«A
screaming comes across the sky. It has happened before, but there is
nothing to compare it to now.», Gravity's Rainbow, 1973
“Brewster McCloud” é um filme (um bólide, um naco de solidão purificadora) que combate a realidade virtual. Que combate essa imersão num suposto universo absoluto que tanto simula (e dispensa fisicamente, e ridiculariza) o sexo como as Cataratas do Niágara. Brewster McCloud, o miúdo que sonha construir umas asas para voar, não conhece o sexo nem o medo da morte, por isso só quando cai no abismo deles é que concretiza o tal sonho dos sonhos. Todo este cosmos é mecânico, analógico, mítico, pó, sendo Brewster McCloud um Ícaro nessa verdade suja e crua dos filmes para pegar ou largar de Altman; sendo ainda um novo Jesus Cristo que ignora o petróleo no Texas, cordeiro sem pecado, marioneta sem controle da gravidade e do próximo passo. E como não conhece o pecado, não hesita em fazer pactos com anjos e demónios de uma Galileia longínqua em forma de mulher fatal; não hesita em estrangular quem pouco mais merece do que isso; nem em rodear-se de ecos dos loucos que antes dele se perderam pelo sonho dos sonhos.
Quem entra numa
qualquer Fnac num qualquer centro comercial do Texas ou de Lisboa é
comido por toda a gama de tentações e de abutres que vão
substituir uma ida à lua ou um banho no Rio Amazonas (via um Gear
SM-R325 + comando por 99,99 € na promoção de Maio 2018); também
Brewster McCloud, em plenos anos de Vietname, de Cassius Clay ou de
Thomas Pynchon, de paranóias difusas e de desejos de libertação
puramente americanos, teve no seu raio de acção e na sua respiração
todas as figuras demenciais que iriam parar aos caldeirões infernais
de Dante ou seriam trituradas nas bandas-desenhadas do Capitão
América; mas como não tinha acesso permitido ao reino das sombras,
não conseguia agarrar a luz divina dos céus que vislumbrava no
sono. E foi preciso sair do Éden, ignorá-lo, foder, morrer, usar
das cagadelas dos mil pássaros que por ali passam, para atingir o
Olimpo.
Quando se entregou
nu à carne e a sua sublime figura de castração bazou desse jardim
de aço tão belo como infecto do estádio de basebol ou do circo –
a saída de Sally Kellerman do sódio artificial para o sol natural
que queima lá fora na sua última aparição é o cúmulo da arte de
Altman que combina o café rasca do uncle
sam e os polémicos de saborosos donuts
com o plano-sequência parente de Ingmar Bergman que aglutina tudo,
degredo e pureza seja onde for e como for – conseguiu voar; olhou
para uma ave rara mas já comida e corrompida pelo social - Shelley
Duvall já pronta para o bisturi de Stanley Kubrick – e mergulhou
de cabeça para fora da prisão na qual certos humanos estão
condenados e sossegados permanentemente.
No início, o verbo,
e Goethe: «Como ansiei atirar-me no
espaço infinito e flutuar sobre o terrível abismo.»
Na saída, as vísceras, e poderia ser R. Kelly, I
believe I can fly,
Ícaro da pop, da pulp, ou
da NBA dos voos potáveis e suicidas. O que Brewster McCloud e a má
educação ou limpeza (ampliação) de Altman nos prometem, ou nos
fornecem o atalho, o short-cut, é
a verdadeira imersão na experiência derradeira, em que todo o
caminho conta, as coisas correm sempre da maneira como correm e não
suspensas no simulacro, unindo os fios e os estilhaços dos
percursos, dos espaços e dos tempos díspares, perdendo as trevas a
almejada veste a evitar e a pureza o bem primário; o que todo este
freak show aponta
e entrega, escancara generosamente, é ao ridículo do temor da única
coisa prometida à condição humana, passados séculos e séculos do
Ámen; aponta ainda o dedo à vergonha e culpa da entrega ao
desconhecido, que são os sonhos, e a assunção (transgressão) do
impossível.
Altman,
no seu melhor e no seu pior, é um cineasta ridículo por isso mesmo,
e tão claro como descritivo – tudo se pode ficar a conhecer de uma
Houston dos foguetões e de uma América embrutecida nesta amálgama pastosa como
pepsi, tudo pode ser desconstruído, inclusive o heroísmo do
lendário detective Frank Shaft; mesmo o carinho pode aparecer da
loucura - como ainda universal e minúsculo: é só um filme sobre um
desejo infantil apátrida cumprido depois de se atravessar e desafiar
o vale de todas as sombras. Um filme para rebentar com os leds 4k ou
os S9 das ditas experiências totais e totalitárias (2018, neste
momento já desactualizadas) que dispensam o sexo e nos mostram a
morte panorâmica em Ultra-Resolução.
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