Lawman, Michael Winner, 1971
Michael Winner paira nos dicionários
de cinema e nas bocas de muitos cinéfilos sérios como um sinónimo
acabado de fancaria, foleiragem, violência gratuita. Mas bastava ter
captado o rosto sereno de quem tudo viu unido aos modos profissionais
de Charles Bronson nesse “The Mechanic” que a televisão
portuguesa passava na sessão da meia-noite ainda em meados dos anos
noventa para poder ser toda outra coisa. Toda outra consciência e
outro tempo que estão sublimados e putrificados em “Lawman” de
1971, onde a justiça parecia um eco e uma quimera longínqua pronta
a despedaçar cada um dos seus apóstolos. Aí vamos encontrar uma
cidade, um sistema, um universo que tal como o Donald Trump de hoje
entrega armas a crianças, a professores, a cobardes, a dementes,
para cada um por si. Numa velha história que começa com mortes
gratuitas, inconscientes, impunes, e que acaba com a massa
comunitárias de bacocos e de surdos a voltar à rotina para tudo
esquecer e recomeçar num breve próximo episódio.
Tempo onde os cowboys se mistificam a
si mesmos justificando a brincadeira com as armas que deveriam
somente servir para matarem cobras e ajudar no seu trabalho.
Coboiadas sem rei, nem lei,
nem roque, prontas a tirar o pão da mesa a uma família ou a
terminar um brilho nos olhos e todas as promessas just for
fun. “Lawman” tem o seu
tempo presente no apocalipse, que desde a bíblia representa o nosso
alcance. Onde as flores nascem apenas passados os limites da terra
queimada da polis suprema e mesmo assim brotando de cactos. Paisagem
paramentada por abutres, bicharia negra e coiotes que comem as tripas dos
belos cavalos que certo dia foram os confidentes e parceiros dos
homens bons. «Coração que tens e sofre / longas
ausências mortais. / Viúvas de vivos mortos / que ninguém
consolará», como na
estrofe final da Canção da Emigração de Rosalia de Castro para a
voz lacrimante de Adriano Correia de Oliveira – emigração suprema.
Em
“Lawman” vamos encontrar três homens diferentes, que se conhecem
e reconhecem, vergados pela cruz do inescrutável e das mortes a
esmo, pela cruz do novo, da falta de sentido e de ordem, que se
respeitam mutuamente. Burt Lancaster, ou Madd, Lincolneano
até morrer de pé, é a estrela da lei, de brilho decadente, rápido
como Jesse James, tudo menos herói, que aguentou o suplício que o
mito dos mitos rejeitou suicidário, velho, no boca a boca do Correio
da Manhã da época, sem piedade, widowmaker,
todo esfarrapado, mas mesmo assim o único que não se vende e quer
impor a justiça, tendo trocado por essa guitarra o
amor, o pedaço de terra, os filhos. Lee J. Cobb, o fabuloso Lee J.
Cobb, Bronson, o big boss, também supremamente cansado, sempre a
olhar para o chão, para as lápides e para um horizonte que para
sempre conservará o rasto do que foi, cheio de filhos reais e
ficcionados, cheio de ver mortos, remoído de remorsos pelas mortes
da lotaria e pelo massacre dos índios, que considera boa gente, não
quer mais duelos mas mesmo assim não trava o sangue na guelra dos
novos. Robert Ryan, Ryan, o mais solitário de entre os mil
solitários do cinema, olhos plangentes, xerife boneco, marioneta,
empty uniform, que um
dia foi como Burt mas que não teve as forças dele para lutar contra
a maré, aproveitando sem pedir a coragem de Burt ainda intacta mil
anos depois para se ressuscitar. E, no centro do vértice e do
vórtice, Sheree North, a mulher, única entidade capaz de meter por
breves momentos em elipse e fora de eixos a responsabilidade e
vigilância dos grandes sobre os néscios.
