sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015



Se em "The Chase" a tensão nos ombros de Marlon Brando armava directamente a mise-en-scène, conferindo-lhe o peso, a gravidade e todas as linhas de força inerentes a um genuíno plano cinematográfico, em Bonnie an Clyde", o filme imediatamente seguinte de Arthur Penn, todas essas características necessárias a algo vivo e pulsante formam-se através do sexo e da violência. Não sexo e violência por si, mas os dois no mesmo corpo e a uma mesma vez. Corpo que vai ser o da natureza, o grande meio original (se colocássemos a hipótese de análise de cada partícula funcionar como um universo próprio, não chegaria um tratado). As texturas, temperaturas, todas as variações orgânicas, resultam dessa fusão que se dá logo para a primeira imagem em celulóide, exactamente para os lábios de Faye Dunaway. Mais pormenorizadamente: a fotografia imóvel do Clyde que depois vai ser representado por Warren Beatty a possuir e a penetrar na carne e na libido de Bonnie e da constituição da película, e Bonnie a receber plenamente a investida. Se no filme anterior havia um atamento até à explosão, aqui já explodiu algo que esteve convenientemente latente e vemos e sentimos o trabalho e a direcção dos arremessos. No percurso do filme, que é a nascença de um par e logo de um insólito mundo até à consumação, a vitalidade, desejos, comunhões e dilacerações, enfim, o poder e os choques de todos os corpos em digladiação, vão gerar os arrepios e as pinceladas que nesta vez em Penn parecem mesmo representar amor sem meias medidas, destino ou referente. Era assim que se dava nas tragédias clássicas como em Shakespeare, os elementos a encarnar e a juntar-se no coração, no dentro dos seres, numa poesis total que finalmente aglutinava todas as coisas; mas se o lírico desmedido deste filme queimante vai tanto ao idealismo como ao delírio e ao sonho, permanece num grau de realismo corrente ou apurado. O trabalho dos grandes retratistas da época em questão, de Walker Evans e do comparsa James Agee até W. Eugene Smith ou ao genérico não é somente evocado para efeitos de sugestão e reconhecimento, mas comunga de uma frontalidade, de uma dureza e crueldade que eleva a matéria mais concreta ao abstraccionismo mais geral. Parece não haver um grande esforço de reconstituição por Dean Tavoularis, mesmo que passados uns bons anos da chamada era da depressão. Estão lá os abandonados, os injustiçados, meliantes, perdidos da terra e da morte no branco e no buraco negro, esses de John Steinbeck e de David W. Griffith, mas também o crepuscular e os encarnados e amarelos e o que fica longe da paleta a arder num romantismo sôfrego que só tem paralelo na pintura desregrada. Recentemente só um "Miami Vice" ou um "Cavalo Dinheiro", cantadores de rua ou de uma esfera aparte dos suplementos culturais é que atingiram tais graus de registo e de assombração consanguínea, balanço sempre perigoso mas fascinante pelo despegamento do quotidianozinho e paz podre que nos adormece. Da perfeição atingida numa intensidade não permitida à civilização regrada até à rajada derradeira que literalmente estraçalha os corpos, entre os cortes sequíssimos da montagem e as arrastadas variações solares, da lei à verdade, do terreno ao mito, temos uma condensação eléctrica e agonizante da história da liberdade e da história da dor. Embates e entrelaçamentos. Natura e estética sem possibilidades divisórias. Como na entrada em mansinho ou de rompante para a ficção, essa que descrevi no início e não tem nome de fade, crossfade ou cross dissolve. Sempre o eterno retorno a tudo prometido.

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