All Is Lost, J.C. Chandor, 2013
“All Is Lost” traz à baila dos
solitários e dos preguiçosos um pensamento gratuito, ainda antes de
um desejo, que em certa época se tornou recorrente: se nos
tornássemos a única pessoa no mundo, não teríamos de repetir
incessantemente banalidades como fazer a barba, cortar o cabelo, ir
às aulas, apanhar sermões, etc. Mas O Nosso Homem do contido Robert
Redford é um clássico, e então decide barbear-se quando já começa
a perceber que tudo está perdido e que é o único ser à face da
terra, e sobretudo o único homem no mar. Sendo assim, esse acumular
de gestos, ideias, instintos rudimentares, soluções, desespero,
esperança, realismo e delírio, que acontecerá nos cento e poucos
minutos de metragem e nos poucos dias da narrativa, vão-nos ser
dados pela velha e generosa escala de planos apurada por Hollywood:
planos médios, americanos, grandes-planos, pormenor, e por aí fora.
Seria muito fácil ter sido Tarkovskiano, exótico ou estático
conforme a estética radical escolhida, mas o caminho escolhido pelo
realizador J.C. Chandor acompanha a batida do Nosso Homem, a
cadência, os sinais vitais até a luz se tornar cada vez mais
bruxuleante e o outro lado da vida mostrar a carantonha.
O final é fabuloso como uma revelação
cósmica de outros Seres ou como um escavamento hieroglífica e
resume a perdição em causa mas também a floresta da vida de cada
um: certo dia, a certa hora, uma salvação qualquer clamará por
nós, mas nós, por causa de deixarmos de acreditar ou já não
sentirmos nada, por causa de tanta rotina e usura, tapamos os ouvidos
até ao mais sublime dos clamores; ou então é só uma ilusão e nem
ao sonho se olha. A partir daí a luz apaga-se mesmo e cada
espectador traz para si, ou não, a salvação. Depois até aquela
oração nos créditos, tal como o embalo de acompanhamento anterior
na banda-som, pode ser bem escutada, ou não, pode ser uma sinfonia
do rumor agudo do mundo, ou apenas um enchimento de chouriços.
O filme mais cerrado pode ser, bem vistas as coisas, o mais elíptico.
François Truffaut disse certo dia a
propósito de Roberto Rossellini que o génio dele tinha também a
ver com a falta de imaginação. No centro de tanta aridez e de tanto
nada, Chandor e Redford não procuram soluções engraçadas nem
criativas, antes seguir o afluxo do sangue nas veias e o choque das
sinapses e do medo em colisão com o fluxo imperturbável da água. Nos tais sonhos
dos solitários ou dos preguiçosos em que se sonha estar sozinho na
extensão toda do mapa, sonha-se ainda que algures estará uma
rapariga e que em tantos anos um ou outro irá ouvir um grito. Em
“All Is Lost” não temos Deus nem sabemos se a carta escrita será
para essa rapariga, tudo o que não é explicado só o é pelos
mecanismos da câmara de filmar e do próprio náufrago, é ver ou
acreditar para querer.
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