O duelo final mata mais filhos, pais, testemunhas, credos, e das costas viradas e caídas com toneladas de peso do homem das leis a câmara vai andar às aranhas até focar às marionetas urdidas pelo acaso, pelo medo e pela fascinação da violência, depois de mais um zoom à cara da Mulher desfeita, pondo em evidência a terra seca e a infertilidade vindouras. Michael Winner usou e abusou da distância focal comida e carcomida velozmente, do espaço e do tempo comprimidos, esmagados e distorcidos, da fixidez demasiado próxima para objectividades lúcidas, de um lirismo gangrenado fora do catálogo do Belo, das metáforas demasiado materiais e descarnadas para instrumentalização política. Dizendo-nos das fronteiras de hoje, das fronteiras vitais, precedentes, da má consciência, dos holocaustos em loop. E mostrando-nos no tal zoom derradeiro a última saída antes do apagão. “Lawman” é um dos elos perdidos, ou um pistão quebrado, entre John Ford, Sam Peckinpah e Michael Cimino.
Chato's Land, Michael Winner, 1972
As
razões sobre as quais Winner resolveu voltar ao western tão pouco
depois de “Lawman” podem ser várias, estranhas e indecifráveis,
para lá das oficiais, visto que puxa o tempo e o terreno para
trás, dir-se-ia à cata da
génese de tal selvajaria e impunidade em que os anos sessenta e
setenta do século passados estavam a ser prósperos, pegando em
temas tão antigos como a ancestralidade das práticas e a justiça
comum e tão novos como a guerra que os Estados Unidos estavam a
travar no Vietname por alturas de “Chato's Land”. Chato, o
mestiço silencioso de Bronson é apenas uma máquina de reacção
que defende o seu e que conhece o terreno que pisa como as palmas das
suas mãos, porque são as suas posses e o seu amor, solo e espírito
sagrados que o adversário só começará a compreender quando
começar a enlouquecer. Chato é um Vietnamita e
um simples patriarca bíblico. Como no “Anatahan” de Josef von
Sternberg os homens aprenderão através daquele que pensam ser o seu
inimigo que o máximo inimigo e o máximo horror estão dentro de
cada um deles.
Pois o que
despoletou a guerra foi a cena da vergonha em que um da nossa raça
tenta expulsar um ser humano de um local público por ele ser nativo
daquela terra, e numa cena feia como há poucas no cinema, o agitador
olha para a câmara e para cada um que vê o filme e pergunta: estão
do lado deste filho da mãe ou do meu? A partir desse momento cabem
todos os tempos e mundos, das tensões entre brancos e negros na
Brooklyn de Spike Lee até ao imemorial USA x México, antecipando-se
mais uma vez Trump na personagem que trata abaixo de cão o Mexicano
que ajuda o grupo liderado por Jack Palance a dar caça a Chato. E
esse Capt. Quincey Whitmore de Palance é uma das personagens mais
complexas e básicas dessa época, filosofando sobre a derrota
sulista de uma forma simplista e tecendo sobre os índios as mais
elaboradas filosofias, desde as suas tácticas de guerra até à
verdade da sua palavra - desprezando o que viveu e estudando o que
não entende, para mesmo depois de tanto ter visto preferir a
loucura.
O ritual
Faulknariano que Quincey mete em marcha ao saber da sua missão, mecânico e coloquial,
citando “Absalom, Absalom!” na cena da arca de todo o legado e de
todo o sangue, essa alegria a um tempo e no mesmo tempo a consciência
da tragédia, é a fundação dessa nação, a justiça férrea, a
violência férrea, e um sonho algures, todos em em combate, num pé
de guerra. O resto do filme é uma milimétrica resolução
dessa equação, já com os abutres a devorar a carne dos mortos para
que não sobre rasto mas apenas lenda, já com as violações à
mulher do outro. Michael Winner decidiu rebobinar mais um pouco o
pergaminho, não encontrou solução, e o raio de esperança jaz
fundo, algures no términos (?) da caminhada abraâmica que Chato e a
sua família irá encetar.
(No caso de
“Chato's Land” escrevo sobre a versão uncut, a chamada montagem
europeia, muito menos soft do que a lançada na América; filmado na
Andaluzia, sul de Espanha, que passa pelo estado do Novo México; tal como,
incrivelmente, “Lawman” foi filmado no México.)
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