quinta-feira, 12 de março de 2015

ENCONTROS CINEMATOGRÁFICOS 2015 - Miguel Marías sobre Victor Erice


"Simbolicamente, um “alumbramiento” (curto em todos os sentidos, excepto no seu alcance) parece uma forma evidente de compensar e superar um aborto indesejado e forçado (de algo longo e muito querido, de prolongadíssima e laboriosa gestação). Mas, depois de ver Alumbramiento dez vezes, não me restam dúvidas, e não me afastarei da seguinte convicção nem que o próprio Victor Erice me desminta: de facto, é a solução do dilema colocado por El sol del membrillo – chegados aqui que fazer?, por onde seguir?, é um caminho que se pode prolongar ou já não há continuação?, ficção ou não ficção? – e penso que La promessa, se tivesse sido feito, não teria resolvido, porque significava partir de outro sítio e ir noutra direcção. Mas graças a essa longa etapa intermédia de elaboração (e inclusive da sua frustração e do trauma que provocou) de La promesa de Shanghai, penso que Erice – suponho que naturalmente, sem provocá-lo conscientemente – conseguiu prolongar El sol del membrillo e ir inclusive um pouco mais além. De tal modo, suspeito, que se alguém puder ver os seus filmes dentro de cem anos, sem saber nada dos “interstícios”, fazendo elipses sobre os anos e os labores, encontrará uma continuidade totalmente lógica, um passo e o passo imediatamente seguinte, entre os dois filmes, separados, como quase sempre, por um hiato com cerca de dez anos.

E é curioso que seja a presença oculta mas patente do magistério griffithiano o que para mim confirma tanto a continuidade entre os dois filmes, à primeira vista tão distintos como El sol del membrillo e Alumbramiento (por outro lado, que faz o sol senão, em mais do que um sentido, iluminar? E que faz, ou deveria fazer, pois pode, o cinema, ainda que costume fazer exactamente o contrário?), e o nexo quase invisível entre La promesa de Shanghai e Alumbramiento, que converte esse projecto (com a sua não realização incluída) na “prova necessária” para dar mais um passo adiante, depois de ter chegado, como quem diz, ao limite de vislumbrar um ponto a que ainda não chegara fisicamente, mas que Erice via ou intuía sem poder pôr os pés nesse lugar. Não sei se terá algo a ver com essa crença, da qual vejo rastos bem patentes, sobretudo em Rossellini (Stromboli, Europa ’51...) e quiçá menos em Renoir (embora também), que alguns possivelmente classificarão de (ou desclassificarão como) “implantações” de uma suposta moral judaico-cristã, de que as coisas há que merecê-las, ou o que mais vale a pena custa a conseguir, o que tem um lado desalentador de ver o caminho como uma encosta que requer esforço a subir, mas também o lado “consolador” de chegar à conclusão de que o mau, as provas, as dificuldades, “as travessias no deserto”, servem no final (ou pelo menos podem servir) para algo, conduzem a algum sítio, permitem chegar a esse objectivo difuso e desejado, pelo menos para aquele que aguentar e persistir. Assim, as piores provas podem chegar a “compensar” (ou a ver-se compensadas); os “anos perdidos” não se perdem, investem-se produtivamente; e o “mau” pode valer a pena e servir para algo (nem que seja para aprender, para resistir, para endurecer, para amadurecer). É um pouco a possibilidade de transformar as derrotas em vitórias, essa ideia tão querida por John Ford."

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