"Penso que és feliz quando o corpo está em consonância com os pensamentos, com as ideias. Acostumei-me a estar no meio de prados, de rios, árvores, na geada. Além disso ali tens pensamentos diferentes dos que tens na cidade. Aqui as leis da natureza não contam nada, e eu sentia-me... morta." Isto é dito não por qualquer moderno partido verde mas por um dos rostos femininos que um realizador de cinema procura incessantemente e vagamente em "Identificazione di una donna". Mais uma obra incaracterizável e fugidia de 1982 que no fecho acaba por dar ouvidos à inocência de uma criança que lhe pede para fazer um filme fantástico. Ficamos literalmente para lá das nuvens, de Deus e dos Homens e das nossas regras e morais, no espaço esfíngico, a interpelar não a matéria de que somos feitos ou como é que a evolução se torceu e retorceu, mas numa visão e horizonte sem limites. As respostas pulverizam-se e só sabemos que nada sabemos. Só dúvidas - e é já a mais acabada imagem desta arte muito mais visceral do que conceptual. Mas muitos têm dito peremptoriamente que Michelangelo Antonioni não é um contador de histórias, vulgo "storyteller", mas se vulgo não é de certeza, tenho a certeza que só lhe interessou contar da vida e da perdição do homem na existência, no mais amplo espaço e imerso no quotidiano cerrado, caminhando pela pura abstracção e no duro visível. Compositor, coreografo, arquitecto, são as definições mais comuns associadas ao seu labor, acompanhadas pela drenagem de sentimentos e por uma secura que muitas vezes não é associada ao clima e aos estados de alma dos personagens, aos enquadramentos e aos cortes, mas sim à emoção mais legítima. O que é absolutamente discutível visto que a cada revisão dos seus filmes estes emergem pelo rigor, pela precisão, pelo essencial (oposto perfeito e convulso das digressões de Tarkovski e seus herdeiros onde tudo fica na mesma e nada muda em constante insuflação), numa construção que só faz sentido pela presença dos seres nessas áreas rigorosamente colhidas, traçadas e ordenadas. Se as histórias, a narração romanesca, não está assente nem avança da maneira habitual conferida às estruturas que seguem um argumento preconcebido no papel, se não confiam nos esquemas das academias nem do romance do século XIX, é porque esta maneira é bem mais complexa e profunda, para lá ou cá de como era e se tornou anacrónico - imaginário, civilização, ideologias e utopias que tanto cindiram a enformarem. O desencanto da falta das certezas a explanar-se em desolação.
Narração profunda pois ultra sensível, e se a base é quase sempre Adão e Eva no reconhecimento do Paraíso ou simplesmente do meio onde foram parar sem pedir, as formas mais imediatas, das linhas às cores, da composição à temperatura, ordenação e caos, mesclam-se com essa relação entre homem e mulher no ajustamento comum - portanto, está enganado o errante narrador John Malkovich quando em "Al di là Delle Nuvole" profere que a natura muda e nó continuámos os mesmos, e acabará por perceber isso. As questões da percepção e do realismo não podem ser separadas do que é contado, e assim vai-se muito mais longe em relação a teorias demonstrativas, intelectos pensantes ou esses distanciamentos de cariz filosófico que os herdeiros nada inocentes do inimitável cineasta Italiano praticaram. Um todo orgânico e mutável que vive e se renova no instante de cada presente, nessa fulminação sempre inaudita que a luz revela ou é propensa a revelar desde que o tempo passe. Antonioni não pintava árvores destoantes nem reorganizava sistemas por mera aplainação ou decorativismo, mas precisamente pelo mesmo motivo que os realizadores de estúdio e do falso, para centrar e descentrar, concentrar e fluir, partilhar ondas e tensões entre vivo e morto. O rosto de cada actor, cada personagem ou anónimo, comunga do semblante outro que o abarca e tudo isso vai criar o vasto rosto do filme. Rosto total que na formação, na concretização como na experiência (marcas, chagas, devires) se faz universo por si. Um cinema de descoberta e redescoberta, de onde a imobilidade tem tanto peso como os rasgares pelo campo e pelo infinito fora de campo. Os olhares aliam-se às panorâmicas e aos divagantes travellings. A circularidade da máquina e da vida assume o mesmo aspecto ou demanda deambulatória. Tanto tem a ver com perdição como paixão, a dita alienação e curiosidade. Em "Il Grido" o protagonista que nas costas e na cabeça carrega o ressoar da guerra e de uma mulher não como as outras, acaba por se suicidar. Em "La Notte" o chamamento nocturno toma posse das vontades num caleidoscópio abafado de viagem ao fim da noite. "Zabriskie Point" é o fim ou o reinício do mundo e logo da ficção. No "Professione: reporter" troca-se de identidade mas não de corpo nem de palco. Os sistemas emperram, vão à falência, como as máquinas ou famílias, a técnica muda, e sobra a sobrevivência. Espelhamento e fatalidade, a mais acabada e grave forma narrativa. Para uma nova emoção que não oblitera etapas e trabalhos construtivos, mas que os percebe, reconquista e agrega totalmente. "Não se confundam, não sou filósofo. Ao contrário, estou profundamente unido às imagens. Comecei a descobrir a realidade ao fotografá-la. Fotografando e ampliando a superfície do que me rodeava. Tentei descobrir o que havia por trás. Não tenho feito nada mais." (do mesmo Malkovich desse testamento arrancado às leis físicas e burocráticas).
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