-a-dia e que arranjou uma amante para
alimentar o vício, mas que no tempo curto mas retumbante do filme
ainda a vai salvar; certos dias, lá para trás da narrativa que
vamos auscultando, essa mãe exigiu-lhe que a tratasse por irmã,
para conveniências várias que ficarão no segredo e nos silêncios
dos Deuses mas também pela tramada da vergonha. E, penúltima das
rainhas e princesas, a sua companheira, com quem se costuma
embebedar, partilhar a carne quando existe ou as chagas comuns; essa
tem uma filha moderna e liberal que vai deixar a casa para um
casamento que a todas parece precipitado e que não costuma pedir
desculpas nem medir consequências, estava boa para o filho da
colega. Por último, mas tão bela e primeira como qualquer delas, a
tal muda, que parecendo muito jovem talvez guarde mesmo todos os
segredos dentro dela, os existentes e os vindouros, a mentira algures
esquecível e a verdade duradoura como rocha, como alguém sugere, e
fiel seja então um relicário do profano, pronta para uma explosão
que parece nunca chegará.
Todas elas se vão lembrando dos seus
tempos de gueixa, dos sonhos perdidos, dos sonhos possíveis, ilusões
perdidas e rampas de salvação, todas vão analisar uma e outra vez
até à vez derradeira as marcas eternas, e descontando (ou seja,
contando mais dinheiro) a tal que mata tudo isso por um desejo e por
uma posse do absoluto, aquilo que será a estampa de Deus na terra ou
a cavalgada orgástica sem descrição romanesca, todas vão duvidar
e perguntar sobre a existência, ladainha de rabo na boca; e na noite
sem fim, no fundo dela, nas camadas mais escuras e densas, Mikio
Naruse, vai olhando um e o outro lado, um e outro lado, sem ser o
orquestrador de uma sinfonia da dor mas antes tentando curar e
perceber, tentando pintar para os futuros percebam tais trilhos, e a
tensão, o afago, as cordas e os nervos esticados e os elos que já
se foram vão compondo uma paisagem e uma música nela contida que é
a história daquele país e que só é assim pelas histórias dos
outros países e das outras pessoas; todos os holocaustos e
genocídios e toda a sede de poder e de dinheiro. Toda a dor.
Nessa noite tudo se liga e penetra,
tudo é um e a mesma dor, para lá ou cá do que cada um faz com ela;
assim a chuva perfaz uma imagem e um espaço distante, completa,
corresponde, contradiz; uma vassoura a varrer o chão, acto tão
inocente e corriqueiro, torna-se alegoria pela montagem
cinematográfica, e mais do que isso une a crispação dos corpos com
essa matéria sonora agreste; até se chegar à dimensão mais cava
que revela o horror e solidão que é o horizonte de cada personagem,
a cobradora de dívidas a desprezar a cama do amante e esse sono a
tornar-se convulso na casa das amigas, as amigas a falarem com o
pesadelo e a verem a cara dele e a cobradora de dívidas a rir-se
desse semblante; a insónia a ser humilhada e a ficar na elipse do
sarcasmo e do monopólio; as tempestades, raios e trovões, janelas e
gatos, ladrões da noite e o tecto branco a assomarem e a assombrarem
o mesmo lugar e tempo desfazendo e ignorando as regras e os raccords
do cinema.
“Bangiku” é um filme de raiva, de
justiça, de reposição continua e paciente do inadiável, até à
irrisão e picaresco final com que fecha a cortina de um tal teatro,
categoricamente e no inesperado que magoa mais. Raiva que vai sendo
fundida e vomitada por baldes de água atirados às costas de quem se
coloca a jeito como se faz aos cachorros vira-lata, diálogo
indirecto e às três ou mais tabelas: «se nos precipitamos, o
dinheiro cresce como uma bola de neve», comissões não
oficiais, luvas de cores várias, numerário já a flutuar como
nuvens, virtual, os cachorros e o faro destes a ser confundido e a
misturar-se com o dos profissionais humanos... «Tranque as
portas. A primavera é a época dos arrombadores» é o único
conselho que um cobrador pode dar ao outro. Para a ambição
desembocar na referida marcha nupcial, logo depois da viúva e da sua
parceira imitarem o andar e o orgulho das novatas, oferecendo o
ridículo à tragédia.
Onde Kenji Mizoguchi deixa correr, à
maneira do rio e do vento, inexorável progressão, para se descobrir
de rompante as penas e as culpas em cordas de enforcamento que
revelam atrozmente e num suplicio deslizante o carácter fragmentário
do Homem (“Akasen chitai”, 1956), Naruse trabalha imediatamente a
partir do chão partido, do solo devastado da nossa actuação, do
fundo e da atmosfera estilhaçadas quer pelas guerras mundiais quer
pelas guerras caseiras, restando compor, unir através dos suspiros
inaudíveis ou das forças da natureza a nossa partilha e o nosso
composto; observa e trabalha depois de uma explosão, de terem
rebentado as bordas do rio e os diques, indo à procura dos
fragmentos, do passado, tacteando assim sem ameaças que não a de
cada um dentro de si mesmo, pulando de um ser e do seu lar para outro
ser e outro lar, cada animal diferente e fatalmente igual,
reinventado todas as coordenadas e funções desta arte que se apega
a cada partícula de real tal como os fantasmas a este. Naruse
mostrou, descontando os segredos impronunciáveis e inacessíveis,
que basta a frontal e decisiva imposição de concreto para todo o
seu contrário advir. Começando o cinema sempre de novo. Uma segunda
primavera a todos prometida. Crisântemos ressuscitados. Fogachos
brutos e delicados como só uma Alma mater pode ousar. Um filme de
Mães e dos seus pressentimentos, é isto, Naruse.
