segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015



Acerca de todo o movimento extenuante, das heranças e das consequências deixadas por “The Chase”, caso inarrumável que Arthur Penn ousou pelos anos sessenta do século passado, o grande crítico inglês Robin Wood já praticamente tudo disse do que é possível num filme de tal complexidade. O velho Oeste a ser violado pela civilização e torrente sexual, a violência kitsh a confluir com a intolerável, uma perfídia e uma sujidade abstracta a penetrar na verticalidade e na solidificação clássica. Podia-se escrever páginas e páginas sobre os suores, os afiamentos e os encornamentos ad infinitum que jamais são libertação mas antes degredo. Mas se tudo isso é uma girândola sem freios, o mais impressionante é que tudo está condensado e concentrado num corpo, o de Marlon Brando, xerife farto do mal em trabalho por todos os lados. Peso absolutamente físico e metafísico, acumulado mortalmente nos ombros e na restante carne, e em tudo o que teve de suportar mentalmente, ver, silenciar, enfim, despojos e efeitos da imperecível caminhada. Brando é o centro pois comporta todas as partes em graus díspares e incomparáveis, sendo correlativamente a geometria, esquadria e argamassa para a encenação fílmica. Impossível tecer sobre esta obra e dizer em rodapé da excelência do actor. Se Brando tem aqui o seu zénite, num sublime Cristo sagrado ou dessagrado, é porque tudo, todos e cada qual participa da sua via-sacra ou simplesmente da sua perdição. O final do filme foi perfeitamente sintético e claro para os tempos que se avizinhavam e que ainda são os nossos – todos os que amam, ou seja, tudo o que é limpo, ou morre, ou fica só, ou tem de se esconder (genocídios correntes, suicídios, emigrações). Calder vai da insurreição utópica à comunhão bíblica, de Gary Cooper a Eastwood, da liturgia amarrada com a anarquia, ousa a restituição e é furado pela desilusão. Os seus gestos desengonçados, os moveres desequilibrados e forçados, o instinto trôpego, esse caminhar em esforço por vezes perto do suplício, um sobreviver que anseia e desespera pelo alívio, ilha final. Cruz ou castigo antigo de onde uma certa ambiguidade do seu posto oficial rasga trilhos outros tortuosos de onde culpa e redenção travam batalhas similares. Calder tanto reage à destruição exterior, ao geral incendiado, como se queima interiormente, num calamento indizível. Como sempre, Penn elabora sobre a pertença e o agudo da transição, entre a retaliação cruel e a desistência negociada pelo aleatório, de onde tais confrontos, dialécticas em acção pura, levam inevitavelmente ao adeus (sempre os olhares lacrimosos, tão cheios de pena, ao para trás) e ao recomeçar do zero. Há um momento mágico, quando ainda se vislumbra a possibilidade da harmonia e um belo cavalo salta pungente para a Paz diante dos olhos estupefactos e sempre apaixonadamente fiéis de Calder e sua amada (Angie Dickinson, em lógica anacrónica). E há o terror que rima com todo o “novo” das cores, sons e danças, seduções inenarráveis, frigidas, nessa destruição dos cantares e melodias da infância que preside à morte de Redford, à morte do parceiro de brincadeiras e de assobios, ao baptismo além vida, até ao plano final totalmente abandonado de Jane Fonda, um anjo alvo e quebrado também prometido ao buraco negro que tudo anda a sugar. Lenta bifurcação que conduziu até a esse ponto apocalíptico, estertor finalizado num Brando particular e igualmente imagem de todos os pecados, pingado de sangue e retirando-se para uma hipótese de Paraíso longe das leis frias. “The Chase” é assim claro e cravado de cantos obscuros que cegam, nessas infinitas teias que emaranham e nas pobres felicidades podres, um dos avisos, diagnósticos e lamentos mais pungentes sobre uma espécie que tentou querer mais do que o desmesurado que lhe foi oferecido. “Young Mr. Lincoln” na via de “Zabriskie Point”. O maior dos actores no maior dos sacrifícios. “The Missouri Breaks” e as escarpas, vazio de valores e de metáforas aqui ainda entrevistas. Brando (supostamente) invertido. O Realismo. Lirismo indefinível.

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