sexta-feira, 11 de maio de 2018
«A
screaming comes across the sky. It has happened before, but there is
nothing to compare it to now.», Gravity's Rainbow, 1973
“Brewster McCloud” é um filme (um bólide, um naco de solidão purificadora) que combate a realidade virtual. Que combate essa imersão num suposto universo absoluto que tanto simula (e dispensa fisicamente, e ridiculariza) o sexo como as Cataratas do Niágara. Brewster McCloud, o miúdo que sonha construir umas asas para voar, não conhece o sexo nem o medo da morte, por isso só quando cai no abismo deles é que concretiza o tal sonho dos sonhos. Todo este cosmos é mecânico, analógico, mítico, pó, sendo Brewster McCloud um Ícaro nessa verdade suja e crua dos filmes para pegar ou largar de Altman; sendo ainda um novo Jesus Cristo que ignora o petróleo no Texas, cordeiro sem pecado, marioneta sem controle da gravidade e do próximo passo. E como não conhece o pecado, não hesita em fazer pactos com anjos e demónios de uma Galileia longínqua em forma de mulher fatal; não hesita em estrangular quem pouco mais merece do que isso; nem em rodear-se de ecos dos loucos que antes dele se perderam pelo sonho dos sonhos.
Quem entra numa
qualquer Fnac num qualquer centro comercial do Texas ou de Lisboa é
comido por toda a gama de tentações e de abutres que vão
substituir uma ida à lua ou um banho no Rio Amazonas (via um Gear
SM-R325 + comando por 99,99 € na promoção de Maio 2018); também
Brewster McCloud, em plenos anos de Vietname, de Cassius Clay ou de
Thomas Pynchon, de paranóias difusas e de desejos de libertação
puramente americanos, teve no seu raio de acção e na sua respiração
todas as figuras demenciais que iriam parar aos caldeirões infernais
de Dante ou seriam trituradas nas bandas-desenhadas do Capitão
América; mas como não tinha acesso permitido ao reino das sombras,
não conseguia agarrar a luz divina dos céus que vislumbrava no
sono. E foi preciso sair do Éden, ignorá-lo, foder, morrer, usar
das cagadelas dos mil pássaros que por ali passam, para atingir o
Olimpo.
Quando se entregou
nu à carne e a sua sublime figura de castração bazou desse jardim
de aço tão belo como infecto do estádio de basebol ou do circo –
a saída de Sally Kellerman do sódio artificial para o sol natural
que queima lá fora na sua última aparição é o cúmulo da arte de
Altman que combina o café rasca do uncle
sam e os polémicos de saborosos donuts
com o plano-sequência parente de Ingmar Bergman que aglutina tudo,
degredo e pureza seja onde for e como for – conseguiu voar; olhou
para uma ave rara mas já comida e corrompida pelo social - Shelley
Duvall já pronta para o bisturi de Stanley Kubrick – e mergulhou
de cabeça para fora da prisão na qual certos humanos estão
condenados e sossegados permanentemente.
No início, o verbo,
e Goethe: «Como ansiei atirar-me no
espaço infinito e flutuar sobre o terrível abismo.»
Na saída, as vísceras, e poderia ser R. Kelly, I
believe I can fly,
Ícaro da pop, da pulp, ou
da NBA dos voos potáveis e suicidas. O que Brewster McCloud e a má
educação ou limpeza (ampliação) de Altman nos prometem, ou nos
fornecem o atalho, o short-cut, é
a verdadeira imersão na experiência derradeira, em que todo o
caminho conta, as coisas correm sempre da maneira como correm e não
suspensas no simulacro, unindo os fios e os estilhaços dos
percursos, dos espaços e dos tempos díspares, perdendo as trevas a
almejada veste a evitar e a pureza o bem primário; o que todo este
freak show aponta
e entrega, escancara generosamente, é ao ridículo do temor da única
coisa prometida à condição humana, passados séculos e séculos do
Ámen; aponta ainda o dedo à vergonha e culpa da entrega ao
desconhecido, que são os sonhos, e a assunção (transgressão) do
impossível.
Altman,
no seu melhor e no seu pior, é um cineasta ridículo por isso mesmo,
e tão claro como descritivo – tudo se pode ficar a conhecer de uma
Houston dos foguetões e de uma América embrutecida nesta amálgama pastosa como
pepsi, tudo pode ser desconstruído, inclusive o heroísmo do
lendário detective Frank Shaft; mesmo o carinho pode aparecer da
loucura - como ainda universal e minúsculo: é só um filme sobre um
desejo infantil apátrida cumprido depois de se atravessar e desafiar
o vale de todas as sombras. Um filme para rebentar com os leds 4k ou
os S9 das ditas experiências totais e totalitárias (2018, neste
momento já desactualizadas) que dispensam o sexo e nos mostram a
morte panorâmica em Ultra-Resolução.
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